É preciso se posicionar a alguns metros de distância para vê-lo por completo. Para senti-lo é necessário que se aproxime. Ao aumentar o seu campo de visão, o viajante vai observar em detalhe todas as histórias contadas em uma das três partes do painel, em forma de mural, finalizado em 1967 pelo artista plástico Lênio Braga, com participação do ceramista alemão Horst Udo Knoff, na Estação Rodoviária de Feira de Santana. Versos e figuras em cordel, cores e textura são uma aula de “sertanejidade”, de “feiradesantanidade”, de “nordestinidade”.
E também ver como ele está. As suas condições físicas. Os 120 metros quadrados formam, seguramente, uma das mais belas peças públicas do interior baiano. Os autores assinaram a obra-prima num cantinho baixo. Lênio Braga, pintor; Udo, ceramista, Bahia, 1967. A dupla também é autora de peças nas rodoviárias de Itabuna e Ilhéus, feitas no mesmo período do painel feirense.
De beleza singular, o painel começa a enfrentar problemas estruturais. Azulejos caíram há alguns anos. E, mais preocupante: nada foi feito para recuperar o desfalque. As providências não passaram, ainda, de promessas convenientemente e preocupantemente esquecidas.
A parte maior da obra fica na parede do saguão principal da rodoviária, por onde diariamente milhares de pessoas passam apressadamente para descer à pista de embarque ou comprar passagens. Mas a quantidade de passageiros que olha o painel é muito pequena. A título de comparação, se fosse um post no Facebook a quantidade de visualizações seria grande, as a de curtidas seria baixa e a de compartilhamento, decepcionante.
É pequeno o número de pessoas que dá uma paradinha para uma análise. Por pressa ou o desconhecimento passam direto. A bem da verdade, colunas, mesas, cadeiras e balcões colocados próximos da parede dificultam a visualização, a aproximação para ler as frases, ver de perto dos desenhos, sentir a obra de arte.
Outras partes ficam escondidas numa parede lateral, em um dos lados da farmácia, um corredor com pouco mais de um metro de largura, escuro. Lá se vê um tropeiro montado em um burro com seus caçuás cheios, ao fundo uma boiada com vaqueiros a vigiá-la.
No outro lado, vaqueiros observam uma grande manada no campo, coisa pouco comum no sertão. O painel se estende para a frente do posto policial da estação rodoviária. Não há incentivo para mostra-la. A obra não recebe visitas específicas de escolas, por exemplo. O terceiro bloco fica em outro corredor que leva à sala da administração do terminal. É um espaço ainda menos frequentado.
É um painel para ser observado com paciência, dada a quantidade de informações contidas nele. Vê-lo apenas não é suficiente para entendê-lo. Há de tudo um pouco do rico universo sertanejo. Da cultura do povo de Feira de Santana. Em muitas passagens, o leitor pode-se ver dentro dele ou observar histórias que lembrem algum familiar. A linguagem é de folheto de cordel. As imagens lembram xilogravuras.
No mural há uma homenagem a Raimundo de Oliveira, tido como o maior expoente das artes plásticas locais; muita filosofia das frases dos para-choques de caminhões; a cultura popular e passagens da história de Feira de Santana; a famosa feira semanal da cidade que se espalhava por várias ruas do centro às segundas-feiras; e passagens da vida do cangaceiro Lampião e o conto da sua chegada ao inferno.
É um mosaico nordestino.
CIMENTO EM VEZ DOS AZULEJOS
O mural cinquentão apresenta os efeitos da passagem do tempo. Seus cuidadores, no entanto, não adotam as medidas corretas para preservá-lo. Não é preciso muita atenção para ver que algumas peças do azulejo caíram e não foram repostas. Em uma parte, o cimento ocupa área antes revestida por 13 peças.
A cena que retratava a luta de um príncipe com um dragão está danificada. O desenho do dragão foi ao chão. Outras partes da obra monumental podem ter o mesmo destino, apagando histórias que têm semelhanças entre si. Se nada for feito, dentro de pouco tempo, outros manchões aparecerão na grande tela de argila.
O problema tende a se agravar porque o painel, que é tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac) não recebe a devida atenção no tocante à sua conservação. Nem por parte da permissionária Sociedade Nacional de Apoio Rodoviário e Turístico Ltda (Sinart), que administra a estação rodoviária, nem do órgão responsável pela sua preservação.
Entregue à própria sorte – ou azar, o destino do belo mural parece não ser dos melhores. Se nada for feito, corre o risco de desabar lentamente. Desaparecer. E sem que os apressados passageiros percebam.
O diretor do IPAC, João Carlos Oliveira, esteve em Feira de Santana no dia 10 de junho. Erometeu que enviaria, em poucos dias, uma equipe do órgão para verificar se outros azulejos estavam em risco. Mais, disse que faria “uma ação de educação patrimonial”, após observar que 112 peças de cerâmica que se desprenderam do painel e 20 estão com rachaduras. Por fim, disse que acionaria a Sinart para que ela providenciasse a recuperação e a preservação do painel.
Jornalista e agitador cultural, Jânio Rego lembrou que antes da ida de João, a última visita que o IPAC fez ao local foi em 2015. A situação já era ruim, mas nada foi feito para resolvê-la:
“A gente não está disposto a esperar mais para que o mural seja recuperado. Se nada for feito, vamos entrar com uma ação popular contra as diferentes esferas de governo e a Sinart” – disse Jânio.
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Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.