Arma secreta

O CARISMA DE LAMPIÃO

Florisvaldo Mattos [1]

INTRODUÇÃO 

O estudo do banditismo social do Nordeste, de uma perspectiva histórica antropológica foi enormemente prejudicado por uma série de juízos preconcebidos que se formaram em torno do tema, inspirados geralmente na ação predatória praticada por bandoleiros, que os tornava antes de tudo uma ameaça para a sociedade.

Preconceitos vigentes na maioria dos analistas dificultaram o conhecimento do problema em muitos de seus aspectos. Pode-se dizer  mesmo que toda uma geração de intelectuais  nordestinos esteve sob a influência da atividade nociva do banditismo, e toda uma literatura se produziu sobrecarregada de  conotações emocionais, em que não raro o bandido, seja ele Antônio Silvino, Lampião ou Corisco, é visto como um caso de patente vocação para a delinquência, um caso de loucura moral ou até mesmo de inferioridade racial; quando muito, como produto de um meio atrasado, sem que para isso se proceda à análise das causas mais profundas que estão na raiz desse fenômeno.

Um exemplo disso é a tendência para responsabilizar o Estado, os poderes públicos, pela existência do banditismo. E há mesmo autores que chegam a apontar figuras isoladas – caso do coronel –  como propiciadores dessa chaga social. Quase nunca os autores se voltam para a questão global em que estão presentes muitos aspectos da própria sociedade que gera o bandido. Talvez pelo distanciamento que o tempo proporciona já hoje é possível compreender melhor a natureza das épocas de banditismo, sem que seja preciso chegar ao extremo oposto à condenação pura e simples, com a transformação do bandido em exemplo de herói. Hoje já é possível ver o banditismo como o protótipo de uma rebelião de nível social primário e estudar o fenômeno em muitos aspectos, livre de preconceitos.

A maioria dos autores, por exemplo, não parece capacitada a responder à seguinte pergunta: por que a maioria das populações rurais tende a proteger os bandidos?  Ou a esta: a ação dos bandidos sociais pode ser encarada como um protesto? Que tipo de protesto?

Há sempre duas visões em relação à figura do bandido social: a do poder repressor, que o encara geralmente como um facínora, homem violento e cruel, que precisa ser extirpado da sociedade a qualquer custo, e a dos pobres, semi-servos como ele na sua origem, que normalmente o veem como o realizador daquilo que de certo modo desejariam fazer, mas não podem porque são fracos.

O interesse do presente trabalho orientou-se para a tentativa de estudar um aspecto do bandoleirismo: o carisma de que parece estar possuído o bandido social típico. Não há como negar a grandeza e os riscos de uma abordagem não profissional do tema; mas vale a tentativa. Por isso, em razão de tratamento estritamente teórico, pareceu aconselhável ao autor a adoção de uma metodologia que incluísse, primeiramente, uma caracterização do fenômeno do banditismo social; em seguida, uma configuração teórica do problema do carisma para, finalmente, traçar-se o perfil da personalidade carismática de um bandido social brasileiro, no caso a de Lampião, escolhido por ser, dentre outros motivos, o mais representativo bandido social de uma época, o mais famoso, e aquele cuja atividade foi mais duradoura, além de ser o bandoleiro do Brasil sobre quem mais se escreveu, registrando-se hoje acentuada tendência para uma revisão de muito do que em tempos passados sobre ele foi dito.

Foi bandido e tornou-se símbolo por causa do carisma que possuía. Eis uma prova de sua importância: recentemente uma revista nacional publicou um suplemento em série com biografias de celebridades e pôs Lampião em destaque, entre os homens que fizeram o século XX. Por isso, nunca será em vão estudá-lo. (Revista Manchete, no. 972, Suplemento).

um fenômeno social

Os bandidos de todos os tipos são, a grosso modo, homens que usam da violência para alcançar um fim, agindo quase sempre contra a integridade física e moral de seus semelhantes. Na vida social, existem outros homens que também usam da violência contra seus semelhantes, mas só a uns especificamente é reservada a classificação de bandido. Os outros estão resguardados pelo sistema institucional vigente na sociedade.

A maioria dos criminosos age contra os outros seres humanos com motivações graduais que, em geral, se materializam ou se esgotam na prática de um ou mais delitos. É o bandido tout court. Porém, há outros que ingressam na vida do crime em respeito a um sistema de valores, não reconhecido pelo aparelho institucional dominante. A uns e outros a lei penal abrange e os organismos de segurança mantém sob rigorosa vigilância, em defesa das normas e costumes que regem a convivência social

Qualquer tentativa de caracterização do bandoleirismo terá fatalmente de arrolar elementos teóricos que venham a configurá-lo como um fenômeno nitidamente social, já que por vários motivos é quase sempre comum um procedimento contrário, com a generalização do princípio de que o bandido social é caso apropriado para ser resolvido pela polícia Mas, não é este o pensamento dos que melhor analisaram  o problema, como Eric J. Hobsbawn, para quem o banditismo social é, antes, um caso para meditação da sociologia e da ciência política.

O banditismo social, um fenômeno universal e virtualmente imutável, é mais do que um protesto endêmico de camponeses contra o opressão e a pobreza; um grito de vingança contra o rico e os opressores, um vago sonho de poder impor-lhes um freio, justiçar os erros individuais. Modesta é a sua ambição: um mundo tradicional em que os homens sejam tratados justamente e não um mundo novo e perfeito” (Hobsbawn, Rebeldes Primitivos, 16). Sustenta ainda que, “num certo sentido, o banditismo é apenas uma forma primitiva de protesto social organizado, talvez o mais primitivo que conhecemos”.

Numa especulação teórica, a partir de uma angulação sociológica, pode-se afirmar que o banditismo social guarda formas próprias, que permitem uma caracterização do fenômeno, pelo menos no nível da configuração de um tipo clássico de bandido. Promovendo a depuração de um conjunto amplo de elementos, encontrados em vários estudiosos, é possível chegar a uma conceituação, quando se considera, em princípio, uma série de fatores.

banditismo rural

Dificilmente se poderia obter um conceito de bandido social, sem considerar de início a região em que surge e a sociedade que o gera. Ele é sempre produto de uma sociedade agrícola, economicamente atrasada, onde vigora um sistema de semi-feudalismo produtivamente caracterizado pelo monopólio da terra, marcado quase sempre por uma atividade de monocultura.

“No Brasil, tem-se uma prova evidente disso, quando se sabe que a única região que produziu bandidos sociais típicos foi o Nordeste, circunstância que chamou a atenção de Maria Isaura Pereira de Queiróz: “(…) o cangaço e o cangaceiro são particulares de uma região bem delimitada do Brasil. Eles pertencem às extensões da caatinga árida que cobre a região interior de sete províncias brasileiras. Não foram vistos jamais em outros lugares. E, entretanto, do norte ao sul, a estrutura sócio-política e econômica do país é marcadamente homogênea”. (Maria Isaura, Os Cangaceiros, Les bandits d’honneur brésiliens, 14).

Referia-se ela claramente ao quadro geral do desenvolvimento do campo brasileiro, de um ponto de vista socioeconômico.

Tomando ainda o Brasil como exemplo, deve-se acrescentar o ponto de vista de Rui Facó, que relaciona a origem do banditismo social com a situação global do subdesenvolvimento, ao assinalar que não é só  no monopólio da propriedade fundiária que reside a matriz do cangaço: “era em todo o atraso econômico, no isolamento do meio rural, no imobilismo social, na ausência de iniciativas outras que não fossem as do latifundiário – e as deste eram quase nenhuma” (Rui Facó, Cangaceiros e “Fanáticos, 43).

 Tal situação de atraso econômico do meio rural serve de suporte a um profundo atraso cultural, produto de altos índices de analfabetismo e desinformação, determinados pelo isolamento. De outro lado, dois outros fatores condicionam o comportamento social da população nestas solidões agrárias: o ambiente natural e o misticismo balizado pelo catolicismo, mas frequentemente manifestado por seitas deste variantes. Não foi por mera coincidência que a mesma região – o Nordeste brasileiro – produziu legiões de fanáticos no curso de mais de meio século, como os que seguiam o Conselheiro em Canudos e o padre Cícero Romão, no Ceará.

No caso do bandido social, o desamparo diante das forças da natureza e da sociedade estimula uma forma primária de revolta, que encontra respaldo na própria rudeza e violência do meio e, ao contrário do fanático religioso, que apela para uma solução sobrenatural, como nas formas messiânicas, aquele opta por uma ação em que predomina a ação física violenta, caracterizada pelas mais diversas formas de agressão.

A sociedade primitiva, que gerou o semibárbaro, de repente o vê em rebelião feroz contra ela própria, de arma na mão, vagando desorientado, sem destino certo, e sem saber realmente quem é o verdadeiro inimigo. Contra ele, com igual fúria, porém com forças multiplicadas, de início se lançam protagonistas identificados com o domínio da terra e, em seguida, os meios de segurança, o sistema organizado de polícia.

“As sociedades rurais onde ele ocorre (o banditismo social) conhecem o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, os que comandam e os comandados, mas permanecem profunda e tenazmente tradicionais e pré-capitalistas como estrutura”. (Hobsbawn, idem, 37).

É digno notar que tem havido certa tendência para estender a formas de criminalidade urbana o conceito de banditismo social, mas já se trata, aí, de um elastecimento do conceito, de uma degenerescência do tipo puro, porque o fenômeno é próprio de sociedades rurais, marcadas por um profundo atraso econômico.

A ordem moral do bandido social 

A mente do bandido social está geralmente povoada por uma confusa gama de aspirações e vontades sufocadas pela estrutura semifeudal da sociedade. De frustação em frustação, considera-se um injustiçado, um perseguido. Na origem da história do bandido social típico há sempre um problema de honra. Ele em geral pratica seu primeiro crime, assim considerado pela ordem legal vigente, como resposta a uma afronta. Age sempre em função de um conjunto de procedimentos éticos estabelecidos pelas convenções locais da sociedade rural a que pertence. Sempre sujeitos a um condicionamento social, a ausência de justiça foi o fator determinante para o surgimento desses tipos no ambiente rústico.

No Brasil, a história do cangaço, como uma forma de banditismo social, está ponteada de exemplos em que o futuro bandido começa por reagir à imposição da lei com base no sentimento de que está sendo injustiçado, ao ser perseguido por que agiu por conta própria na aplicação das regras do código de honra de sua localidade.

“Ao pai assassinado, à irmã violentada, à pecha infamante e vergonhosa, a maior de todas no sertão, de ladrão, a justiça que não reage. Deixa o pobre diabo à espera de uma ação que não virá. Se vier, será em favor do malfeitor poderoso. A aquiescência da lei era revoltante”. (Renan Monteiro Soares, Aspectos Sociológicos da Pecuária Nordestina, 57 a 88).

A ação punitiva avassaladora que o bandido social se acha no direito de praticar representa uma contrapartida a outro fator muito próprio das sociedades atrasadas: o poder excessivo enfeixado nas mãos de uns poucos, como forma estabelecida de controle da vida em grupo, no meio atrasado e distante, que funciona como garantia da injusta divisão e manutenção da riqueza entre poucos e de distribuição da miséria entre muitos, a maioria esmagadora da população.

No sertão nordestino, esse poder era, por si mesmo a lei e a justiça, o direito à vontade incontrastável de quem o detinha. Esse o quadro ético do meio rural, quando se encara a problemática do surgimento do banditismo. Falando do homem dessa região, observa Renan Monteiro Soares:

“Sua capacidade de adaptação, o receio de ser punido excessivamente, o rancor acumulado, bem guardado no fundo da alma, faziam com que os cidadãos sertanejos, insubmissos às imposições de vassalagem, se rebelassem contra as forças das autoridades vigentes e, aliando-se à vastidão das caatingas, levassem uma vida bem primitiva, mas pródiga na satisfação de suas vinganças pela execução dos sirviços miricidos”.

Atingido brutalmente na sua honra, o homem aguarda a ação da justiça; ela não vem e, então, fiel ao código de sua comunidade, a vingança pessoal se coloca como o único reparo à afronta recebida.

“O cangaceiro penetra na senda criminal através de um determinismo amplo e forte, em que sobressai, como gota que extravasará o copo, um sentimento primitivo, bárbaro, mas humano, a vingança. Faltando-lhe a justiça, vai fazê-la com as próprias mãos.  E leva consigo, mais ou menos inconscientemente, um espírito de reivindicações. (…)”. (Estácio de Lima, O Mundo Estranho dos Cangaceiros, 51).

A vingança adquire as dimensões de um direito legítimo, no espírito primitivo do afrontado; a violência punitiva é para ele um dever. E, avaliando os fatos pelos signos de seu código de honra, ele “admite ingenuamente que também não terá de sofrer sanções “, tal como seu agressor.

O ódio produziu o engano. Desconhecendo o código e as suas razões, o sistema organizado de repressão arma-se para puni-lo. Ele reage.  A perseguição não terá mais fim; entre enraivecido e assustado, nasce o bandido.

Nômades e independentes

O Estado não reconhece qualquer legitimidade na ação do bandido social. Aos olhos do sistema oficial de repressão, ele não passa de um reles criminoso, que urge ser afastado do convívio social ou eliminado do mundo dos vivos. Só existem dois caminhos: a reclusão ou a morte. Objeto de uma perseguição sem tréguas, ele se torna um nômade, correndo de um lugar para o outro, sem pouso certo, por vales e montanhas, por grotas e furnas, sem rumo, sem endereço. Depois do primeiro crime, terra de sangue em que lavrou a honra, já o segundo constitui uma reação contra os perseguidores de forma indeterminada. E assim por diante. Começada a perseguição, começa a história do bandido. E por aí começa também uma vida de independência, que pode ser muito bem a representação do amor à liberdade, de um anseio para se ver livre de todo um sistema de coação, abandono e pobreza, dentro da ótica do seu primarismo moral e psicológico.

“A vida de cangaço, plena de liberdade e tremendamente primária, condicionava o cangaceiro à satisfação dos seus instintos incompatíveis com a vida em sociedade. Somente o Talião, o próprio discernimento e a necessidade de sobreviver, determinaram as pautas de comportamento que orientaram a vida deste exemplar raro de cidadão.”(Renan Monteiro Soares, op. cit.).

Neste clima de primitivismo, quase de maneira inconsciente, instaura-se o desafio à lei, à autoridade, segundo o ritual das convenções de uma localidade ou de uma região, em que os resultados de atos violentos não são considerados crime, se está nas suas origens uma questão de honra.

O nomadismo e as atitudes de independência são favorecidos por um fator muito significativo: a juventude do bandido. Os bandidos sociais são, em sua maioria, jovens. Em razão disso é que o período áureo da história do bandido ocorre geralmente nos anos de sua juventude. “Normalmente, ele (o bandido social) é jovem e solteiro ou sem compromisso, quando mais não seja porque é muito difícil para um homem revoltar-se contra o aparelho governamental quando tem responsabilidades familiares”. (Hobsbawn, 31).

À psicologia própria de sua natureza jovem é que se pode creditar o amor à ostentação e ao esbanjamento que os bandidos exibem, de forma frequentemente ingênua e pueril. A condição do corpo jovem é que, também, lhes assegura a resistência necessária para enfrentar as situações mais adversas, as privações, os sofrimentos das grandes caminhadas e das lutas, as fadigas e os ferimentos de que se refazem com relativa rapidez; enfim, de suportar as severidades de uma natureza áspera.

O nomadismo é uma característica que, faltando ao bandido urbano, impossibilita o seu enquadramento na categoria de um bandido social típico. Apesar de duramente perseguido pelo sistema de repressão policial o bandido urbano mantém o seu centro de atividades numa localidade, operando numa determinada área, e, embora empreenda fugas constantes, escondendo-se para livrar-se da perseguição, não é essencialmente um nômade.

FORMAÇÃO DE BANDO

Começando por uma ação isolada, o homicida honroso caminhará para integrar-se num bando, ou mesmo formá-lo. A razão dessa atitude reside no fato de que a ação solitária, embora apoiada em qualidades de coragem, se torna por demais insegura, uma vez que ele terá de lutar contra muitos para sobreviver.

O bando, por outro lado, determina um tipo de solidariedade, pelos vínculos marcantes de origem, capaz de garantir o sucesso de uma ação coletiva. O bando, todavia, não é como um corpo de exército, pois possui uma hierarquia muito rudimentar. Não se aproxima nem mesmo de formas menos organizadas de entidades coletivas, como os batalhões civis participantes de uma guerra ou mesmo as forças volantes usadas no Nordeste para perseguição e extermínio dos cangaceiros. Assemelha-se mais a uma horda sob a liderança de um chefe único.

Esses bandos constituem geralmente unidades compostas de no máximo 30 membros. Há motivos para isso. A par das razões de fácil deslocamento, “representa o limite”, mais ou menos, do que pode ser dominado por um líder de qualidades médias sem organização e disciplina, como eram capazes de manter os cabeças de bandoleiros, pois unidades maiores levam a sucessões” (Hobsbawn, 32).

Há exemplos disso no Brasil. Quando o bando Lampião se tornou numeroso pelas exigências de uma ação mais complexa, surgiram competições que ameaçavam sua liderança. Lampião, em condições normais, operava com um bando cuja composição variava entre nove e vinte e dois membros, mas tinha uma forte influência sobre bandos que agiam isoladamente.

A vigência do bando é em geral de curta duração. É o que acontecia com o bandoleirismo dos países mediterrâneos da Europa, onde os bandos duravam em média de dois a três anos e no máximo de quatro a seis. Houve apenas um caso registrado de bando que durou 20 anos, mas tratava-se de um grupo pouco expressivo, que vivia bastante isolado, nos confins do Latium.

No Brasil se bem que tenha havido bandos de pequena duração, entre o último quartel do século passado e o primeiro deste, há pelo menos dois exemplos que fogem à regra. O bando independente de Lampião durou dezessete anos – de 1921, quando assumiu a liderança do bando de Sinhô Pereira, que abandonara o banditismo, até 1938, quando foi chacinado. O bando de Antônio Silvino durou quase 15 anos sob sua chefia, de 1899 a 1914, quando foi preso e condenado.

A duração do bando depende quase sempre do grau de tensão da problemática social vigente na região. No Brasil, essa tensão se tornava mais crítica no período das grandes secas com o abandono em massa da zona rural, propiciando os assaltos às cidades e os saques. Esses bandos dirigem sua ação, embora sem possuir uma consciência objetiva disso, contra os representantes do poder institucionalizado, como autoridades políticas, polícia, fazendeiros, comerciantes; como diz Hobsbawn: “as vítimas características do bandido são os inimigos quinta-essenciais do pobre”.

A morte por traição é o fim comum 

Num sentido mais específico do resultado, tanto pode ser a morte, como a prisão do bandido, algo que marque um ponto final na vigência do bandoleiro. A vida do bandido social é como que uma marcha inexorável para a tragédia, para o fim. Geralmente, só se tem em mira a tragédia dos outros que ele próprio inflige com seus atos de violência. Porém quanto mais ele age, quanto mais agride e danos provoca, tanto mais a tragédia dele e dos companheiros se avizinha. Ele, em essência, é um desamparado, um ser lançado ao jogo das situações. O desamparo decorre mais da sua falta de objetividade e consciência que dos resultados concretos de sua ação. É justo admitir que, no fundo, existe um certo ardor de liberdade e de justiça que o move, mas a tragédia social do bandido reside na impotência para consumar na prática a totalidade de seus anseios, que permanecem indefinidos. No final ele parece perdido, sem compreender as regras dominantes da sociedade que o produziu e o poder coercitivo do Estado que o persegue.

Nessa perspectiva da tragédia que o espera em razão da sua fraqueza, é que persiste um traço predominante na história de quase todos os bandidos sociais: o fracasso de sua audaciosa empresa, cujo resultado tanto pode ser a prisão, como a morte por traição. É interessante observar que quase todos os grandes bandidos têm um fim comum: morrer atraiçoado. Juliano na Sicilia ou Lampião no Brasil.

O problema é muito simples: por representar um perigo para todos, um inimigo público, muitos estão sempre fazendo muitas coisas que visam a atingi-lo. Diga-se: muitos e não todos, porque há sempre uma parcela – em geral, os pobres – que se identifica, de uma forma ou de outra, com o bandido, protegendo-o. Mas, o seu destino é ser derrotado e, principalmente, ser traído.

Coroando o espetáculo final, mas lhe dando um toque tragicômico, o sistema legal representado pelas forças de repressão, para esconder a sua própria impotência, reivindica o mérito da captura e da eliminação do bandido, como aconteceu com Lampião, perseguido pelas polícias pactuadas de cinco estados do Nordeste. Com ele, a confiar nos depoimentos e relatos dos que trataram do assunto, adquire ressonâncias de verdade o provérbio corso: “assassinado depois de morto como um bandido pela polícia”.

Sem tecnologia avançada

Por pertencerem a uma sociedade rural economicamente atrasada, e serem com efeito um produto dela, os bandidos sociais praticam seus atos sempre condicionados pelo desenvolvimento dessa sociedade. Se o meio rural não conhece instrumentos próprios de uma tecnologia mais avançada do que aquela que está diretamente ligada ao processo de trabalho e ao sistema de domínio territorial, ou mesmo, se conhecendo, não os utiliza, os bandidos sociais procedem como todas as pessoas de sua região, no que toca ao uso de instrumentos, seja quanto aos meios de agressão, seja quanto aos meios de defesa.

Assim é que quase não se conhecem bandidos rurais que tenham manipulado meios de tecnologia mais desenvolvida do que a conhecida pelo seu meio ambiente desde os meios de transporte e comunicação até as armas. Não se conhecem bandos que utilizassem trem, automóvel ou caminhão, para se transportar de um lugar a outro ou de um modo sistemático, telégrafo, telefone, rádio, para se comunicar à distância. Os casos verificados se arrolam à conta de exceção, não de uma regra.

No caso do banditismo nordestino, no Brasil, tal situação é claramente observável pela análise de quase todos os relatos. As próprias condições ambientais dificultavam que fosse o contrário. Não há notícia de se ter visto o bando de Lampião transportando-se por trem, caminhão ou em caravana de automóveis. Pela própria natureza da sua atividade, os cangaceiros agiam sempre fugindo às estradas de ferro ou de rodagem. Andavam a pé ou a cavalo. O mesmo pode se dizer de Antônio Silvino. Um atestado cabal dessa assertiva está na hostilidade que ambos devotavam às estradas que se abriam: Silvino, à ferrovia, chegando até a assaltar as obras da Great Western; Lampião, às rodovias, mandando por várias vezes audaciosas recriminações a governadores e ao próprio presidente da República (no caso, Washington Luís).

Houve casos em que Lampião se utilizou do telégrafo (mais deste) e do telefone como meios de comunicação, mas em situações muito esporádicas, pois a norma desse chefe de bandoleiros era enviar mensagens através de recados ou quase sempre bilhetes que ficaram famosos pela objetividade e concisão.

Quanto às armas, nunca se viu no Nordeste um bandoleiro com metralhadora, privativa de algumas forças legais. Os bandidos usavam armas brancas e armas de fogo, é verdade, Mas a maioria usava como arma branca o punhal padronizado de 76cm de lâmina e a faca, conhecida comumente como lambedeira. As armas de fogo usadas por quase todos os bandidos eram a carabina do tipo cruzeta, com carga de repetição de 10 a 15 tiros, calibre 44, e o revólver Colt Cavalinho ou Smith Wesson, calibre 38. No máximo portavam a pistola Parabellum com dois carregadores, com calibre de 9mm.

Há evidentemente exceções. A principal refere-se à qualidade das armas do bando de Lampião, depois da visita a Juazeiro no Ceará em 1927, onde lhe foi dado, além de uma patente de Capitão, armamento novo as cruzetas foram substituídas por fuzis tipo 1908, mais modernos e muito mais potentes. Essas armas deveriam ser utilizadas contra a coluna Prestes, mas não foram.

A teoria sociológica do carisma

A capacidade de prover em certos momentos o atendimento de todas as necessidades que vão além da rotina diária se apoia geralmente no carisma. A satisfação das necessidades no contexto da vida social se processa quase sempre através de um sistema que tem como fundamento a rotina normal. As lideranças, por isso mesmo, se fazem e se consolidam em função de uma base institucional que representa a um só tempo a fonte do poder e serve de suporte ao reconhecimento da autoridade. Há um caráter de permanência que, ao nível de vida em sociedade assegura o funcionamento do sistema e autoriza a adoção de uma série de procedimentos que produzem resultados positivos e certos.

Max Weber definiu a burocracia e o poder patriarcal como instituições de rotina diária, consideradas pelo aspecto da permanência.

 “O poder patriarcal, especialmente, tem raízes no atendimento das necessidades frequentes e normais da vida cotidiano. A autoridade patriarcal tem, assim, a sua origem na economia, ou seja, nos ramos da economia que podem ser satisfeitos pôr meio de uma rotina normal. O patriarca é o “líder natural” da rotina cotidiana. E, sob esse aspecto, a estrutura burocrática é apenas a contra-imagem do patriarcalismo, transposta para a racionalidade. Como estrutura permanente com um sistema de regras racionais, a burocracia modelada de forma a atender as necessidades previstas e repetidas pôr meio de uma rotina normal” (Max Weber, Ensaios de Sociologia, 283).

Toda vez que a satisfação das necessidades foge ao esquema rígido da rotina diária, a solução se opera através de uma liderança natural de conteúdo carismático. Isso ocorre geralmente em épocas de crise, quando o sistema institucional vigente é posto à prova e fica abalado por força da impossibilidade de uma solução pelos processos de rotina, como no caso de grandes calamidades, derrocadas econômicas, guerras, revoluções, crises éticas profundas etc.

É justamente em ocasiões dessa natureza que surge a figura do “salvador”, o líder que indicará o caminho, ocupando o lugar dos titulares da rotina, geralmente possuído de uma força e de uma personalidade capaz de inspirar confiança no restante das pessoas, magnetizando-as totalmente como portador de qualidades acima dos poderes humanos. “Os líderes naturais nas dificuldades foram os portadores de dons específicos do corpo e do espírito, dons esses considerados como sobrenaturais, não acessíveis a todos” (Max Weber).

A história humana está pontuada de situações desse tipo. Muitas vezes o líder carismático não está consciente da força e da eficácia de seus dons. Mas os atos reais que pratica e os resultados produzidos fazem com que as pessoas que o seguem o vejam como tal – um ser aureolado de uma significação providencial e cuja liderança não pode mais ser dispensada.

A conduta do portador do carisma foge ao nível de qualquer avaliação racional por parte daqueles a quem dirige. E ele está mesmo fora de qualquer processo que tenha como fundamento um padrão de racionalidade. Assume a liderança ou dela abdica, cumprida a missão, sem obedecer a qualquer ordem de acesso ou determinação em contrário. Não conhece meios regulares de ação, nem age em função de qualquer recompensa. A sua única fonte de poder é o seu próprio carisma.

“O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna. O seu portador toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência a um séquito em virtude de sua missão. Seu êxito é determinado pela capacidade de consegui-lo. Sua pretensão carismática entra em colapso quando sua missão não é reconhecida pôr aqueles que, na sua opinião, deveriam segui-lo. Se o aceitam, ele é o senhor deles – enquanto souber como manter essa aceitação, “provando-se”. Mas não obtém seu “direito” por vontade dos seguidores, como uma  “eleição”, mas acontece o inverso: é o dever daqueles e quem dirige sua missão reconhecê-lo como seu líder carismaticamente qualificado”(Weber, 285).

Há dois fatores que substanciam a natureza carismática de quem está investido em determinada missão: a sua qualificação pessoal e seu valor provado. Tudo nele é isento de valor, tomado isso de uma perspectiva externa, porque não obedece a qualquer sistema ordenado de fatores e juízos consagrados pela rotina. O líder carismático não manifesta qualquer conduta econômica racional, por isso não age com intuito de obter lucro para si. Rejeita sempre os ditames de uma economia ordenada e se apropria de bens materiais ou símbolos econômicos (dinheiro), tudo isso feito como uma necessidade dos procedimentos que deverão levar ao êxito de sua missão. Há como que um magnetismo ético determinado pela missão que absorve o portador do carisma e envolve todos os que o seguem, confiam nele, respeitam sua vontade e lhe obedecem cegamente. À volta da autoridade carismática estabelece-se um círculo de desprezo por tudo o que seja permanente e rotineiro. Instaura-se o império da instabilidade.

Weber sustenta que o “carisma puro não conhece outra “legitimidade” a não ser a advinda da força pessoal, ou seja, a que está sendo constantemente submetida à prova”, e que o herói carismático não deduz a sua autoridade de códigos e estatutos ou costume tradicional, como em várias formas de investidura no poder.

“O líder carismático ganha e mantém a autoridade exclusivamente provando sua força na vida. Se quer ser profeta, deve realizar milagres; se quer ser senhor da guerra, deve realizar feitos heroicos. Acima de tudo, porém, sua missão deve ser “provada”, fazendo que todos os que se integram fielmente a ele se saiam bem. Se isso não acontecer ele evidentemente não será o mestre enviado pelos deuses”. Max Weber, 287).

Tal consideração do carisma é muito importante, porque o líder carismático não tem que dar satisfação de suas responsabilidades a ninguém, senão àqueles a quem dirige e que formam o círculo limitado de sua missão, àqueles que reconhecem o seu poder pela força dos atos e dos fatos. Ele vale pelo que provou ou tem provado e todo conceito que se faz dele é sempre a partir do significado de suas qualidades, isto é, de sua qualificação pessoal. Pela força do carisma, ele é o portador do direito e da justiça, disseminador do bem, freio às potências do mal, o guia, o salvador de todos.

 A personalidade carismática 

“Os homens que ficaram com ele foram esses: Antônio Rosa, Meia Noite, Joaquim Coqueiro, Plínio, Bem-te-vi, Patrício, Raimundo Agostinho, João Genoveva, Pedrão, Zé Dedé, José Melão, Laurindo, João e Antônio Mariano, além de seus irmãos. Outros já tinham parado. Acredito que esses mesmos acabaram saindo para outras zonas. Do pessoal que morreu com ele nos Angicos eu não conhecia nenhum”.

Essas palavras de Sinhô Pereira (Osvaldo Amorim, Jornal do Brasil, Caderno B, 25.02.69), o primeiro e único chefe de Virgulino Ferreira da Silva, dão bem a medida da qualidade e do poder de liderança de Lampião, chefiando um bando que durante quase vinte anos de lutas, assaltos e mortes desafiou o poder das autoridades constituídas, espalhou o terror por estados inteiros do Nordeste, mas que, embora modificado na sua constituição, jamais teve outro chefe.

“Lampião nunca foi preso. Ele e seus irmãos foram até morrer sem ser presos” (JB, idem).

Só a morte interrompeu essa liderança que não se transferiu a mais ninguém, apesar dos esforços de Corisco, ao desenvolver obstinada ação por mais de dois anos, sob o signo da vingança, pelas caatingas. As balas alimentaram a rebeldia desorganizada e primitiva dos bandidos nordestinos, e as balas sepultaram para sempre o cangaço no Brasil. A tragédia dos Angicos, em Sergipe, em 1938, corta a trajetória de um líder carismático. Lampião, que já mostrava sinais de abatimento e cansaço, parecia acreditar-se com a missão cumprida.

As condições objetivas do meio rural nordestino, na primeira metade deste século, favoreciam enormemente (e, por incrível que pareça, ainda favorecem, guardada a necessária relatividade, já que coexistem formas de crimes de mando com estruturas organizadas de segurança) a presença de tipos de denominação de inspiração carismática, que se nivelavam através de representações as mais variadas.

A estrutura agrária dominante, representada por enorme atraso econômico, o exagerado misticismo das populações incultas, a glorificação da violência como comportamento ético, fonte de poder e forma natural de controle, a submissão cega à vontade das oligarquias – tudo isso facilitava e chancelava o exercício de um personalismo que se manifestava quase sempre pela representação do carisma.        Os desastres da natureza, como as secas e as epidemias, completavam o quadro, pondo, periodicamente, as populações sertanejas à mercê das qualidades e da força de portadores de carisma, e gerando as situações propícias a que esses valores fossem continuadamente, até indiscutivelmente, provados.

“Esse carisma que tem seu maior foco de origem na religiosidade alcança também status de prestígio e de celebridade através do poder econômico, da função política e do exercício de força. Durante muito tempo, no interior, prevaleceu um triângulo dessa força carismática, formado através de três figuras exponenciais: o padre, o coronel, e o chefe político. Muitas vezes, essa representação era acumulada: o padre também exercia funções políticas ou o coronel, que além da força econômica tinha o papel de chefe político”. (Souza Barros, Contraste nas Sociedades Tradicionais, 33).

Quem quiser desfiar o novelo histórico do processo que permitiu a configuração desse quadro irá fatalmente mergulhar numa série de fatores cujas raízes se encontram no período colonial – melhor, nos anos de consolidação da Colônia – cujo fundamento primeiro estava na luta em defesa da propriedade territorial. Mas outros fatores de influência também estão presentes: a salvação das pessoas pela fé religiosa e o domínio político dentro da vida comunitária. Em tudo isso predominava uma legítima transferência de poder ao padre, para guiar as consciências; ao patriarca, para defender e pôr em funcionamento os mecanismos institucionais da sociedade, incluindo-se aqueles relacionados com o poder político e aqueles que diziam respeito à integridade física e moral das pessoas.

A pobreza e a insegurança das populações pelas agruras de uma natureza cruel selavam o acordo de conformismo e impunham uma mentalidade de protecionismo, que acabavam por justificar todas as formas de mandonismo, exercido quase sempre de modo desenfreado pelas chefias locais. Desse modo, o chefe personificado na figura do coronel era para todos o senhor da guerra, dirigindo os atos de conquista ou de defesa, e o senhor da paz, presidindo as disputas, distribuindo a justiça e provendo as necessidades econômicas da população.

“Sem organização de qualquer tipo, sem elos de comunidade entre os do povo, crescia o poder vertical dos coronéis fortalecendo a estrutura de mando e um equilíbrio que seguramente apenas beneficiava o exercício da hierarquia absoluta”. (Souza Barros, 33).

A representação do senhor da guerra dá-se frequentemente com a figura do coronel. Um exemplo odioso, no Nordeste, é a presença significativa do coronel José Pereira, da cidade de Princesa na Paraíba, nos combates ao bando de Lampião, chegando ao ponto de sair com seus comandados (jagunços, em geral) para persegui-lo no território de Pernambuco. Essa legitimação carismática da ação do coronel se apoia na defesa das instituições a ele transferida de forma desorganizada na sua função política. Nesse papel, ele age de forma equivalente ao papel primitivo do rei na guerra, exercendo uma missão heroica.

No interior do Nordeste, a influência do padre também leva a que ele frequentemente proceda no papel do senhor da paz. Em momentos de crise, como no caso do flagelo da seca, ou na assistência a populações mergulhadas em profundo misticismo, ele assume qualidades carismáticas de um senhor sacerdotal. Esse papel pode ser exercido por um líder messiânico em cujo poder e missão os seus seguidores têm uma confiança cega e incontida.

Em todos esses casos há um fator preponderante: a presença provada do poder carismático. No caso do representante de um carisma religioso ou mágico seja seu portador um representante institucional da religião, o padre, ou um representante de fato, o messias, perante os fanáticos de uma seita, ou mesmo um feiticeiro (no tipo popular do curandeiro), ele deve provar o seu poder através de atos que infundam e aumentem a confiança nos seus seguidores.

Durante decênios, o Nordeste foi palco dessas representações. O padre Cícero Romão Batista- o Padim Ciço dos cangaceiros e fanáticos – representou o papel de líder carismático em Juazeiro do Ceará, projetando sua imagem e influência por vários Estados nordestinos e colocando-se como centro de atração do misticismo de legiões de fanáticos.

Na Bahia, em Canudos, durante o último quartel do século passado, tornou-se legendária a figura de Antônio Conselheiro como um legítimo carismático. E por muitos anos, como até hoje, continuaria muito grande o prestígio da figura do curandeiro em certas comunidades do interior.

O carisma se nutre da instabilidade. É a sua fonte. Instabilidade social, econômica, espiritual ou qualquer outra. Na verdade, nasce no bojo de uma crise, que provoca ruptura no sistema de poder – seja o do corpo, seja o da alma. O carisma de que é portador o senhor da guerra está relacionado com o rompimento de um sistema de regras, cujo restabelecimento só pode ser alcançado pela presença do herói carismático.

No Nordeste, a luta entre os coronéis pelo domínio da terra ou pela manutenção do status de prestígio, que assegurava o domínio político, sempre se generalizou em formas de agressão pelo confronto de grupos armados, passando da vontade de mando às vinganças pela violência desenfreada. A ação carismática substituía o poder de polícia ausente. Quase sempre, um grupo pelo uso da força subjugava outro, estabelecendo o mando total na localidade ou região, ou então as lutas se tornavam infindáveis, sempre renovadas, caracterizadas como lutas entre famílias – os chamados inimigos figadais.

“Criava-se, assim, outro tipo de carisma com o culto sempre lendário das façanhas do chefe do cangaço, que iria assumir proporções tão desmedidas a ponto de competir com a dos grandes vultos messiânicos” (Souza Barros, 34).

Dos grupos armados para sustentar as refregas continuadas, atritos sucessivos, vinganças, perseguições, nascia o bando – e, com ele, a legenda de um chefe, um líder carismático, um senhor da guerra. Assim foi a história de Lampião, desde as encostas da Serra Vermelha, em Pernambuco, nas lutas com a família Gomes Jurubeba – “os cabras de Nazaré” – e os jagunços de José Saturnino, até a gruta de Angicos, em Sergipe, surpreendido pelas tropas do tenente Bezerra. Assim foi, anos antes, a história de Antônio Silvino, desde a briga com a família Ramos, que assassinara Batistão, seu pai, até ser ferido à traição, e preso pelo major Teófanes Ferraz, na Lagoa do Lage, em Pernambuco, depois de 15 anos justiçando e aterrorizando o sertão. Da luta, nasce o bandido e começa também uma lenda.

A celebridade que colocou o bando do Lampião como elemento referencial na história do Nordeste brasileiro, seja como o terror dos sertões, seja como personagem que se tornaria fonte inspiradora de obras da arte erudita e popular, apoia-se em representações de base essencialmente carismática. Toda sua vida de lutas e mortes está fortemente marcada pelo carisma de um autêntico senhor da guerra, exercitando uma ação (ou missão) que em tudo fugia aos ditames da rotina normal para se consumar. Esse carisma teve representações várias na sua trajetória de homem e de bandido, condição a que chegou menos por vocação que por necessidade.

A análise de sua vida e de seus atos reclama, de início, a referência a alguns pontos que parecem essenciais. Ele jamais agiu, a confiar no que relatam os estudiosos do fenômeno do cangaço, de modo que demonstrasse um comportamento intencional de objetivo econômico, com fins de lucro, ou pensando em formar uma renda pecuniária para si, deliberadamente. Abstraindo seus atos de qualquer juízo moral, tem-se como evidente, para efeitos de configuração de sua personalidade carismática, que os resultados de sua ação se deveram basicamente à sua qualificação pessoal e se produziram pelo valor provado no processo de um conjunto de iniciativas como ser humano real, isto é, um homem que vivia conforme sua natureza e seu ambiente.

A caracterização do carisma de Lampião requer a apreciação de uma série de aspectos, que vão desde sua adolescência até os dias finais de sua trajetória de bandoleiro, para uma conclusão em termos globais, como se verá adiante.

A SAGA DO VAQUEIRO

Ainda muito jovem, um adolescente, Virgulino Ferreira já era um homem famoso no círculo da comunidade rural a que pertencia como vaqueiro e domador de animais bravios, como registra Optatos Gueiros:

“Em 19l6 já era um consumado vaqueiro. Amansava cavalos, burros, jumentos e, nesses misteres, conquistou fama”.

O próprio Virgulino, através do relato desse autor, lembrava episódios desses tempos em que mais parecia um Hipólito de verniz euripedeano auferindo as delícias bucólicas dos campos de Trezena.

“Eu reputo a profissão de vaqueiro muito mais estúpida e perigosa do que a minha vida de cangaceiro. Éramos vinte e um vaqueiros em uma pegada de gado e, cada um de nós, nos esforçávamos para arrebatar a glória do mais afamado dos companheiros. Nas quebradas da Serra Vermelha, quando corríamos um renomado orelhudo, consegui puxar o bicho mas bati no cotovelo de um imbuzeiro baixo e todos os demais vaqueiros bateram do mesmo modo, mas aconteceu que o último não chegou. Deixamos o boi amarrado e encaretado, fomos procurar o companheiro, quando chegamos debaixo do imbuzeiro malcriado, lá estava o camarada na tulha. Tinha recebido uma cotovelada tão danada que caiu fechado, morrendo logo, e houve alguns de nós que vomitaram sangue, sendo preciso ir à purga de cabacinho” (O.Gueiros, Lampião, 18 e 19).

O futuro bandido era, por esses anos de adolescência, um exímio executor de vários ofícios. Operava com perfeição artefatos de couro e os vendia na feira de Nazaré, nos comércios de Vila Bela, São Francisco, Flores e Triunfo onde era muito conhecido pelas suas habilidades de vaqueiro e domador. Como tocador de sanfona de oito baixos, era o mais disputado animador das festas da região.

“No começo da vida, revelou-se Virgulino Ferreira um gênio em tudo que pretendeu realizar. Foi ótimo seleiro, currieiro, agricultor, comerciante, tocador de sanfona, poeta e o mais afamado vaqueiro e domador de cavalos e burros bravos de Vila Bela e, por último, ótimo parteiro e enfermeiro” (O. Gueiros, op. cit., 12).

Essas virtude épicas do atleta rural – o vaqueiro, o domador de muares – sempre despertaram a admiração e o entusiasmo entre a população sertaneja, como exemplo para os jovens, símbolo de aventura e coragem, de capacidade de enfrentar e nunca rejeitar riscos. Toda uma saga está construída à base de centenas de episódios cujos protagonistas passaram do heroísmo ao mito, como exemplos de destemor e ousadia.

“Quando se queria falar em Vaqueiro bom e quem montava bem, se dizia: montar assim só Virgulino; derrubar boi no mato assim, só sendo parente de Virgulino”. (O. Gueiros, 38).

Tudo conforme a natureza áspera, violenta e cruel, exigindo do homem muito mais que o simples pendor para resistir às adversidades.

Virgulino na adolescência pertenceu a essa estirpe de camponeses.

“Tornou-se famoso nas vaquejadas. Pegava e encaretava boi até no escuro. Sabia dançar. Era considerado um pé de ouro pelas amiguinhas donzelas da Ribeira. Nos bailes e festas Virgulino era disputado”. (Aglae de Oliveira, Lampião, Cangaço e Nordeste, 23).

Era, como se vê, um mago para a ética primitiva daqueles rincões.

O ESTATUTO DA CORAGEM

A acusação injusta e solerte de que teria com os irmãos furtado uns chocalhos, umas escaramuças juvenis por motivos fúteis, inimizades, perseguições, que culminaram com o assassinato do pai e a morte da mãe dezenove dias depois de desgosto, formaram a caudal de ódio acumulado que desembocaria num sentimento grosso de vingança, para lavrar a honra da família ultrajada – eis o universo moral dos primeiros passos de Virgulino Ferreira e seus irmãos Antônio e Livino, a caminho da porta escura do banditismo. A ausência de justiça põe em vigor a lei da bala. As tentativas de acomodação não bastam. Há sempre o resíduo moral que exige uma reação direta pelas próprias mãos.

Com Lampião foi assim, como fora antes com Antônio Silvino.

“Todos os cangaceiros são dados inicialmente como vítimas da injustiça. Seus pais foram mortos e a justiça não puniu os responsáveis. A não existência desse elemento arreda da popularidade o nome do valente. Seria um criminoso sem simpatia. O sertão indistingue o cangaceiro do homem valente. Para ele a função criminosa e acidental. (…). O essencial é a coragem pessoal, o desassombro, a afronteza, o arrojo de medir-se imediatamente contra um ou contra vinte”. (Luís da Câmara Cascudo, Vaqueiros e Cantadores, 122).

Um exemplo típico desse caráter está nas próprias palavras de Virgulino, no início de sua vida de bandido.

“No que eu acabar com os Nogueira ou expulsá-los da Serra Vermelha, como eles fizeram com meu pai, já poderei morrer, mas se antes disso uma bala doida me pegar, “vou”, mas muito aperreado e o coração preto” – confessava ele a um coronel sertanejo pelos idos de 1917 ( O. Gueiros, op. cit., 20).

O destino de Virgulino se decidiu por impulso de um conjunto de qualidades que já fluíam no sangue do vaqueiro exímio e decidido dos campos de Vila Bela. O corpo jovem e a ideia fixa na afronta recebida a tudo impeliam.

“O sertanejo não admira o criminoso, mas o homem valente”. (Cascudo, idem, 122).

Em resposta a um crime odioso, outro crime, dezenas de crimes, talvez centenas. O futuro dirá.

“Todos avistaram José Ferreira assassinado. Ficaram como feras acuadas. Em sinal de protesto Virgulino e os irmãos juntaram a roupa preta, queimaram-na e juraram que, daquele dia em diante, o luto seria a cartucheira, o rifle, e tiroteios, até a morte” (Aglae Lima de Oliveira, op. cit., 37).

Isso foi em abril de 1920, começo de uma era e também de uma lenda.

UMA AÇÃO EFICAZ E DURADOURA

Ferozmente perseguido, o criminoso Virgulino tornou-se bandido; primeiro, chefiando no bando de Sinhô Pereira; depois, chefiando grupos por um tempo tão longo que até hoje impressiona os estudiosos do banditismo. Começou praticamente como chefe, com pouco mais de 20 anos de idade.

É difícil conceber como um homem rude e inculto, que falava pouco, pôde chefiar um bando de homens armados e dirigir uma empresa arriscada durante tanto tempo, percorrendo as terras de sete estados nordestinos, invadindo vilas e cidades e travando numerosos combates com forças legais e grupos que tinham, para esse fim, um poder delegado. A compreensão do fenômeno será possível se encararmos Lampião como a representação carismática de um autêntico senhor da guerra, com um poder que ultrapassava o da autoridade doméstica, no sentido de prover as necessidades da vida de seus seguidores.

Pela força do carisma, dedicava-se ele à liderança do conflito violento que estabelecia entre a sua comunidade – o seu bando – com outra comunidade humana, a dos que o perseguiam. Assim a atividade de Lampião tendia para o domínio político, de acordo com as regras de sua liderança carismática. Desde 1920, quando o pai foi assassinado, até 1927, quando à frente de mais de uma centena de bandoleiros realizou a malograda invasão de Mossoró, no Rio Grande do Norte, a trajetória de Virgulino operou-se no sentido de tornar-se ele um chefe de bando com uma objetividade que faltou aos bandoleiros que o antecederam.

No seu depoimento, Sinhô Pereira considerava “até esquisito” que ele, sendo o mais novo, chefiasse os irmãos, ao ingressar no bando. Quando Sinhô Pereira abandonou o banditismo, mais por causa do reumatismo que dos conselhos de padre Cícero Romão, conforme confessou mais tarde, Lampião assumiu a liderança do bando, com pouco mais de 20 anos então. Daí por diante, a composição do bando se modificaria bastante, pela morte, prisão ou desistência de seus integrantes, porém prosseguiria sempre mais numeroso, agora reforçado na estratégia geral pela adesão de outros grupos menores, que agiam isoladamente mas obedientes a lideranças de relativa importância, para os choques com forças volantes também numerosas.

No curso de quase dois decênios, até o massacre de Angicos, em 1938, o cangaço como forma de banditismo social assumiu características de uma rebelião de tipo primitivo, com um contingente de homens que atuava sob as ordens de um chefe, Lampião. Essa liderança possuía inegavelmente natureza eminentemente carismática, pois se apoiava em dois fatores essenciais: as qualidades pessoais de bravura e decisão reveladas pelo chefe e o valor provado em múltiplas ações, que inspirava a confiança dos adeptos da campanha.

Muitos analistas do cangaço têm assinalado feitos de Lampião e seu bando que confirmam tais qualidades pessoais de liderança.

“O sistema de combate entre bandos irregulares não pode ser outro senão esse da guerrilha. E era esse o sistema que Lampião adotara, acrescendo ainda que o famigerado cegueta, não obstante ser quase analfabeto, era inteligentíssimo e cedo compreendeu o valor tático das retaguardas. Dava tanta importância a esse processo de luta que mesmo no caso de ataque de surpresa em que estivesse, todos reunidos, ele sempre encontrava jeito de cindir os comandos. Fazendo parte deles escapar-se com tal açodamento que dava a ideia de fuga precipitada, mas que na realidade era simplesmente um perigoso ardil”. (…) “E diga-se o que é certo, em matéria de estratégia, Lampião conseguiu pôr no chinelo seus mais caracterizados inimigos” (Rodrigues de Carvalho, Serrote preto, 219).

Optato Gueiros observa que, de 1922 a 1926, o banditismo atingiu seu ponto culminante no Nordeste, “e teve assim sua época áurea”, proporcionando aos comandantes de forças volantes, depois de prolongadas e exaustivas lutas, meios para nova orientação do sistema de combate, pela experiência dos revezes sofridos na luta contra Lampião.

“Não resta a menor dúvida, tinha o celerado em mãos o trunfo que o colocava em posição de superior vantagem aos seus perseguidores. Quando desejava, retraía-se de modo admirável, fugindo ao contato com as forças durante meses até ano: como aconteceu quando atravessou o rio São Francisco para o Estado da Bahia em 1928.O terrível chefe-de-grupo mui raramente disparava sua arma em campo raso, só o fazendo bem entrincheirado, fugindo a tempo de pressentir estar sendo envolvido. Como um consumado militar, sabia cobrir a retaguarda para dar tempo à retirada e conduzir os feridos. Com perícia invejável, ocultava as pegadas e demais vestígios, a ponto de rastreadores acostumados a seguirem onças, veados e tatus pelos rastos, até abatê-los, perderem por completo as suas marcas plantares” (O. Gueiros, “Lampião”, 31, 32).

Segundo esse oficial pernambucano, “geralmente discutia-se o mistério da fuga de Lampião de todos os encontros havidos com a polícia enquanto ele se punha a salvo”. Residia justamente nesses estratagemas um dos principais motivos que mantinha a coesão, a fidelidade e a disciplina do grupo: as qualidades pessoais do chefe asseguravam aos companheiros a certeza – ou pelo menos mantinha acesa a esperança – de que não seriam facilmente apanhados. E isto era aprovado em cada situação com que se defrontavam. Essa liderança adquiriu um caráter de oficialização quando, à sombra da autoridade também carismática de padre Cícero, Lampião recebeu em Juazeiro no Ceará uma patente falsa de Capitão para combater a Coluna Prestes.

Pelo documento passado por um funcionário federal Pedro Albuquerque Uchôa, dois outros bandidos receberam patentes: Antônio Ferreira, irmão de Lampião, primeiro tenente, e Sabino Barbosa, segundo tenente. Esse fato criou um problema para Lampião, posteriormente, quando pela primeira vez, e talvez única, ele viu sua liderança contestada e posta em perigo.  Com a patente constante do documento de Juazeiro, o bandido Sabino Barbosa achou-se então no direito de entrar em competição com o chefe pela liderança do grupo. Ameaçado, Lampião resolveu o problema eliminando Sabino Barbosa.

Lampião exercia sua liderança com rigor até nos pormenores. Não permitia nenhuma iniciativa no grupo a não ser por seu intermédio ou com a sua autorização. Em todas as campanhas, a disciplina se mantinha pela obediência cega dos comandados. Há exemplos de sobra. Em 1925, no assalto à Vila pernambucana de Custódio, Lampião agiu de maneira que a todos surpreendeu: não praticou uma violência sequer contra a população. A vila cheia de cabras, todo mundo esperando algo, mas nada aconteceu; tudo o que comprou nas vendas e bodegas pagou. Houve apenas um episódio insólito: chegou à estação telegráfica e passou um telegrama com desaforos e descomposturas a Sergio Loreto, então governador de Pernambuco, e não pagou, com a justificativa irônica de que “o telégrafo é do governo e telegrama para o governo não se paga, porque fica tudo em casa”.

Nesse mesmo dia, um alfaiate que fazia uma roupa para ele perguntou-lhe:

“Capitão é verdade que esses homens são muito valentes?”

“Home, qui us cabra são atrivido, lá isso são. Mas cumigo eles já sabem cumo são as cumida…E têm qui cumê sem ingüiá” – respondeu Lampião”. (Rodrigues de Carvalho, op. cit., 248 e segs.).

Lampião pagou a roupa, os cabras ainda ficaram zanzando pelas ruas de Custódio, depois o bando foi embora.

Para se ter uma ideia do conteúdo carismático que envolvia a liderança de Lampião, parece oportuno referir-se ao diário do coronel Antônio Gurgel, que ficou como refém do bando depois do ataque a Mossoró, convivendo com os bandidos durante vários meses, reproduzido por Nertan Macedo.

 “Toda a gente desejava saber como vivem esses desgraçados. Filhos de um meio áspero composto em grande parte de caatingas e serras pedregosas, contentam-se, desde a infância com muito pouco. Assim, mesmo conduzindo quantias avultadas, não pensam em conforto. E, coisa interessante, sustenta-os a miserável existência uma fé absurda em DEUS, nos santos e no Padre Cícero, que aliás nunca os aconselhou para o mal. Todos trazem habitualmente ao pescoço um rosário, rezando à noite e ao amanhecer, ainda no leito, sentados, a cabeça e o dorso cobertos, conforme o velho hábito dos sertanejos nortistas. Conduzem sempre duas cobertas trançadas a tiracolo, dispostas com tal arte que não despregam, quando usada a tática habitual, rolam vertiginosamente pelo solo para se livrar dos projéteis. Dormem divididos em grupos de dois ou três, à distância. Por ocasião dos saques pertence a cada um o dinheiro e as joias de que pessoalmente se apossam, mas as grandes quantias provenientes dos reféns são repartidas entre os chefes, cabendo a Lampião, o quinhão maior. Na paz, há entre eles disputas violentas: se trocam porém, palavras de grande aspereza, nunca chegam à luta corporal. Quando alguém se alista no grupo, se não traz armas, os bandidos fornecem-nas mediante pagamento imediato ou a prazo, se o iniciado não traz dinheiro. Nas ocasiões de combate são muito unidos e obedecem cegamente à voz de Lampião. É rigorosamente proibido o uso de bebidas no acampamento, e quanto a remédios só conduzem uma aguardente alemã da qual fazem uma panaceia, para todos os males desde as simples enxaquecas aos ferimentos recebidos em combate, variando a dosagem conforme a gravidade da doença”. (Nertan Macedo, Capitão Virgulino Ferreira: Lampião, 157).

O relato do coronel Antônio Gurgel coloca um outro problema muito próprio do fenômeno do banditismo: o da relação entre carismas. No caso presente, trata-se da relação entre o carisma de Lampião e o do padre Cícero Romão, em quem Virgulino e seus comandados acreditavam cegamente. Sabe-se que Lampião foi a Juazeiro, em 1926, a chamado do padre Cícero. Na verdade, o padre Cícero realizava a vontade política do coronel Floro Bartolomeu, deputado federal, em cujas terras (Fazenda Berreiros) Lampião e seus cabras acamparam ao chegar. Mas o fundamental é que Lampião foi a Juazeiro por dois motivos: atender a um chamado do Padim Ciço e atraído pela promessa de novas armas. Lá em Juazeiro sairiam a patente, as armas novas e o compromisso de perseguir a coluna Prestes, que não foi cumprido.

É interessante notar que o carisma do padre Cícero, de conteúdo profundamente religioso, que atraía a Juazeiro legiões de crentes e fanáticos, influiu bastante no bandoleirismo de Lampião, cuja liderança e rebeldia parece ter entrado em declínio proporcionalmente à decadência do poder de influência do Padim Ciço. Em respaldo dessa afirmativa, existem registros de estudiosos do cangaço, segundo os quais, a partir de 1930, a atividade de Lampião, como líder do bando, começa a declinar.

Nas três ocasiões em que Lampião manifestou o desejo de abandonar o banditismo, uma delas foi em decorrência da morte do padre Cícero em 1934. A primeira foi pela morte de seu último irmão, Ezequiel.

“Perdi u gôsto de sê cangacêro, mataro meu irmão, pru derradêro, Izequié Ferrêra, vurgo “Ponto Fino” (fala de Lampião reproduzida pelo cangaceiro Angelo Roque em depoimento a Estácio de Lima, op. cit., 214).

A outra foi em Sergipe, quase perto da tragédia de Angicos, porque segundo Optato Gueiros, estivesse muito doente, e possivelmente tuberculoso.

“Estou morto, não sou mais homem para tão cruel vida, preciso de um retraimento, para  ver se posso viver mais uns dias”. (op. cit., 158).

Todos os relatos são unânimes em assinalar a devoção do Capitão Virgulino pelo seu Padim Ciço apesar de manter sempre um comportamento discreto, como era de seu temperamento.

Curioso, porém, é que desde o desaparecimento do taumaturgo, os principais do bando passaram a perceber no comportamento do Chefe, certos modos apáticos, macambúzios, com a diminuição do espírito de iniciativa. Algo paradoxal ocorrido: um choque efetivo que se poderia acreditar de pequena monta desencadeando, ou antes, pondo em evidência o esboço de uma síndrome de natureza mental.

“Cuma qui o Cumpadre tá sintino farta de proteção de Padinho Ciço!

São ainda referidos, no Rei do Cangaço, daí por diante, e com o perpassar do tempo, habilidade emocional, mau humor predominante, fatigibilidade, e certa baixa nos julgamentos”. (Estácio de Lima, op. cit., 280).

A influência do portador de um carisma religioso – o carisma de senhor sacerdotal que possuía o padre Cícero – parece ter-se conferido um limite à atividade de Lampião, condicionando bastante seu poder de liderança. A interrupção de um – o senhor da paz – atingiu grandemente a vigência do carisma do outro, o do guerreiro.

DE INIMIGO PÚBLICO No. 1 A GOVERNADOR DO SERTÃO

A representação do carisma sob uma influência mágica também esteve presente na trajetória do bandido Lampião.  O exemplo mais claro disso são as mitologias que se criaram em torno de sua pessoa, oriundas de enorme fama que envolvia o seu nome. O bandido social se transforma num mito, em razão do sem-número de aventuras de que é protagonista, das violências que pratica, das perseguições de que é vítima e de um certo dom de ubiquidade que o faz presente em diversos lugares ao mesmo tempo, pelo menos na mente do povo que não vê nele objetivamente um criminoso, mas um homem valente.

Uma das evidências desse traço são as qualidades sobre-humanas de que o bandido é portador na mente popular. Existe até certo ponto uma uniformidade de estandardização entre o comportamento real de Lampião e seu espectro mitológico. Ele viveu sob uma auréola de mitos os mais variados, sendo o que mais se destacava o da sua invulnerabilidade. É por demais conhecida a capacidade de Lampião de fugir aos cercos, de realizar façanhas guerrilheiras que ninguém poderia imaginar. Tudo na atividade dele parecia anormal visto sob a ótica de um comportamento racional. E o fato de ter morrido sem nunca ter sido preso foi responsável por muitas histórias que o davam como um ser sobrenatural. Aliás, segundo Hobsbawn, os camponeses acrescentam a invulnerabilidade às várias outras heroicas e lendárias virtudes do bandido.

A solidariedade popular de que Lampião se beneficiou na imensidão das caatingas resultava deste universo mitológico que envolvia sua vida, tudo em razão de suas aventuras, sua aspiração de liberdade, sua fama de justiceiro, suas façanhas, livrando-se misteriosamente dos ataques dos perseguidores, suas atitudes de generosidade, ao distribuir despojos dos saques com os pobres, seu amor à ostentação e ao esbanjamento (anéis, vestuário carregado de signos, dinheiro, festas), seu heroísmo rude e, principalmente, sua juventude.

É interessante observar que o ponto máximo da celebridade dos bandidos sociais ocorre quando eles ainda estão jovens ou talvez mesmo por serem jovens. Lampião morreu com menos de 40 anos, mas o mito que o envolvia já vinha sendo construído desde os vinte. A imagem dele que se tornou célebre possui conotações simbólicas: óculos, dedos cheios de anéis, chapéu estrelado, peito trançado de cartucheiras, longo punhal com cabo de prata – a mesma que provocava a admiração de jovens sertanejos, que se sentiam atraídos para a vida do cangaço como foi o caso de Volta Seca, ainda uma criança, de dez anos quando se incorporou ao bando de Lampião.

A representação do carisma sob uma influência mágica permitiu o surgimento de uma copiosa literatura popular cantando os feitos de Lampião está conforme à própria dúbia entre DEUS e o Demônio. Esta dubiedade está conforme à própria ação do bandido que não possui objetivos concretos nem uma causa. O certo é que de uma forma ou de outra, Lampião tornou-se personagem de histórias mirabolantes com suas façanhas cantadas em versos pelos cancioneiros:

“Onde anda Lampião/nem izerço marinha/nenhuma tropa de linha/nem batarão navá/ nem as tropa federá/arrudiada de canhão/onde anda Lampião/nenhum cabra podi lá”.(Versos anônimos citados por Renan Monteiro Soares).

Segundo a psicologia popular, morto Lampião, no inferno ninguém pôde com ele.

“Um cabra de Lampião/por nome Pilão Deitado/ que morreu numa trincheira/um certo tempo passado/agora pelo sertão/anda correndo visão/fazendo mal-assombrado. – E foi quem trouxe a notícia/que viu Lampião chegar / o inferno nesse dia / faltou pouco pra virar / incendiou-se o mercado / morreu tanto cão queimado / que faz pena até contar”. (José Pacheco, A Chegada de Lampião no Inferno).

E tão pouco no céu. Numa justa com São Pedro que o impedia de entrar, ei-lo novamente e ousado:

“Abriu na frente o portão / ficou na trave escorado / branco da cor de um finado/quando avistou Lampião / mas com a trave na mão / não teimou de lhe falar / e disse: aqui não se dá / aposento a gente mau / se não quer entrar no pau / acho bom se retirar. Lampião respondeu: / não venha com seu insulto / você é um santo bruto / que ofensa lhe fiz eu? / e mesmo o céu não é seu / você aqui é mandado / portanto está avisado / se não deixar eu entrar / nós vamos experimentar /quem que tem bom guardado”. (José Pacheco, Debate de Lampião com S. Pedro).

Para os poetas populares, ele não ficou nem no céu, nem no inferno.

“No inferno não ficou / no céu também não entrou / por certo está no sertão”. (José Pacheco).

À guisa de conclusão, parece não incidir em erro a afirmativa de que a personalidade de Lampião se construiu através de uma concentração de carisma, vazada na confluência de representações múltiplas. É como se fosse um prisma espelhado, refletindo variadas projeções individuais, que desdobram aos olhos do estudioso quatro formas de carisma, a saber: 1) o carisma lúdicorepresentado pelo vaqueiro exímio e arisco dos dias de juventude; 2) o carisma do guerreirorepresentado pelo chefe do bando, audacioso e respeitado em todo o Nordeste; 3) o carisma do senhor da paz, representado pela devoção religiosa ao padre Cícero Romão que influenciaria muito seu destino de bandido, provedor dos pobres e dos fracos: 4) o carisma de função mágica  representado pelo poderoso mito com que a trajetória de sua vida povoou os sertões e a mente criativa de artistas populares e eruditos.

“Foi um figura contraditória. Assaltou, roubou, matou, incendiou, odiou, atraiçoou, aterrorizou, devastou, avançou, recuou, correu, fugiu, ocultou-se. Também amou, perdoou, deu de comer aos que tinham fome e de beber aos que tinham sede. A uns empobreceu até a miséria total; a outros enriqueceu da noite para o dia”. (Nonato Masson, Jornal do Brasil, Caderno B, 24.01.63).

Assim era o bandido Lampião Governador do sertão, pelo menos para quem não o perseguia, nem foi por ele perseguido.


[1]  Florisvaldo Mattos; poeta, jornalista, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA); membro da Academia de Letras da Bahia. Texto apresentado ao Mestrado em Ciências Sociais, da Universidade Federal da Bahia, em 1972, para obtenção de crédito em disciplina; publicado no Diário de Notícias, de Salvador, BA, em 8/9 e 10.09.74; versão corrigida e constante do livro de ensaios Estação de Prosa & Diversos (Salvador: Memorial das Letras, 344 pp., 1997).

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Florisvaldo Mattos Contributor

Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro da Academia de Letras da Bahia.

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