O queijo de fogo é um tipo de requeijão suave, feito artesanalmente com leite, manteiga de garrafa e pouco sal. Sua fabricação é trabalhosa. Da coleta do leite até sair pronto da forma são necessárias 34 horas, sendo que duas delas são passadas diante de um forno de pedras e lenha, mexendo a colher de pau sem parar. O processo faz com que poucos se aventurem a fazê-lo.
Na microrregião de Itaparica, que engloba os municípios pernambucanos de Belém de São Francisco, Carnaubeira da Penha, Itacuruba, Jatobá, Floresta e Tacaratu, dona Elza Novais, 75 anos – ela fará 76 no dia 30 de junho é a mais famosa. Segundo seu filho João Augusto Novais Barros, dono de um caminhão que transporta coco de Rodelas (BA) para Recife e vereador em Itacuruba, ela talvez seja a única a produzir requeijão, também chamado de “queijo de matuto”.
“Se tiver alguém mais, não faz como os antigos” – diz.
Dona Elza, nascida em Floresta, mas moradora em Itacuruba há mais de 50 anos, aprendeu a fazer o requeijão olhando a sogra fazer. Ela lamenta que nenhum dos cinco filhos tenha se interessado por aprender a receita.
“Vai ser igual a minha madrinha e prima Ciça. Ela rezava bem. Curava bicheira e apagava fogo. Quando ela rezava, todos os bichos da região ficavam bons. Ela não precisava chegar perto deles. Rezava de casa com a mão voltada para o local onde eles ficavam. Só não curava quem estava do outro lado do rio porque a água cortava a reza. O mesmo acontecia com os incêndios. Ela vivia falando que ia morrer e ninguém queria aprender as rezas dela. É o meu caso” – desabafa a queijeira.
Elza criou duas sobrinhas e começou a ensiná-las a fazer queijos de fogo e coalho. Uma delas, Marilene, não aguentou e foi morar com as irmãs. Restou Bia, 41 anos, cujo nome verdadeiro é Itamira da Luz Sá. Ela diz que ajuda a tia que a criou há tempos e é capaz de fazer o requeijão do mesmo jeito. Perguntada se vai dar continuidade à fabricação, responde com um indeciso “Vamos ver”.
TRABALHEIRA
O processo de feitura do queijo começa com a ordenha das vacas da Fazenda Boa Sorte pela cunhada e pelo marido de Elza. Quarenta litros de leite são separados dia sim, dia não para a preparação deste tipo de requeijão. Os ingredientes são 40 litros de leite, uma ou duas garrafas de manteiga e sal a gosto, além de coalho de bode. Nas palavras da fabricante é assim que se faz o queijo de fogo:
“Quando começa o dia, você cata a nata e bota o leite para esquentar. Quando está bem quentinho que não dá mais para botar a mão, desliga o fogo e pendura no saco para escorrer o soro. Aí o leite que tira hoje, pega corta e bota o coalho de bode* no soro e machuca ele. Depois coa para outra vasilha. Pega o leite e bota o soro dentro. Mexe, mexe até ele cortar (coagular). Quando corta, leva para o fogo de lenha em um caldeiraozão e fica mexendo até ele não embolar mais. Deixa ferver.
Quando quebra a coalhada que escorreu hoje, bota dentro e cuida de ir mexendo para não pregar. Quando ferve, melhora, não precisa mexer tanto. Passa umas duas horas no fogo. Continua cozinhando para não deixar abaixar a fervura. Duas horas depois, tiro do fogo e boto no chão. O soro é separado para servir de comida para os porcos. Bota o restante em outra vasilha, esfria. Pode levar para um tambor d’água e mexer até esfriar.
Com a base pronta, bota ela em umas mochilinhas no saco. Faz bolinhas assim, o tanto que der. Espreme, deixa secar um pouco, depois quebra na bacia. Bota um salzinho, aí vem com a manteiga. Mistura em outro tacho e vai mexendo, mexendo. Amassa para o bicho ficar “liguento”. Quando está pronto, bota os bolinhos nas formas, feitas com canos de irrigação de cinco e seis polegadas. Por fim, passa para a cuia e alisa a parte de cima.”
Quarenta litros de leite são suficientes para fazer até sete peças de queijo. O peso de cada uma varia de um a três quilos. Os preços variam de R$ 40 a R$ 120.
“Dá até briga para comprar. Não falta quem queira. Mãe tem uma freguesia em Belém de São Francisco, a 60 km de distância, aos sábados. Ela leva toda a semana de 15 a 20 queijos de fogo para uma cliente chamada Cenilda Torre. Ela revende para Recife, Petrolina e São Paulo.” – revela Joãozinho.
DERIVADOS
Os derivados da produção do queijo de fogo são deliciosos. Um deles é a coalhada escorrida, espremida no saco, na qual é misturada um pouco de nata e açúcar. Uma rara iguaria. Ela é retirada antes de ir para o fogo e virar requeijão.
Outro subproduto é a borra. Depois de fazer a manteiga, o que sobra é a borra da nata. A parte escura do fundo da panela. Misturada com açúcar e farinha tem sabor inigualável. Começa doce e fica azedinha.
Tem ainda o cororó, a parte do queijo que fica agarrada no tacho e é rapada com uma colher de ferro após a colocação de um pouco de soro. A palavra deriva de cororô, camada de arroz queimada que adere ao recipiente onde é cozido. Durante a visita de Meus Sertões, não havia o produto.
O queijo de fogo é servido por último. É um requeijão bem suave, cozinhado a lenha. É saboroso e sacia a fome.
Dona Elza também prepara queijo coalho, vendido a R$ 25 o quilo. Ela compara o que produz com o que é comercializado em Sanharó, cidade localizada no agreste pernambucano, conhecida por ser a terra do leite e do queijo.
“Eles lá deixam uns pedacinhos pinicados em um prato. O queijo coalho comprei para experimentar. É plastificado. Quando está no plástico, você come e é gostoso. Cheio d’água, mas é bom. Depois que tira do plástico ficar ruim, rapaz. O gosto é diferente parece que é cortado com aquele produto que compram na farmácia. Isso a gente não compra não” – compara.
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(*) Existem cinco tipos de coalho, substância que coagula o leite. Coalho é termo genérico para os diferentes tipos de coagulantes. No caso do queijo artesanal é usado o coalho de origem animal. Trata-se da renina, conjunto de enzimas extraídas do 4º estômago de ruminantes em lactação. O coalho é composto de duas enzimas que quebram as cadeias de proteínas do leite: a quimosina e a pepsina. A quimosina é a principal responsável por coagular o leite.
(**) O telefone de contato da Fazenda Boa Sorte é 87-988787433.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.