Quarenta anos depois da chacina que resultou na morte de quatro trabalhadores rurais, ninguém foi punido. Matança foi estopim para os primeiros atos de desapropriação com fins de reforma agrária no período de redemocratização do Brasil
– Thomas Bauer (CPT-BA/ H3000) e Paulo Oliveira (Meus Sertões) –
No dia 2 de julho de 1985, mesma data em que se comemora a Independência do Brasil na Bahia, nove posseiros, cansados por manter vigilância por três semanas em um barracão improvisado, na localidade Campo do Sarampo, em Canavieiras [1], no sul da Bahia, foram surpreendidos com tiros disparados por um bando de jagunços.
Às 5 horas da manhã, apenas Jorge Mota de Souza, José Cardoso dos Santos, o Zequinha, e João Batista Cardoso dos Santos, o Batista, estavam acordados, preparando café para os demais companheiros que levantariam em breve.
O intenso tiroteio deflagrado, sob o comando dos pistoleiros Bigode, Vicente e Pinheiro, ex- soldado da PM, acompanhados de pelo menos mais sete capangas, causou a morte de quatro trabalhadores rurais e ferimentos em um. Dois jagunços tombaram no confronto e um terceiro foi atingido na cabeça, mas sobreviveu. No dia seguinte, em confronto com a polícia, mais um dos assassinos morreu.
A “Chacina do Sarampo”, como o episódio ficou conhecido ocorreu em um contexto de luta pela terra e reforma agrária em uma região historicamente marcada por casos de violência envolvendo supostos proprietários de terra, pistoleiros e posseiros. A matança teve repercussão nacional e aconteceu dois meses e 18 dias após José Sarney tomar posse na presidência da República em substituição a Tancredo Neves, que morreu antes de assumir o cargo.
A sequência de atos violentos contra trabalhadores rurais resultou nas primeiras ações de desapropriação de terras para fins de reforma agrária no governo Sarney. O foco na Bahia, entre os municípios de Canavieiras e Santa Luzia, resultou na expropriação das fazendas Poxim e Sarampo, assim como no engajamento das Comunidades Eclesiais de Base e da Comissão Pastoral da Terra na organização social da luta pela terra.
Em 21 de agosto de 2009, o juiz Daniel Álvaro Ramos, do Tribunal de Justiça da Bahia, decretou a prescrição do processo [2]. Portanto, apesar de denunciados e incursos por homicídio qualificado, com agravante de terem cometido o crime mediante pagamento e de emboscada, o mandante e os assassinos nunca foram punidos.
OS POSSEIROS
José Armando Miranda de Oliveira, um dos sobreviventes do Sarampo, contou em depoimento, colhido no dia 8/7/1985 pelo delegado especial Gilberto Souza Mouzinho, que despertou com os estampidos dos tiros deflagrados pelos agressores. Ele acrescentou que Zequinha e Batista retornaram ao barraco e fechando a porta. Enquanto isso, Jorge Mota de Souza fugiu, sob uma saraivada de tiros, pulando um monte de terra e correndo pela capoeira.
Ainda segundo o trabalhador rural, os pistoleiros teriam sido contratados por Dely Dias Santos, o Dely Ruim, interessado em extrair madeira da Fazenda Sarampo. Ele também aventou a possibilidade de o fazendeiro João Nascimento estar por trás da contratação dos assassinos.
No depoimento, o trabalhador rural revelou que os atiradores se identificaram como policiais federais, gritando para todas as pessoas do barraco se entregassem. Caso contrário, ateariam fogo no casebre onde a maioria dormia. Teria sido nessa hora que os posseiros iniciaram o revide.
Outro testemunho é de Gilberto Araújo Cardoso, filho de Zequinha, na época com 20 anos, que estava no barraco na véspera da chacina. Segundo o depoente, o pai recebeu um bilhete anunciando que os pistoleiros contratados por Dely estavam prestes a atacar. Os jagunços foram recrutados em Teixeira de Freitas, a 307 quilômetros de Canavieiras, por Domingos Dias dos Santos como consta nos depoimentos de alguns dos assassinos.
Gilberto disse que na madrugada do dia 2 acordou com o barulho dos tiros. Conforme ele, João Mineiro foi o primeiro a ser assassinado. A seguir, o jovem viu o pai ser morto com um tiro na cabeça. Antes de fugir, atendendo João Armando, o rapaz ainda se deparou com o corpo do tio, João Batista, estirado no chão, com as mãos acima da barriga. Na fuga, o rapaz, só de cuecas, levou um tiro na perna direita.
O quarto posseiro executado, Raimundo Osmar Alves, o Raimundão, morreu com um tiro nas costas ao tentar escapar.
OS PISTOLEIROS

No inquérito policial consta ainda o depoimento do jagunço Edvaldo Bispo dos Santos, o Baixinho, à época residente em Eunápolis. Ele contou que estava em companhia de mais nove pistoleiros a serviço de Dely Dias dos Santos, na Fazenda Sarampo, quando foi convidado a participar de um tiroteio para expulsar os posseiros.
Baixinho falou que Valdevino José dos Santos, o Bigode, Wilson Conceição Pinheiro e Vicente Dias Cedraz, os líderes do grupo, chegaram atirando nas três pessoas que estavam do lado de fora do barraco, diante de uma fogueira. Ele informou ainda que Pinheiro foi morto ao chegar na porta do casebre onde estavam os posseiros. Em seguida, outro capanga, Gil, foi atingido e morreu.
O pistoleiro, que portava uma espingarda calibre 36 fornecida por Vicente, acrescentou que levou um tiro na cabeça e ficou com a visão turva. Lembrou, no entanto, que dois irmãos de Gil receberam ordens para atear fogo no barraco depois de retirarem os corpos dos trabalhadores rurais. O casebre ficou totalmente destruído.
Ele detalhou que Bigode usava uma espingarda calibre 20 de dois canos; Vicente, uma carabina nova; Pinheiro, uma arma parecida com um fuzil; os irmãos Gildeon, Gildásio e Josuel Matos dos Santos portavam espingardas de cartucho; Dil carregava outra espingarda calibre 20; e Domingos, um revólver calibre 38.
No dia seguinte a matança, houve um novo confronto com quatro dos pistoleiros, próximo à Fazenda Piatã. Dessa vez, policiais que voltavam do Sarampo com os corpos dos trabalhadores rurais se depararam com o grupo. Vicente Dias Cedraz, um dos líderes do bando de pistoleiros, morreu. Domingos Dias dos Santos e Gildeon Matos dos Santos foram presos. Dil fugiu.

GOVERNO SARNEY
O governo (1985-1989), José Sarney, o primeiro após a ditadura militar, foi o período com o maior número de conflitos (3.489) e assassinatos (705) no campo. O litoral Sul da Bahia se destacava como uma das áreas mais violentas.
O Boletim Informativo da Regional Nordeste III da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), publicado dois anos antes de Sarney tomar posse, relatou seis assassinatos até junho. Um deles se referia ao desaparecimento, na região do Sarampo, de um trabalhador rural, cujo corpo foi encontrado 52 dias depois.
Em 1984, o mesmo informativo coletou informações sobre cinco mortes, incluindo o assassinato de João Celestino, Maria José e Adaílton, todos da mesma família, a golpes de facão. Esse evento ficou conhecido como a Chacina da Serra da Onça, em Santa Luiza (BA)
Na esteira da Chacina do Sarampo, ocorrida dois meses antes, famílias de trabalhadores rurais tiveram acesso ao Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, visando promover desapropriações nas regiões com mais conflitos. As pastorais sociais da Igreja Católica participaram da iniciativa, fazendo denúncias e cobrando apuração rigorosa para os crimes.
A atuação do então bispo da Diocese de Itabuna, dom Paulo Lopes de Farias, e de representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e Centro de Estudos e Ação Social (Ceas), ligado à Igreja Católica, foram fundamentais para as decisões tomadas pelo governo federal. Além destas entidades os posseiros da região também contavam com o apoio direto do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
O então presidente da República equilibrava-se para atender os interesses do agronegócio ao mesmo tempo que buscava diminuir os confrontos gerados a partir da expansão dos latifúndios nas regiões Nordeste e Norte.


Em setembro de 1986, o governo federal assentou 66 famílias em 1.514 hectares das fazendas Poxim e Sarampo, onde ficou caracterizado alta concentração de posseiros e de terras sem função social.
Os conflitos na região, porém, não terminaram. Além de Canavieiras, vários outros foram e são registrados até hoje em Una, Itacaré, Wenceslau Guimarães, Santa Cruz de Cabrália e Porto Seguro.
Já o processo judicial sobre as mortes no Sarampo prescreveu em 31 de agosto de 2009, segundo decisão do juiz Daniel Álvaro Ramos. Com isso, o mandante Dely Dias dos Santos e os pistoleiros Valdevino Jose dos Santos, o Bigode, Domingos Dias dos Santos, Edvaldo Bispo dos Santos, Gildeon Matos dos Santos, Josuel Matos dos Santos e Seu João continuaram em liberdade.
–*–*–
Notas de pé de página
[1] – Santa Luzia foi distrito de Canavieiras até o dia 10 de maio de 1985. A documentação da época, incluindo matérias de jornais e páginas de processos, consideram, entretanto, que o crime foi perpetrado em Canavieiras.
[2] – O processo só foi encontrado recentemente na Comarca de Camacã pelo professor Marco Antônio Mitidiero Júnior, atualmente associado da Universidade Federal da Paraíba. O pesquisador é integrante da equipe do convênio “Memória dos Massacres no Campo”, firmado entre o Ministério da Justiça e a Universidade de Brasília (UnB), com participação da Comissão Pastoral da Terra.
–*–*–
Legenda da foto principal: O trabalhador rural Raimundão foi assassinado com um tiro nas costas. Reprodução da foto que consta no processo criminal
- Author Details

Thomas Bauer nasceu em Vorarlberg, Áustria. Formado em construção de barcos, mudou a área de atuação ao participar da Academia Social Católica em Viena. Participou ainda do serviço civil na Paróquia de Frastanz e cursou filosofia no Rio de Janeiro. Desde 1996 no Brasil, atua na Comissão Pastoral da Terra (CPT-Bahia) como fotógrafo, filmmaker e contador de histórias.
Respostas de 2
Paulo, vc está estudando esse tema?
Estamos avaliando e, provavelmente, daremos seguimento ao tema.Alguma sugestão, Ronaldo?