O espetáculo circense da transposição

Este ano completa uma década que Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra (BA) fez pela segunda vez greve de fome em favor da revitalização do rio São Francisco e da população ribeirinha. Dom Luiz sempre defendeu que se uma pessoa anêmica não pode doar sangue, um rio doente não pode ter suas águas transpostas para outras localidades antes de ser revitalizado. Em entrevista exclusiva ao site Meus Sertões ele avalia o que está ocorrendo com o São Francisco e avalia a decisão do governo federal de tocar a qualquer custo a obra de transposição, transformada, segundo o religioso, num espetáculo circense.

“Nós assistimos no mês passado aquele espetáculo circense de inauguração da transposição. Lá foi o grupo do Temer, lá foi o grupo do Lula, todo mundo querendo ser pai da criança. O Temer para justificar o seu mandato e o Lula já se preparando para o ano que vem. Todo mundo quer fazer do rio São Francisco cabo eleitoral” – diz.

Dom Luiz Cappio considera que hoje vivemos um caos político, que faz com que os cidadãos brasileiros, incluindo ele, sintam “dor e ao mesmo tempo vergonha”. Defende maior consciência da população na hora de votar porque a situação atual só pode mudar se mudarem as pessoas que estão na liderança do Executivo e do Legislativo. O bispo de Barra é enfático ao afirmar que “esse pessoal que está gerando esta situação tão monstruosa que estamos vivendo, precisa ser varrido”

“Com esses que aí estão é impossível uma mudança” – avalia.

No âmbito regional, a preocupação de Dom Luiz é com a segurança e o avanço das drogas no sertão, tragédia que atinge, principalmente, a juventude e é consequência de “uma política e economia que não leva em consideração os valores humanos.

Leia  a íntegra da entrevista:

O senhor está completando, salvo engano, 25 anos* que chegou em Barra e 20 anos de bispado. Qual a avaliação que o senhor faz desse tempo e dessa história?

Fazem 43 anos que estou na região. Não são apenas 25 anos. Eu tenho 20 anos de bispo aqui na Diocese da Barra. Nos 23 primeiros anos, eu exercia trabalho de missionário franciscano. Caminhei, andei por todos esses sertões. A avaliação que eu faço é que por um lado, a região desenvolveu muito no que diz respeito a energia elétrica, comunicação e a qualidade da vida da população. Por outro lado, no que diz respeito à segurança, nós estamos muito fragilizados. Por ser distante dos grandes centros, a nossa região é muito relegada. Nós temos tido casos de muita violência e isso assusta a população, que não estava acostumada com esta situação. Hoje, vivemos um quadro de abuso da droga. A nossa juventude hoje está à mercê da droga, dos traficantes, daqueles que se enriquecem às custas do sofrimento, da desgraça, principalmente da juventude. Resumindo: houve um desenvolvimento, principalmente, em relação às condições econômicas e um decréscimo muito grande no que diz respeito aos questionamentos sociais e também na vida moral, principalmente da nossa juventude.

Tem algo que possa ser feito para reverter esse quadro?

Eu diria que hoje o nosso sertão da Bahia, a nossa região de Barra, entrou no comum do Brasil como um todo. Hoje, estamos integrados a esse Brasil que é imenso e que sofre muitas situações difíceis, principalmente nessa época que estamos vivendo, que tem sido de sofrimento para toda a população brasileira. Estamos integrados a esse Brasil, que sofre de uma maneira geral as consequências de um mundo cruel e de uma política e de uma economia que não leva em consideração os valores humanos. E quem sempre sai perdendo com tudo isso é o pequeno, é o pobre.

Como o senhor vê hoje a política no Brasil, com todas essas denúncias, com todos esses escândalos e com um presidente que busca tirar direitos da população?

Eu como cidadão brasileiro, sinto aquilo que todos os cidadãos brasileiros sentem no momento. A tristeza de ver a nossa pátria amada Brasil, jogada assim de escanteio. É um sentimento de dor e ao mesmo tempo de vergonha, sem saber o que fazer para mudar esse quadro. Então o que eu sempre digo para o meu povo, que nós não podemos fugir da raia. Nós temos que assumir a nossa pátria assim como ela se apresenta. E procurar da melhor maneira possível aquilo que nos cabe responder como cidadãos brasileiros, no sentido de quem sabe dar um passo à frente e, quem sabe, dar uma condição melhor para as futuras gerações porque hoje nós vivemos um caos político.

Qual seria uma eventual solução para a situação que vivemos hoje?

Em primeiro lugar, como país democrático que somos, que o povo brasileiro tivesse maior consciência na hora de dar o voto porque afinal de conta esses que hoje regem o Brasil, seja no Poder Executivo, seja no Legislativo, estão lá por causa do nosso voto. A consciência e a responsabilidade do povo na hora de votar são necessárias para que essa situação mude. Isto só acontecerá se aqueles que estão nas cabeças, na liderança, mudarem. Com esses que aí estão é impossível uma mudança.

As perspectivas iniciais para haver qualquer troca, caso haja mudança na presidência, seria uma eleição indireta, decidida pelo próprio Congresso, em que há muitos integrantes estão respondendo processos. Então não teria assim uma saída nesse primeiro momento…

É um grande ponto de interrogação. Nós não temos a clareza de que caminho seguir para termos uma condição de melhora. Estamos tateando. Agora uma coisa é certa, esse pessoal que aí está gerando esta situação tão monstruosa como nós estamos vivendo precisa ser varrido. Agora, quem colocar lá no lugar? Ainda não temos essa clareza.

A vida dos ribeirinhos depende da revitalização do rio

Dom Luiz, o senhor dedicou uma boa parte da sua vida em favor dos pobres ribeirinhos, em defesa do rio São Francisco. Chegou a fazer duas greves de fome com convicção da possibilidade de reversão do quadro que se apresentava. No entanto, o que vimos na prática foi que seus atos não evitaram a transposição nem obtiveram a revitalização tão desejada. Como o senhor avalia isto hoje?

O nosso sonho é que o rio São Francisco, que tem a vocação do santo com o seu nome, possa gerar água e vida para todo o Nordeste. Eu parto do seguinte: um anêmico não pode doar sangue; um doente não tem condições de trabalhar e gerar vida. Para que ele possa gerar vida, em primeiro lugar ele tem que ter vida. O que está acontecendo em relação ao rio São Francisco é que ele está morrendo gradativamente. Cada ano a gente vê o crescimento do processo de morte e a política abusiva de tirar água do rio São Francisco, sem se preocupar com a revitalização da bacia. Então o rio deve sim gerar água para todo o nordeste brasileiro. Nós ficaríamos muito felizes se o Nordeste pudesse ser salvo pelas águas do rio São Francisco. Agora para que ele possa gerar vida, levar água para quem necessita, é preciso se levar a sério a revitalização.

Quando nós concluímos o nosso primeiro jejum de 11 dias (em 2005), firmamos um contrato com o presidente Lula, na época, de assumir para valer o projeto de revitalização. Ele, representando o governo, e nós, representando a sociedade civil brasileira, assumimos esse compromisso de levarmos a sério o processo de revitalização do rio São Francisco, a partir do que então se poderia pensar no multiuso das águas do rio São Francisco, mas infelizmente não foi o que aconteceu. Iniciaram o projeto de transposição e esqueceram o projeto de revitalização. Nós entramos no segundo jejum, que foi de 24 dias (2007), e até hoje ainda não temos notícia de um projeto de revitalização sério do rio São Francisco.

Assistimos no mês passado aquele espetáculo circense de inauguração da transposição. Lá foi o grupo do Temer, lá foi o grupo do Lula, todo mundo querendo ser pai da criança. O Temer para justificar o seu mandato e o Lula já se preparando para o ano que vem. Todo mundo quer fazer do rio São Francisco cabo eleitoral. Todo mundo fazendo festa com a transposição, mas ninguém preocupado com a revitalização. E eu pergunto. Sem a revitalização, até quando o rio São Francisco terá água a ser transposta? Só terá água para ser transposta quando houver uma revitalização séria, muito séria, e que exija um capital e uma tecnologia consideráveis. Um projeto sério de revitalização de um rio que é aquele que mantém milhões de pessoas em condições de vida.

Quais as consequências deste descaso para os ribeirinhos?

Uma das consequências é ver que o rio está baixando cada vez mais. O povo ribeirinho vive das enchentes do São Francisco, as águas invadem os terrenos beiradeiros e fertiliza os terrenos onde o povo planta e tira o necessário para a sua sobrevivência. Essas enchentes não acontecem mais. As ilhas que antes eram cheias, ficavam cobertas de água, também eram áreas muito férteis para a plantação de alimentos. Hoje não acontece mais isso. E no lugar das enchentes, o que vemos são imensas coroas no rio, coroas de areia, porque ele está baixando e as coroas de areia vêm para a superfície.

O rio também se torna cada vez mais raso e mais largo por causa dos desmoronamentos das encostas e os peixes sumiram. Quando cheguei aqui há 43 anos, o peixe era alimento dos pobres. Hoje, peixe é cardápio de rico porque ninguém tem condições de comprá-lo, está mais caro do que a carne. O rio não é mais piscoso como antigamente.

Todas essas consequências todas fazem com que o povo beiradeiro sofra as razões que está levando o rio São Francisco morrer. Como a gente sempre diz, se o rio tiver vivo, com saúde, o povo estará vivo com saúde. Se o rio ficar doente, o povo adoece. E se o rio vier a morrer, o povo morre com seu rio. É isso que nós estamos assistindo. Devagarinho o povo doente, devagarinho morrendo por causa da doença e da morte de seu rio.

O senhor quando fez os jejuns conversou com políticos que foram intermediários antes do senhor ter o encontro com Lula. Em algum momento nesse processo, o senhor sente que foi ludibriado?

Naquele momento não era o Frei Luiz que estava ali. Era o povo beiradeiro, era a sociedade civil brasileira que reivindicava um direito diante de um projeto tão grande que exige recursos públicos de ordem de bilhões. Um projeto dessa natureza precisaria ser conversado, dialogado com a sociedade, com o povo ribeirinho, com as entidades sociais que representam o povo ribeirinho. E o que nós pleiteávamos na época era esse diálogo. Não houve disponibilidade nenhuma por parte do governo federal de dialogar com a sociedade civil sobre o projeto de transposição. Ela foi imposta e empurrada goela abaixo da sociedade. Esse projeto foi decidido dentro de quatro paredes privilegiando uma elite que quer fazer da água um bem econômico, quando a constituição cidadão de 1988 diz que a prioridade de obras hídricas, com recurso público deve ser a dessedentação humana e animal. Infelizmente, com o projeto de transposição se fez o inverso. Uma imensa obra hídrica, que tem como prioridade o uso econômico. Nesse sentido, o projeto se torna anticonstitucional. Agora está aí aquele elefante que é  branco porque nós não sabemos até quando nós teremos água para poder levar adiante.

Qual a análise que o senhor faz sobre o pontificado do papa Francisco, a esperança de mudanças e uma possível retomada da Teologia da Libertação?

Nós aqui no sertão somos privilegiados nesse sentido porque nós nos mantivemos com aquele espírito bonito de uma Igreja do tempo de Paulo VI que valorizava e investia nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Nós nos mantivemos nessa linha, tanto é que nossos padres, nossos agentes de pastoral são orientados nessa linha de formação teológica. Realmente, houve um retrocesso teológico pastoral, que nós no sertão não fomos diretamente atingidos. Tanto é que a Diocese da Barra sempre teve como prioridade as Comunidades Eclesiais. Nós nunca deixamos de fazer das CEBs a nossa prioridade pastoral. Agora quando chega o papa Francisco e prioriza não apenas para nós, mas para o mundo inteiro, as comunidades como o caminho a ser seguido no trabalho de Igreja, a valorização das comunidades, dos leigos, dos pobres, dos trabalhadores, do pequeno, ele vem de encontro aquilo que sempre foi o nosso objetivo, e confirma a nossa maneira de trabalhar eclesialmente, sempre foi fiel aos princípios da Teologia da Libertação.

Qual o alcance da Diocese da Barra?

A nossa diocese da Barra tem 42 mil quilômetros quadrados e é integrada por 11 municípios. Ela é maior que o estado do Rio de Janeiro. E é uma das maiores dioceses da Bahia. Não é a maior. Barreiras e Bom Jesus da Lapa são maiores. Para se chegar até ela o acesso é difícil. Temos algumas estradas boas, mas a maioria tem problemas para se trafegar. Nós temos muitas comunidades no interior com todos os problemas relativos à educação, à saúde, à segurança e aos transportes. Dificuldades próprias de comunidades do sertão bastante distantes do centro urbano. Com tudo isso, não diminuímos nosso afã pela e fazemos de tudo para estar presente nas comunidades.

O senhor completou 70 anos ano passado. Aos 75 anos, o senhor pode se transformar em bispo emérito. Quais são seus planos?

É orientação da Igreja que o bispo aos 75 anos o bispo coloque à disposição a sua diocese. É o que vou fazer quando completar essa idade. Vou colocar nas mãos do Papa Francisco, se ainda for ele, esperamos que seja, a diocese da Barra e ele decidirá se eu devo ficar mais algum tempo ou se eu devo me tornar emérito. Aquilo que ele decidir, eu acolho.

Do ponto de vista pessoal quais são os projetos que o senhor tem?

Eu ainda estou pensando. Por enquanto eu quero exercer minha função de pastor não quero pensar nisso. Eu quero investir o que puder de melhor no serviço ao nosso povo.

Quando o senhor fez a caminhada do São Francisco, que levou um ano, o senhor escreveu um livro sobre a experiência. As coisas que o senhor destacou na ocasião sofreram alteração?

Nós fizemos a caminhada pelo rio São Francisco, que nós chamamos de uma peregrinação ecológica e religiosa. Saímos da Serra da Canastra no dia 4 de outubro, que é o dia de São Francisco e o dia de meu aniversário, de 1992, e chegamos na foz no dia 4 de outubro de 1993. Eu não era bispo nesta época. Foi exatamente um ano de caminhada, percorrendo as duas margens do rio São Francisco e todas as comunidades ribeirinhas. Nosso objetivo era e dialogar com a comunidade ribeirinha, mostrar a importância do rio para a vida do povo e detectar as causas que estavam levando o rio São Francisco a morrer. Aquele livro que foi publicado logo depois da peregrinação – “Rio São Francisco, uma caminhada entre a vida e morte” – é  um depoimento sobre tudo aquilo que nós vimos e uma denúncia de tudo aquilo que nós percebemos que está levando o rio a morrer. É um grito em favor do rio.

O senhor pretende escrever alguma outra coisa, um outro livro?

Olha, muita coisa foi escrita não por mim, mas por tantas outras pessoas, principalmente depois dos dois momentos de jejum que despertou o mundo para a realidade do rio São Francisco e do povo ribeirinho. Acredito que tudo que foi escrito já é o conteúdo suficientemente bom e profundo para que a sociedade perceba a importância do rio São Francisco, do povo ribeirinho e de fazer com que o rio permaneça vivo porque a vida do rio São Francisco é essencial para a vida do povo ribeirinho.

Outra ação importante do senhor foi a criação de um marco para lembrar Lamarca. Lembro de uma provocação feita pela revista Veja, em uma entrevista feita com o senhor, dizendo tipo assim: isso aí já chega, já é demais. Como ficou essa questão, o senhor concretizou esse projeto?

O senhor se refere ao Memorial dos Mártires. Nós edificamos (ele foi inaugurado em setembro 2013). Eu recomendaria que o senhor conhecesse o memorial, belíssimo. Ele está localizado na localidade de Pintada, município de Ipupiara, na nossa diocese. Mas veja, a prioridade do memorial é contemplar aqueles que tombaram pelas grandes causas de justiça social, que também são causas evangélicas. O Lamarca é um deles, mas não prioritariamente. Não foi por causa dele que foi edificado o Memorial dos Mártires. Ele foi edificado para contemplar e valorizar aqueles que deram a sua vida, derramaram seu sangue pelas grandes causas de justiça social. Então temos homens que morreram pelas causas fundiárias. Aqui no nosso sertão houve uma ganância muito grande pela terra e muitos sertanejos nossos tombaram em defesa dela, de seu chão, diante da ganância de grandes fazendeiros que queriam tomar a todo custo a terra do povo. Tivemos várias vítimas. Nós fizemos o levantamento de todos aqueles que morreram por essas causas. Eles são seis, entre os quais Lamarca. Tombaram na luta pela causa da justiça e justamente em território nosso, na nossa diocese, em uma de nossas paróquias. E lá em Pintada foi o lugar onde Lamarca morreu junto com Zequinha. Por isso, lá ficou sendo a sede do Memorial dos Mártires. É um lugar de muito respeito, muito considerado pelo povo.

Irmã Irene de São Pio X dedicou 40 anos ao sertão

Recentemente uma missionária da diocese, conhecida como a Mãe dos Pobres do Sertão, faleceu. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre ela?

O senhor se refere a nossa querida irmã Irene de São Pio X. No dia 14 de maio, ela veio a falecer depois de muito tempo de sofrimento e dor. Foi uma grande missionária. Trabalhou 20 anos no sertão de Irecê e mais 20 anos no sertão da Barra. Era uma das irmãs da Congregação de Nossa Senhora do Amparo, de Petrópolis. Uma mulher simples, humilde, mas de uma doação total de sua própria vida pelos sertanejos, principalmente pelos pobres. Ela veio a falecer no último dia 14 e no dia 20 teria feito 82 anos. Nós fizemos suas exéquias, celebramos sua missa de corpo presente e prestamos essa homenagem singela a mulher de Deus que deu a própria vida pelos pobres.

Nota: A foto de abertura mostra o esgoto jogado sem tratamento no rio São Francisco.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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