Os mentirosos

Mané Bernardes era chamado de Bernaldo. Argemiro ficou conhecido como Azimio. Agumercino virou Amercino. Arcílio passou a ser, simplesmente, Arcilo. Por fim, Benevides ou Bené, como preferir.

Eles formavam o grupo de grandes mentirosos da cidade de Rodelas. Suas mentiras eram aquelas de salão. Inventavam, mas não prejudicavam ninguém. Não intrigavam. Não levantavam falso. Eram histórias que aumentavam a fama de cada um deles entre os conterrâneos.

Exceto Bené, todos já morreram, mas os seus, digamos, feitos, permanecem vivos, sempre lembrados nas rodas de conversa sob as árvores ou esquinas, principalmente pelos conterrâneos mais antigos.

Do grupo apenas Bernaldo não gostava quando alguém o questionava sobre os causos que contava. Não raro se zangava e chispava, empurrado pelas risadas dos amigos que atentamente o ouviam. E logo a história se espalhava com outras versões. Para usar uma linguagem contemporânea, viralizava.

Bernaldo (à direita de óculos e camisa quadriculada aberta) não gostava de ser contestado. Foto enviada por João Batista Cruz Arfer

Na velha Rodelas, o 1º de abril não era o dia da mentira. O exercício das histórias inverídicas acontecia na Sexta-feira da Paixão. Era uma verdadeira competição. O troféu para o campeão era a perpetuação do causo. Mentirosos são um dos pontos comuns entre as pequenas cidades.

A prova dos nove para saber se Bernaldo mentia era quando ele contava a história num tom de voz agudo, baixinho, lentamente. Quase no ritmo Bossa Nova. Num destes dias, saiu com esta:

“Num Sábado de Aleluia estava eu no Caxauí (comunidade rural de Rodelas), quando avistei um Judas pendurado na Barra do Tarrachil (povoado de Chorrochó, município vizinho, distante cerca de quatro quilômetros) ”.

Vez por outra parava e acendia um cigarro. Temperava goela com um pigarro demorado. Depois de algumas profundas tragadas, continuou para uma plateia atenta:

“Resolvi que pregaria uma peça para estragar a festa. Carreguei minha espingarda de bucha no capricho e mirei. Acertei na corda e corri para a Barra. Cheguei a tempo de ainda rasgar o Judas. Tudo foi muito animado, mas ninguém nunca soube quem derrubou. Tô contando a vocês agora”.

Risada geral.

Até então, o mentiroso não tinha se manifestado contrariado. Mas Onofrinho de Mané Pupu, com umas cachaças na cabeça, resolveu questioná-lo.

“Seu Mané, a espingarda não é aquela que o seu cachorro dorme dentro? ”.

Gritos e assobios foram ouvidos.

“E eu sei por que o senhor alcançou o Judas ainda caindo, homi. Ele tava pendurado era na lua”.

Novos gritos.

Bernaldo não suportou a desfeita e partiu para pegar Onofrinho, que disparou em direção da casa dele, rindo muito.

***

Azimiro mentia e gostava das suas lorotas. Numa delas, se superou.

“Tava caçando colmeias quando vi um oco muito bonito numa imburana. Fui direitinho pra lá porque achei que tinha ganhado o dia, cum uma grande casa de abelha lotada de mel. Me aproximei com cuidado. Bati no tronco e o que escutei quase me derrubou: uma vozinha tremida saiu de dentro. Um papagaio que tinha saído do ovo diadestes me perguntou: é papai, é? Nunca vi um papagaio tão sabido na vida” – disse.

Teria sido o tatataravô do famoso Louro José.

***

Certa vez, Arcilo conversava com Amercino, que lhe falava sobre uma ida ao dentista.

“Quando vi a mulher saindo da sala com a cara lavada de sangue, desisti na hora de arrancar o dente e me piquei”, disse ao irmão, que respondeu:

“Mas cumpadi, o senhor vai ao dentista?”

“Diadestes senti uma dor azeda e comecei a futucar na panela com uma faquinha de bico fino. Minutos depois estava com danado arrancado pela raiz. Nem senti dor nem nada”.

Amercino não se conteve:

“É por isso, cumpadi, que as pessoas falam tão mal do senhor”.

***

Aristeia era a mulher de Arcilo. Viveram juntos durante muitas décadas. Era sempre ela quem confirmava as histórias do marido. Eram personagens de uma das máximas locais: “Arcilo mente e Aristeia consente”, afirmavam os detratores. Eles não gostavam, mesmo sabendo que o dito era verdadeiro.

***

Benevides gosta de falar sobre o seu passado de grande namorador, um pegador, para usar um termo mais atual – se bem que poucas pessoas o viram com outra namorada, além da sua mulher. Tampouco conheceram as que ele narra nas suas aventuras em São Paulo, onde morou.

“Não é por nada não, mas o primo João (médico em Salvador) sempre me diz que faltou um grau para eu ser um tarado”, gosta de afirmar em voz alta por onde anda.

Não se conhece um vivente que ouviu o primo de Bené confirmar isso.

***

Bené é homem de muitas histórias. Numa delas, em uma Sexta-feira Santa, como é tradição em Rodelas, o comércio não abre – ele era dono de uma lanchonete, que ficava em frente à igreja católica. Naquela manhã, um grupo de meninos estava contando mentiras quando Bené surgiu do beco de Dora, acompanhado da mulher, que fez cara de brava ao vir o grupo, que se calou.

Foram passando. Tereza invocada e Bené descabreado, como se soubesse o que aconteceria. Foram eternos segundos de silêncio, mas um dos garotos não segurou e soltou uma gargalhada, típica daquelas dadas depois de ouvir uma das suas histórias. A turma toda caiu na risada. Coletivamente. Tereza encheu a todos de desaforo e promessas de que daria queixas aos pais – castigo na certa.

Bené nada disse, mas a sua expressão facial foi como um pedido de desculpas pelo destempero da mulher e por não estar ali contando seus engraçados causos que jurava ser verdadeiros, mas que ninguém, a não ser o próprio, acreditava.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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