Devoção, orquídeas e relíquias em Ichu

A Fazenda Canavial, a dois quilômetros do centro de Ichu (BA), possui atrativos que a tornam difícil de ser igualada: beleza natural, uma capela histórica, orquidário e marcas de antiga usina de açúcar. Visitá-la é uma benção, principalmente em setembro, quando é hasteada a bandeira que sinaliza o início do mês de Maria. Serão 32 dias consecutivos de rezas na capela de Nossa Senhora da Conceição, incluindo as celebrações da Natividade e das Dores de Nossa Senhora.

A entrada da propriedade. Foto: Paulo Oliveira
A entrada da propriedade. Foto: Paulo Oliveira

Em setembro também floresce a maioria das 60 espécies de orquídeas cultivada por Cristóvão Geraldo Almeida, 53 anos, da quarta geração de proprietários da Canavial. É no orquidário que ele passa a maior parte do tempo. A predileção dele é pelas cattleyas por causa do cheiro que exalam. As vandas, com raízes aéreas e cultivadas penduradas, ficam em segundo lugar. A paixão pelas orquídeas é tanta que Cristóvão guarda na memória do celular e em DVD a imagem de 247 flores.

Orquídeas durante a floração. Foto: Divulgação
Orquídeas durante a floração. Foto: Divulgação

A fazenda possui ainda uma casa de farinha desativada no casarão e resquícios de antigo engenho de cana. Nos fundos da propriedade, no alto de um morro há um cruzeiro que se transforma em local de romaria na Semana Santa e oferece uma bela paisagem.

E como tudo isso surgiu? É o que veremos a seguir.

DEVOÇÃO À MARIA

A tradição do Tricesimum (devoção de 30 dias à Maria) surgiu no século 12. Estas celebrações inicialmente ocorriam entre os dias 15 de agosto e 14 de setembro. Quinhentos anos depois, os trinta exercícios espirituais diários em homenagem à Mãe de Deus passaram a ser realizados em maio, repetindo prática que ocorria na Antiguidade quando as deusas Artemisa (fecundidade) e Flora (protetora das flores) eram festejadas na Grécia e em Roma, respectivamente.

Por volta de 1870, Ichu ainda nem havia se formado e o que viria a ser seu território fazia parte de Riachão do Jacuípe. Foi quando Francisca Eliotéria do Amor Divino começou a devoção à Imaculada Conceição da Virgem Maria, quatro meses após o casamento com João Carneiro de Oliveira. A dona da fazenda, baseada nos ritos religiosos que acompanhava em Riachão, onde nasceu, convidou amigos e parentes para participar das rezas. A princípio, as celebrações eram em maio.

Se no início eram só preces e cânticos, com o tempo foram sendo criados eventos que enriqueciam a celebração. Vieram as noites das crianças, das moças de branco (usando grinaldas elas ofereciam flores à Virgem Maria) e do leilão, realizado no último dia e animado por uma banda da comunidade de Caldeirão, da qual João Carneiro fazia parte.

O pequeno altar onde eram feitas as orações ficou pequeno para abrigar os participantes. Foi preciso construir a capela, que ficava no andar acima da casa de farinha. O acesso ao local era feito por duas portas de um cômodo para separar homens e mulheres.

As duas portas serviam para separar os homens das mulheres. Foto: Paulo Oliveira
As duas portas serviam para separar os homens das mulheres. Foto: Paulo Oliveira

Em seguida, instalaram uma cruz de madeira no Monte do Canavial. Desde então, o morro virou local de romaria e ponto final da procissão que leva a imagem de Jesus Crucificado, na Semana Santa.

INVERNO RIGOROSO

Cristóvão Almeida conta que foi devido ao rigor do inverno e ao excesso de chuva que transferiu o mês de Maria de maio para setembro quando são celebradas a festa da Natividade e a cerimônia das Dores de Nossa Senhora. O atual proprietário da fazenda acrescenta que o mau tempo afastava os participantes que vinham de jegue de Juazeirinho, povoado de Conceição do Coité, e Bonsucesso, comunidade de Riachão do Jacuípe.

Com a morte de Francisca e João, a filha do casal, a professora Odília Donata Carneiro assumiu a organização das celebrações. Foi ela quem passou a realizar o baile de Pastorinho e dramatizações para animar ainda mais os participantes. Moradores e trabalhadores da fazenda contribuíram para manter a tradição.

Elvira Carneiro de Almeida, que aprendeu os cânticos aos 7 anos, se tornou a responsável pela devoção à Maria. Ela também cuidava da novena de São Roque (de 7 a 15 de agosto), de quem o pai e o marido, Roque Sebastião de Almeida, eram devotos. Em 1973, após a Igreja Católica conceder aos leigos o direito de realizar celebrações aos domingos, a comunidade passou a realizá-los na capela da Fazenda Canavial. Posteriormente, eles passaram a ser feitos no prédio de uma antiga escola.

Coube a Cristóvão Almeida, com a ajuda de cinco irmãs que moram em Ichu e Feira de Santana, dar continuidade aos festejos em homenagem à Virgem Maria. Ele conta que os três últimos sábados são dedicados às crianças, aos jovens e à coroação de Nossa Senhora. O padre da cidade participa da celebração no primeiro dia, quando é hasteada a bandeira branca que sinaliza o início da reza, e no último.

“Tenho medo de morrer e desmancharem tudo” – revela Cristóvão.

O ENGENHO

Dois mourões de baraúna foram o que restaram da antiga usina de açúcar que funcionava na fazenda Canavial. Fincados entre a cerca de confinar animais, as duas grossas estacas resistem ao tempo. Segundo Antônio Gomes Carneiro, do blog Histórico Ichu, João Carneiro de Oliveira todo ano ia até Candeias, cidade que fazia parte da antiga região canavieira do Recôncavo Baiano. Lá, obteve mudas de cana-de-açúcar e fez um grande plantio, que deu origem ao nome da fazenda.

Por 15 anos, de acordo com o relato feito no blog, João juntou peças de madeiras resistentes, incluindo baraúna, aroeira e peroba, para montar o sonhado engenho de moer cana. De início, utilizava um carro puxado por carneiros, substituídos, em seguida, por bois.

Com o suco da cana fazia meladinha (cachaça com mel), açúcar mascavo, rapadura e mel de puxa. Esses produtos eram servidos nas noites de devoção à Virgem Maria.

ORQUIDÁRIO

O retrato de Roque Sebastião e Elvira Carneiro de Almeida está diante de uma bela orquídea na sala da fazenda. As flores eram uma paixão de Elvira, que morreu em 2010, com 85 anos. Se ela e a mãe pegavam as plantas no mato, o filho Cristóvão aperfeiçoou a forma de se dedicar a esta tradição de família: construiu um viveiro, comprou exemplares e passa a maior parte do tempo cuidando de cerca de 60 espécies de orquídeas.

Orquídea e papagaios de madeira diante da fotografia dos pais de Cristóvão. Foto: Paulo Oliveira
Orquídea e papagaios de madeira diante da foto dos pais de Cristóvão. Foto: Paulo Oliveira

O cuidado com as plantas inclui a colocação de fertilizante nas raízes mensalmente e atenção permanente para evitar a infestação de “cascudinhos amarelos”, praga que destrói as orquídeas.

Fotos de centenas de orquídeas na memória do celular.
Fotos de centenas de orquídeas estão arquivadas na memória do celular de Cristóvão

As cattleyas chocolate e vermelha são as preferidas porque exalam forte perfume. Depois delas, gosta das vandas. No orquidário estão 15 espécies nativas e mais de 40 adquiridas – algumas na feira de produtores de Holambra (SP), realizada em abril, em Ichu; outras, em Feira de Santana. Normalmente, compra entre três e quatro mudas, vendidas por preços que variam de R$ 40 a R$ 60.

O viveiro de orquídeas. Foto: Paulo Oliveira
O viveiro de orquídeas. Foto: Paulo Oliveira

Cristóvão ressalta que não cultiva as plantas para revender, embora algumas pessoas insistam que faça isto. Quando muito, troca mudas com amigas, como Madalena, de Juazeirinho. Sua devoção às plantas beira o fanatismo. Ele mantém no celular 247 fotos de flores. Por precaução, as copiou para um DVD.

Setembro para ele não é importante apenas pelas rezas e pela devoção à Maria. Também é marcado pela floração da maioria das espécies.

É difícil afastá-lo das plantas. Só depois de muita insistência é que ele nos mostra o restante da fazenda, incluindo o que resta da antiga casa de farinha que funcionava no casarão.

Casa de farinha desativada. Foto: Paulo Oliveira
Casa de farinha desativada. Fotos: Paulo Oliveira

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(*) Vídeo do site www.ichunoticias.com.br , publicado em 30/09/2017

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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