Dona Dulcina

Se quisesse, poderia seguir carreira em Olinda, onde se formou professora, ou no Recife. Mas Dulcina Cruz Lima optou por voltar à vila do Rudela para, em 1933, comandar uma das primeiras escolas do lado baiano do médio São Francisco.

Por décadas a Escola Estadual Felipe dos Santos funcionou no primeiro andar do mítico sobrado amarelo construído por João Alventino, tio dela, e comandada com doçura e rigor. É uma casa cravada na memória coletiva dos rudelenses e respeitada e lembrada pelos rodelenses, mesmo aqueles que nunca a viram.

A Escola Estadual Felipe dos Santos funcionou no primeiro andar do sobrado amarelo

O espaço era democrático. Não se tem notícias de discriminação na sua única sala, onde a professora se desdobrava para atender a todos, não raro mais de 40. Por lá passaram muitos rudelenses. A sala  era dividida por brancos, negros e índios da tribo Tuxá. Meninas e meninos. Filhos das poucas famílias abastadas na época e das muitas pobres. Todos recebiam a mesma atenção da jovem, como ainda atestam os estudantes da época – os da primeira turma já chegaram aos 90 anos.

Dona Dulcina, que nasceu numa fazenda na área de influência da vila, distribuía carinho e corretivos a quem os merecessem. Que os ousados não pensassem que aquela figura franzina era de amolecer diante da indisciplina, de quem quer que fosse.

Naquela época era permitida a aplicação de castigos físicos nas salas de aulas, tido como uma ferramenta à boa educação. Ao bom comportamento. Uma palmatória foi levada por um ex-aluno na homenagem prestada à mestra, quando do centenário do seu nascimento. Arrancou risos e histórias sobre o seu uso foram contadas ou relembradas.

Lembraram que o temido instrumento apenas era usado em caso de indisciplina e não por problemas de aprendizado. Nesses casos, a professora era por demais paciente. Neste quesito, perdeu algumas batalhas.

A escola tinha até o quarto ano. A partir daí ou o aluno saía para outras cidades para continuar seus estudos ou parava – a solução viria nos anos 60, com a criação do Ginásio Nossa Senhora do Rosário.

Parar de estudar era o destino da grande maioria dos seus alunos. Naquela época, ler e escrever eram meio caminho andado para o sucesso na vida. Muitos ganhavam o mundo, com o peito inflado de orgulho de ter estudado na escola. E de ter sido aluno de dona Dulcina.

E o sobrado não abria as portas e oferecia suas vagas apenas para os rudelenses. Meninos e meninas de cidades e povoados próximos, que tinham parentes no Rudela, vinham aprender o ABC e a fazer contas, conhecer geografia e ciências na escola do sobrado. Virou uma referência em toda a região pela qualidade e empenho.

Era uma professora que gostava de esportes, numa época que esta combinação era algo bem futurista. Foi a criadora da tradicional disputa entre o Verde e o Amarelo, com várias modalidades – hoje é restrita ao futebol.

Foi dela também a ideia de se criar o “Recordação”, um jornalzinho que teve breve circulação, mas que mostrou toda a personalidade da professora. Era escrito à mão. Estava Dulcina Cruz Lima bem à frente do seu tempo.

Dulcina dedicou décadas da sua vida à educação rodelense. Como escreveram nas atas os inspetores que visitaram a escola, talento e dedicação ela tinha de sobra. Fora da sala de aula, não se afastou do pó de giz. Virou delegada escolar. Ainda em vida recebeu a homenagem de ser patronesse de uma escola, que ficou conhecida como Grupo da Baixa. Dona Dulcina morreu em 1981, aos 68 anos.

A nova Rodelas, ao contrário da antiga cidade onde a quantidade de estudantes universitários podia ser contada com os dedos, é berço de várias dezenas de estudantes de graduação, espalhados por universidades e faculdades baianas e de estados próximos. É um legado de dona Dulcina, sem dúvidas.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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