Terno de reis peregrino

A velha caminhonete está parada a 200 metros do leito enlameado do Água Preta. Na verdade, o rio que cortava o município de Encruzilhada está morto. Virou esgoto no centro da cidade. No restante do trajeto, deixou de ser perene. A última chuvarada acumulou meio palmo de água no trecho diante da casa da agente comunitária de saúde Joanita Ferreira Brito, 49 anos. Água que evaporou em quatro dias.

Debaixo de uma árvore, diante da caminhonete, um dos 12 integrantes do reisado “O Três Rei Magos” tenta se recuperar de um mal-estar. É Antônio Martins Silveira Lima, devoto dos Santos Reis e líder do grupo.

De onde está, Antônio ouve o som da apresentação dos companheiros que saúdam os Reis na casa de Alcenino e Maria, pais de Joanita.

SALVAR OS REIS

Os componentes do reisado perderam a conta de quantas casas passaram desde que saíram, no dia 1º de janeiro, do município de Ribeirão do Largo. Um deles tenta enumerar as comunidades que o receberam: Brejinho, Brejão, Pé de Galo, Alagoas e Pedrinha…No entanto, sempre esquece de algum nome.

Certeza mesmo é que estão no penúltimo dia das apresentações e terão de voltar para a cidade de origem a tempo de cantar os Reis após a reza para os santos.

O reisado peregrino segue em comboio formado pela velha picape e pelo carro do veterano gaiteiro Diolindo Ramos Novaes, o Xixe. O mau estado das trilhas e estradas das comunidades faz com que uma parte siga a pé atrás dos veículos, que tentam driblar buracos e pedras.

À frente do grupo vai o anunciador. Ele carrega uma imagem ou oratório com uma foto dos Santos Reis e costuma ser recebido pela dona da casa. Sempre pergunta como está a saúde dos moradores e se eles aceitam ouvir as cantigas.

Nem sempre a resposta é positiva. Muitas pessoas que se converteram a outras religiões se recusam a abrir as portas. Se o número de casas de uma comunidade não atendê-los, eles a cortarão do roteiro no ano seguinte.

Dona Maria, assim como dona Renésia, da casa seguinte, recebem os cantadores de bom grado. Estavam ansiosas pela chegada deles. É um dos poucos eventos que muda a rotina do povoado.

A apresentação dura em torno de 30 minutos em cada residência e é dividida em três partes: Canto para os Reis, Sambas e Contradança, quando gingam diante uns dos outros. As últimas partes são mais animadas.

SAMBA

“É o segundo ano que eles passam por aqui. Já houve outros grupos, mas muitos acabaram. Ficamos muitos felizes com a passagem dos ternos” – diz João.

O terno de Antônio foi criado por seus avós. Ele encabeça o grupo há 40 anos. Enquanto for vivo manterá a tradição, jura. Filhos e neto, convertidos à religião evangélica, não querem levar adiante a missão.

Todo ano, Antônio Martins, começa a reunir os integrantes do reisado semanas antes de se lançarem à estrada. Todos precisam saber as músicas do repertório – o mais difícil é o da saudação aos reis, pois é considerado falha grave errar um verso – e tocar instrumentos.

Atualmente, há uma dificuldade adicional. Está mais difícil encontrar gaiteiros (tocadores de flauta), considerados “o coração do reisado”, pois comandam o ritmo e o repertório.

Em Água Preta, o comentário era que para preencher a cota de dois gaiteiros, o reisado de Ribeirão do Largo foi buscar um tocador em Macarani, a 32 quilômetros de distância, e prometeu pagar uma diária para ele.

Além da disposição, da animação e da fé, os “reiseiros” têm em comum o gosto pela cachaça. Em suas andanças, não pode faltar a “branquinha”. O grupo chega a consumir entre cinco e sete litros por dia.

Nas casas onde é recebido, após as músicas e danças, o terno é convidado a comer e beber doces, biscoitos, sanduíches, o que tiver. Ganha ainda pequenos animais – bodes, galinhas e porcos. Há quem prefira dar uma quantia em dinheiro, discretamente, na hora em que devolve a imagem dos Santos Reis para o anunciador. Do casal João e Renésia, porém,  receberam maxixes e um lanche reforçado.

“Tudo o que é ganho é dividido igualmente”, diz Antônio.

Ele também ressalta que às vezes passam dificuldades porque há lugares que não servem nem água. Mas, o grupo segue em frente.

CONTRADANÇA

Durante os sete dias do percurso, os integrantes do reisado dormem nos quintais e nas casas que os aceitam ou debaixo dos pés de árvores no mato, tomando cuidado para não serem atacados por animais. Os mais velhos ficam nos carros.

Depois que as celebrações dos Santos Reis acabam, Antônio e seus seguidores descansam alguns dias. No dia 14, trocam as camisas verdes pelas vermelhas. Vai começar outra peregrinação até 20 de janeiro. É o chamado “Reis de São Sebastião”.

PELA ESTRADA AFORA

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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