Capítulo 2: Rosilda de Oliveira Souza
O bordado foi durante muito tempo fonte de renda e uma espécie de terapia para as mulheres de Dom Inocêncio, no Piauí. As meninas da cidade aprendiam a arte nas escolas da Fundação Ruralista, fundadas pelo padre-prefeito Manoel Lira Parente, em 1 de julho de 1965. Todas tinham aulas de arremates de bainhas em pequenos panos e de ponto cruz a partir das primeiras séries.
Rosilda de Oliveira Souza foi uma delas. Aos sete anos, sua vida começou a ser guiada pelas tramas do bordado. No início, as pequenas colaborações que fazia serviam para ajudar nas despesas de casa. À medida que aprimorava suas habilidades, ela começou a participar de exposições em diversas localidades e estados, incentivada por Maria da Conceição Leal, coordenadora do curso.
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De aprendiz à monitora da Fundação, função que exerceu por 10 anos e três meses, Rosilda comprou eletrodomésticos e mobiliou a casa com a renda proveniente do bordado. Nessa época, Dom Inocêncio, conhecida como a cidade do bode, devido à caprinocultura; dos forrozeiros, por causa da tradição cultural e do projeto Acordes Campestres [1]; também passou a ter fama devido ao artesanato em ponto de cruz.
Rosilda foi monitora de um dos núcleos do projeto, no bairro Lagoa das Pedras, um dos 12 existentes. No local, havia 27 alunas. Apesar de ter sido considerado um dos melhores bordados do mundo em um congresso de artesanato da Unesco [2], as escolas da Fundação Ruralista foram municipalizadas e o ensino de bordado deixou de ser obrigatório cinco anos depois. Não demorou muito, foi desativado.
A bordadeira, depois da primeira tentativa de reativar o projeto, ministrou cursos em cidades como Bom Jesus da Gurguéia e Colônia. A segunda experiência foi realizada, através do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), portal de educação a distância, vinculado à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
A principal recordação da professora foi a dificuldade de aprendizado de duas alunas.
“Elas eram aquele tipo de aluna ‘queimada’, que você vê que ele não aprende mais. Acabei desistindo delas porque vi que não iam adiante” – lamenta.
Nas aulas, Rosilda ensinava quais os tecidos mais apropriados para o ponto cruz. Segundo ela, o mais utilizado é o étamine, pois serve para qualquer tipo de peça (toalhas, panos de prato e roupas). No Brasil, há cinco tipos diferentes, divididos por 3, 4, 5, 6 e 7 tramas por centímetros. Ele aceita ainda outros tipos de bordado (ponto reto, vagonite, ponto cheio). Linho, cânhamo e algodão também são utilizados.
Todo trabalho é feito à mão, ponto por ponto. Com base em sua experiência, ela conta que o aprendizado é rápido. No tempo da escola primária, em poucos meses seus primeiros trabalhos recebiam algum tipo de remuneração por mais simples que fossem.
Ao ganhar mais experiência, a artesã passou a receber encomendas mais complexas. O mais trabalhoso que enfrentou foi bordar um quadro de Nossa Senhora com Jesus, de 90 por 70 centímetros. Foram cinco meses sentadas no sofá na sala, bordando. A empreitada foi encomenda da dona de uma emissora de rádio.
A bordadeira inocentina conta com orgulho que participou de exposições na Argentina e na Colômbia. E que a filha, Rosimeire, aprendeu a bordar vendo ela trabalhar. A menina ajudava quando a mãe estava muito atarefada.
A principal atividade de Rosilda atualmente é cuidar da casa em Dom Inocêncio e a de que tem na zona rural, onde passa dias com o marido. Quando foi visitada por Meus Sertões, ela tinha apenas dois panos de prato para vender. Cada um custava R$ 70. Eventualmente, a ex-aluna da fundação terceiriza seu trabalho para outras artesãs e cobra apenas pela mão de obra.
TENTATIVA DE RESGATE
Padre Lira, no entanto, resolveu não deixar o bordado morrer. Com a ajuda de familiares que viviam no exterior, peças em ponto cruz foram exibidas no Estados Unidos e na França. Contemplado com o prêmio Petrobras Fome Zero [3], em 2005, ex-professoras foram arregimentadas para fazer o curso de requalificação. As participantes dividiram o conhecimento com bordadeiras que tinham passado pela Fundação. E assim foi criado o projeto Bordados da Caatinga.
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O agravamento dos problemas de saúde do padre Lira e a morte dele por falência múltipla dos órgãos, em 2015, aceleraram o processo de definhamento da fundação.
Hoje, algumas bordadeiras, lideradas por Conceição, mantém uma loja do projeto no Centro de Artesanato Mestre Dezinho, em Teresina, capital piauiense. Enquanto isso, em Dom Inocêncio, os frutos da iniciativa secaram
Cerca de 100 artesãs estão cadastradas na prefeitura. São 10% das cerca de mil formadas pelas escolas do padre-prefeito. A produção caiu assustadoramente. Algumas terceirizam o trabalho para não perder a pouca renda obtida com as raras vendas.
A esperança de Roseli e suas companheiras é que a prefeitura de Dom Inocêncio consiga um local para que elas exponham e comercializem os seus trabalhos. Elas sonham com a possibilidade de terem uma loja no aeroporto de São Raimundo Nonato, porta de entrada para a Serra da Capivara, a 100 quilômetros de distância.
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Uma outra sugestão foi dada pelos professores Cristovaldo de Oliveira Sousa, Cirleide Ribeiro dos Santos, Hellen Cristina de Oliveira Alves, Kleber de Oliveira Macedo e Deborah Gonçalves Dias. Eles apresentaram no IV Congresso Nacional de Educação, realizado em 2017, em João Pessoa, capital da Paraíba, o trabalho “O projeto Bordados da Caatinga da Fundação Ruralista de Padre Lira: um educador que deu vida ao povo”.
Eles contam a história da fundação e concluem que o bordado gerou renda e, de certa forma, ainda gera. Acrescentam que a atividade levou “o nome do município a nível nacional e internacional”. Por fim, concluem que “é necessário que se implante as aulas de artesanato nas escolas municipais, para que se preserve esta cultura tão rica”.
Os autores acreditam ainda que é possível criar uma associação de bordadeiras para divulgar o trabalho das tecelãs, além de organizar feiras nas cidades vizinhas e em outros estados, valorizando o trabalho das artesãs do município, tendo como exemplo o projeto criado pelo padre Lira.
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Notas de pé de página
[1] Tema de uma reportagem que será publicada em breve.
[2] Informação consta da página @redeartesol.org.br. A Artesol é uma organização da sociedade civil fundada em 1998, sem fins lucrativos, independente e apartidária, que apoia os artesãos de todo o território nacional e atua como um centro de pesquisa, de reflexão e de formação para políticas públicas. Ela já concluiu 194 projetos em 25 estados.
[3] O programa destinou recursos para consolidação do processo e comercialização dos bordados produzidos pelo projeto, permitiu a aquisição de um carro veículo para a coordenação, pagamento de salários, cursos de aperfeiçoamento das monitoras e despesas com combustível e carros pipas (SESC, 2006).
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Legenda principal: Artesanato em ponto cruz. Foto: Instagram
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Leia a série completa
Em nome do padre, do filho e das bordadeiras
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.