A tradição da cantoria de esmolas

Helenita Monte de Hollanda –

Na minha adolescência em Natal, quando estava em casa dos meus avós maternos, recordo que, quando eu ia ao Centro, era lembrada de levar algum dinheiro para esmola. Quase sempre era esmola a ser dada a um cego. Lembro de um que tocava rabeca na esquina da Rua Coronel Cascudo com a Princesa Isabel. Chamava-se André e era conhecido e querido por toda a cidade.

Talvez a piedade e a predileção pela esmola aos cegos existam pelos relatos de quando, em suas andanças pelo mundo, Jesus curou inúmeros deficientes físicos entre eles cegos.

Não só o Cristianismo, mas também Judaísmo e Islamismo têm a esmola como pilar ou princípio básico. A esmola nos aproxima do modelo de perfeição que agrada ao Deus do Livro, Iaweh/Deus/Alá, fundamento das três religiões monoteístas.

Assim, a atitude para com os desfavorecidos e, principalmente, para com os doentes, é vista com tão bons olhos que, no Cristianismo, purifica a alma diminuindo o tempo da sua passagem pelo purgatório, já que foi depurada em vida, pela generosa prática da esmola.

Cego Pedro Oliveira (D) e sua rabeca. Divulgação

Em todo o Brasil encontramos pedintes cegos. Esmolés deficientes visuais enchem as escadarias do monumento ao Padre Cícero em Juazeiro. Portas de Igrejas, procissões, outros templos devocionais, são locais onde se colocam esses desfavorecidos que, resignados em suas deficiências e, por causa delas, tocados pela pobreza, acreditam na caridade.

Muitas vezes lamuriosos pregões de esmola são cantados em tons lastimosos. Mas quadrinhas curiosas já foram usadas quando se pedia às portas, às esquinas…

Quando estive em visita a Gruta da Mangabeira [1], interior da Bahia, um cego pedia esmola cantarolando, contudo, uma música de Wanderley Cardoso: “parece que eu sabia, que hoje era o dia de tudo terminar”.

Em minha visita a Juazeiro do Norte, Ceará, encontrei alguns cegos pedindo esmola, mas não lembro nem gravei cantos. De alguns, lembro os pedidos lamuriosos, quase chorados em mãos estendidas, quase sempre silentes…

Conversas com os mais velhos e a literatura sobre o tema, trazem-me alguns desses cantos que revelo hoje neste canal.

 

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Nota de pé de página

[1]  A Gruta da Mangabeira, conhecida localmente por Gruta Sagrado Coração de Jesus, é uma caverna situada na Serra do Sincorá, no município de Ituaçu (BA). Ela possui cerca de cinco quilômetros e meio de extensão e seu acesso é restrito e desconfortável. Apesar disso, a caverna é um importante ponto turístico por seu valor religioso e espeleológico.

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PARA QUEM QUER SABER MAIS SOBRE O TEMA
  • Trabalho acadêmico

“Os cegos cantadores rabequeiros do nordeste brasileiro: manifestacão dos arquétipos do cego poeta-cantor e do blind fiddler” – Jorge Linemburg, Académie d’Aix-Marseille . Link: https://www.revistas.usp.br/revistamusica/article/view/208018

 

Filmografia sobre Pedro Oliveira, cego que foi pedinte e, ao ganhar uma rabeca, passou a ser cantador de romance e cordéis:
  • Curtas-metragens:

“Cego Oliveira: no sertão do seu olhar” (1998), de Lucila Meirelles e Oliveira

“O cego que viu o mar” (1999), de Rosemberg Cariry.

  • Participações nos filmes e documentários abaixo:

“Jornal do Sertão”, de Geraldo Sardo (1970)

“Cobra Verde”, do cineasta alemão Werner Herzog (1987)

“Os romeiros do Padre Cícero”, de Eduardo Coutinho (1994)

“O homem que engarrafava nuven”, dirigido por Lírio Ferreira (2009).

 “Nordeste: Cordel, Repente e Canção”, de Tânia Quaresma (1975).

  • Discografia

“Cego Oliveira: rabeca e cantoria”. Cariri Discos. (1992)

“Cego Oliveira. Memória do Povo Cearense”. Volume II (1999).

Nasceu e cresceu numa típica família brasileira. Potiguar, morando na Bahia há vinte anos, é médica de formação e pesquisadora da cultura popular. Nos últimos 10 anos abandonou a sua especialidade em cardiologia e ultrassonografia vascular para atuar como médica da família na Bahia e no Rio Grande do Norte, onde passou a recolher histórias e saberes. Nessa jornada publicou cinco livros.”. No final de 2015 passou temporada no Amazonas recolhendo saberes indígenas.

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