‘Remédios’ do sertão

Uma escada estreita leva à “Farmácia do Doutor Cumpadinho”, no primeiro andar de uma casa comercial no Beco do Mocó. Sentado estrategicamente, ele acompanha subidas e descidas por um espelho fixado na porta, tal qual um retrovisor de um caminhão.

Ao entrar no estabelecimento, nota-se que as prateleiras já foram bem mais sortidas. Antes eram ocupadas por dezenas de garrafas que continham cachaça misturada com folhas, casca de pau e cobras venenosas. As infusões são tão populares sertão adentro, que admiradores da mistura ao pedir uma dose, dizem “me dê um remédio”. Estes foram e ainda são os medicamentos vendidos há décadas no local.

O responsável pelo estabelecimento afirma que estas misturas são santos remédios para vários tipos de enfermidades. Mas uma hérnia de disco levou Raimundo Barbosa Lima, o Cumpadinho (apelido que ganhou por chamar a todos de compadre), a diminuir o ritmo no seu boteco. Até mudou de local, depois de quase meio século no mesmo ponto.

“Aluguei a parte de baixo e continuei aqui para continuar encontrando os amigos” – explica.

Casa de ferreiro, espeto de pau, diz um adágio. Na sua farmácia não tem remédio curar a dor nas costas que o ataca periodicamente.

Mesmo com as prateleiras mais vazias, a farmácia continua atraindo clientes que buscam curas nas “fôias pôdes”. Bem, se não ficarem bons, pelo menos molham o bico e descem a escada cantarolando antigos boleros e sambas.

Cumpadinho, quase oitentão, não tem a mesma mobilidade para atender a clientela, que some aos poucos por doença, morte ou porque encontraram locais mais aprazíveis. Afinal, a freguesia, mesmo a mais fiel, envelhece ou muda os seus hábitos.

COBRAS VENENOSAS E CACHAÇA

As pingas da infusão de cachaça com cobras venenosas eram especialidade da casa. Uma atração para bebedores e curiosos. É estranho ver os bichos naquela situação. O que restou, umas dez garrafas, não mais estão sendo oferecidas aos clientes.

“Ficaram velhas. Ao contrário de melhorar uma doença e podem é fazer mal” – admite Cumpadinho.

Dentro das garrafas jazem cobras perigosas. Estão ali para serem expostas. Eram dezenas, mas a maior parte foi vendida.

“As pessoas gostam de colecionar. Todas eram venenosas. Numa delas foi colocada uma marrã de cascavel” – diz.

Para alguns, beber a pinga peçonhenta era um ato de valentia. Mas coragem maior era colocar as cobras dentro das garrafas.

“Dava um trabalho danado porque para fazer o efeito esperado as bichas tinham que ser colocadas vivas dentro das garrafas. Tinha que pegar no ‘pescoço’ da danada. Depois a gente enchia de cachaça, com funil, e ela morria afogada, bêbada e feliz” – diverte-se.

O doutor Cumpadinho acrescenta que o “remédio” com animal machucado perdia mercado, porque a clientela não gostava de ver sangue na mistura.

A pinga, segundo ele, é um antídoto natural contra picada de cobra – mas por vias das dúvidas, era melhor tomar o soro antiofídico antes de ser ‘imunizado’ pela cachaça, caso fosse atacado pelo bicho. O “doutor” revelou que algumas pessoas foram curadas depois de tomar a beberagem. Clientes, antes das caçadas, passavam pela farmácia para abastecer as capangas com o contraveneno. A fartura de antes virou umas “cobras pingadas”.

RECEITUÁRIO DE CUMPADINHO

Cumpadinho “receita” a infusão da caatinga de porco contra gastrite e inflamação na garganta, bem como para problemas intestinais; a erva doce serve para aliviar gases; a canela–de–velho é um santo remédio para quem sente dores pelo corpo; o jatobá ajuda a acalmar os nervos. Para gripe deve-se beber Maria Preta e contra a febre uma lapada de quioiô (palavra banta para manjericão) é a solução. Como se vê, há remédio para quase todas as doenças e com automedicação permitida. Mas convém não exagerar na dose.

Folhas, raspadas de pau e cascas de árvores usadas nas infusões são compradas nas feiras-livres. A linha de produção é das mais simples – com exceção das cobras. A matéria-prima é colocada dentro de garrafas cheias de cachaça. O período de conserva dura cerca de quatro meses. Mas com o “agá” de que estavam em busca da cura de um mal, muitos saíam do bar calibrado por várias doses a mais.

“Umas duas dava para curar, mas como eu estava aqui para vender …” – justifica.

Atualmente, o boteco oferece cerca de 30 remédios diferentes.

LOCALIZAÇÃO ESTRATÉGICA

A farmácia foi fundada no Beco do Mocó, como é mais conhecida a rua 7 de Setembro, no centro de Feira de Santana, no final dos anos 60. A poucos metros do Beco da Energia, onde funciona há décadas uma movimentada zona de baixo meretrício, com várias casas do gênero, e a cerca de 200 metros do Velho Zu, o mais histórico dos bregas da cidade, destruído por um incêndio há alguns anos. E também bem perto do Beco do Colégio, onde funcionaram vários destes estabelecimentos. Fica, portanto, em um ponto estratégico para os boêmios.

Antes de se tornar comerciante em Feira de Santana, Cumpadinho foi, como diz, sapateiro de madame em Salvador, para onde se mudou adolescente.

“Fiz muitos sapatos muito bonitos para as mulheres ricas da capital, onde ganhei muito dinheiro, que deu para abrir o meu boteco aqui” – recorda.

Nos dias de folga, de acordo com ele, se divertia nas rodas de capoeira ou de samba no Mercado Modelo, onde bebeu muita ‘fôia pôde’ e aprendeu a arte de misturar com precisão, respeitando as proporções para que a mistura surtisse o efeito esperado.

A decoração do ambiente é um tanto estranha para os ditos padrões do bom gosto. As paredes são enfeitadas com chifres de touro, couro de jacaré, cabeça de veado com chifre, retratos de santos de devoção e um pôster do Flamengo, time pelo qual torce.

O bar não nasceu com o nome atual. Era “Botequim do Cumpadinho”. Foi rebatizado pelo cordelista Francklin Maxado, que o convidou para vender seus remédios antes da apresentação de uma peça na Escola Normal, hoje Cuca, com direito à nova fachada, que foi adotada, e jaleco.

“Vendi tantas garrafas que o pessoal não foi assistir à peça porque ficou de fogo”.

O quase oitentão Cumpadinho segue a vida tranquila de quase “ex-foieiro” contando causos e dando longas e altas risadas. É um gozador.


Fotos de Sílvio Tito

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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