Bonfim terá almanaque de

São João

“Açoita Pindobaçu/ Pindobaçu de Aracaju/
Açoita Pindobaçu/ Pindobaçu de Aracaju/
Só não quero que me chame/ De canela de arubu”

Sinhá e dona Zefa Piston cantavam essa roda
nas festas de São João, em Senhor do Bonfim.

No início do século 20, o São João deixou de ser uma festa religiosa e passou a ser um evento popular, nascido nos bairros e guetos de Senhor do Bonfim, município localizado na região centro-norte da Bahia, a 375 quilômetros da capital (Salvador). As lavadeiras e passadeiras de roupas lideravam as rodas do Pernambuquinho, rua que ganhou status de bairro; da Gamboa, bairro dos ferroviários; da Bandeira, reduto da boêmia; dentre outros.

Sinhá, a cantadeira mais famosa da cidade e do Pernambuquinho, levava sua roda à casa de seus clientes, incluindo proeminentes integrantes do judiciário municipal. A lavadeira batia na porta e cantava “Pavão pisa na sineta”. O coro acompanhava: “Xô, pavão!/E olha a noite, serenata/ Xô, pavão!”. Era a senha para as residências da elite se abrirem para as pessoas pobres da cidade.

Os componentes dos blocos encontravam a mesa repleta de doces e licores. Depois de satisfeitos, seguiam para cantar as rodas (um tipo de samba junino), cuja percussão era feita de latas e palmeado. O que parecia seguir o ritual do reisado, ficou conhecido como o “São João de casa em casa”

Além de Sinhá, que passou a ter a alcunha de cantadeira associada ao nome, haviam vendedoras de acarajé e outras lavadeiras como Celina, Santinha, Zefa Piston, Menininha e Helena de Menininha, que despontavam à frente dos grupos. As músicas eram de domínio público ou não, mas cada uma tinha a sua preferida como símbolo da roda.

Nos anos 1950, foi realizado o primeiro concurso de cantadeiras e cantadeiros, o que dependia de mais de organização por envolver pelo menos um representante de cada bairro. Para a surpresa de todos, Sinhá foi derrotada por um menino de 17 anos da roda do Bandeira. O resultado teve grande impacto, os jovens começaram a ter uma participação significativa. A forma de brincar sofreu alterações, aumentou a participação da população e o evento foi se elitizando. As rodas, porém, deixaram claro que o São João de Bonfim surgiu bem antes do forró passar a ser o ritmo dominante da festa.

Essa história e muitas outras sobre as festividades que fazem de Senhor do Bonfim a capital baiana do forró e uma das cinco melhores do estado serão contadas por Alex Barbosa, criador do projeto “Minha Cidade Senhor do Bonfim”, no almanaque que será lançado em junho.

“Eu tenho me focado muito nesse trabalho de resgate da memória da cidade e de seus moradores nos últimos dois anos” – diz Alex.

São João do passado: desfile de carroças e casamento de Maria. Reprodução do Instagram
São João dos desfile de carroças e  do casamento de Maria. Reprodução

O criador da página hospedada no Instagram e no Facebook antecipa que o almanaque terá uma versão impressa, com dois mil exemplares e cerca de 80 páginas. O formato será semelhante ao de uma revista.Os textos serão curtos e objetivos. Haverá muitas fotografias e ilustrações de manifestações e personagens, cujas imagens não foram registradas. A maioria das reportagens terá um QR Code, que permitirá a visualização das entrevistas. A publicação será bancada por empresas parceiras. Parte dos exemplares será vendida para pesquisadores e leitores em geral.

Crítico da política cultural do governo da Bahia, que destinou R$ 100 mil reais para o São João de Bonfim, em 2019, e verba 20 vezes maior para a festa no Pelourinho, Barbosa considera que a discrepância de valores mostra uma visão equivocada com relação à maior festa do interior do estado.

Ele ressalta que as festividades juninas foram consolidadas com pelo menos mais 15 manifestações culturais realizadas dentro do evento, incluindo o samba de lata, o casamento de Maria (também chamado casamento de matuto) e a guerra de espadas, hoje proibida por decisão do Tribunal de Justiça da Bahia.

Além de historiar como o São João ganhou a atual dimensão em Senhor do Bonfim, Alex contará fatos pouco conhecidos pelos moradores. Como o ocorrido na década de 1970:

Alex Barbosa, criador do Minha Cidade Senhor do Bonfim. Reprodução
Alex: criador do Minha Cidade Senhor do Bonfim. Reprodução

“O São João na praça começou com um prefeito, em 1973. Na época não tinha reeleição, e o prefeito elegeu o sucessor. Os dois romperam. E aí, meio para se vingar, o antecessor trouxe o Trio Elétrico Tapajós para a festa junina. O prefeito  proibiu a entrada da carreta com aparelhos de sonorização na cidade. Com a confusão armada, o ex-prefeito perguntou ao chefe de polícia se podia levar o veículo para casa. A resposta foi sim. Ele, então, mandou derrubar o muro de casa e botou o trio lá, tocando durante o São João (risos)”.

O autor da façanha será um dos entrevistados para o almanaque. O caso será contado em forma cordel. Além de Alex, a publicação conta com um designer, um ilustrador, um jornalista e um conselho editorial formado por dois professores universitários e um antropólogo.

Mesmo com a pandemia, o bonfinense não deixa de celebrar o São João. Ano passado foram feitas lives como a de Maria Glória da Paz, educadora, compositora e cantora, que exaltou a rua-bairro de Pernambuquinho e suas rodas. Também houve uma campanha para pequenos núcleos familiares participarem do “São João em casa”, com decoração, música e comidas típicas.

Em 2021, o almanaque Minha Cidade promete corresponder à grandiosidade dos festejos suspensos por causa da covid-19.

O projeto Minha Cidade Senhor do Bonfim

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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