Itatim é uma cidade localizada no centro-norte baiano, na microrregião de Feira de Santana. Dentre suas principais atividades econômicas estão a extração de pedras – o município é cercado por morros – e o comércio. A população estimada pelo IBGE é de 14.957 pessoas, este ano. Suas formações rochosas atraem praticantes de esportes radicais como escalada, rapel, mountain bike e motocross.
Além das belezas naturais, os habitantes de Itatim se orgulham de o município ter servido de locação para importantes cenas “Central do Brasil”, o mais premiado filme brasileiro de todos os tempos e que consta em 11º lugar no ranking Top 100 da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema. Ficaram tão envaidecidos que o longa-metragem é citado na “Ode a Itatim”, música que ficou em segundo-lugar no concurso para a escolha do hino da cidade.
“E o (morro) da Ponta Aguda, hoje é contemplado/ É história, no filme Central do Brasil” – diz a letra composta pelo empresário Jeová Santana, Irene Maria Kammermeier e Ivan Messias Santana.
No entanto, os itatienses também carregam uma mágoa. Nos cinco minutos e 19 segundos em que são mostrados os créditos do filme, não é feita nenhuma alusão a Itatim. Nem mesmo no minuto e meio em que a tela mostra os agradecimentos e cita 11 cidades de seis estados -cinco delas na Bahia, incluindo a vizinha Milagres, a 28 quilômetros de distância.
O que teria feito a produção do filme visto por 5.063.500 espectadores (sem contar com a audiência da televisão, DVDs, VHS e You Tube), em 21 países, varrer Itatim do mapa?
A primeira tentativa de explicação dos moradores da cidade é que a prefeitura não teria dado apoio para os produtores nem se interessado em participar do patrocínio. Esta versão, no entanto, é descartada pelo ex-prefeito Onésimo Souza Cintra, o Nane, que estava nos últimos meses de mandato quando o filme começou a ser rodado no Rio de Janeiro, em 8 de novembro de 1996.
“Eu não sei informar porque não saiu o nome de Itatim. Ninguém procurou a prefeitura. Eu só vi que estavam filmando no município pela televisão” – revela Nane.
O ex-prefeito crê que a proximidade entre os dois municípios pode ter feito a produção do filme acreditar que ainda estava em Milagres. No entanto, duas das principais locações do filme, o Posto São Roque e a Igreja Nossa Senhora da Piedade, no primeiro platô do Morro da Ponta Aguda, estão nas principais entradas da cidade pela BR-116 (antiga Rio-Bahia, hoje rodovia Santos Dumont) e a BA-493 (Santa Teresinha – Itatim).
Já o filho do ex-prefeito José Édson Figueiredo Andrade, o vereador Júnior de Zé Édson, reafirma que ninguém procurou seu pai, que assumiu o cargo antes da conclusão da tomada dos trabalhos.
“Inclusive o posto que foi filmado era de meu avô. E a lanchonete, de minha tia. Os dois já faleceram. Na época, os responsáveis pelo filme pediram para que um tio meu passasse pedalando uma bicicleta, levando uma melancia. Meu tio participou do filme. Não sei porque não citaram Itatim” – diz.
As matérias de jornais da época também deixaram a cidade baiana de fora. Em texto publicado em 6 de fevereiro de 1997 pelo suplemento Folha Ilustrada, da Folha de São Paulo, o repórter Vandeck Santiago, anunciou que as últimas filmagens de “Central do Brasil” havia começado, em Pernambuco.
O repórter informou que o governo do estado entrou com cerca de R$ 80 mil em patrocínios, citando como fonte o escritor Raimundo Carneiro, presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Cultural. E que a turnê nordestina esteve antes em Vitória da Conquista e Milagres, que aparecem nos créditos do filme franco-brasileiro. As outras três cidades baianas citadas nos agradecimentos são Salvador, Rio de Contas e Xique-Xique.
A prefeitura de Conquista e outras entidades do município (Associação Comercial e Industrial, Associação de Indústrias, Clube dos Diretores Lojistas) são citadas nos créditos do filme na retranca “Este filme também teve o apoio de” que aparece depois das 18 empresas – seis bancos, a Telebahia e o Terminal Químico de Aratu, dentre elas – que participaram da obra através da Lei do Audiovisual.
OMISSÃO E MILAGRES
Outros fatores podem ter contribuído para a omissão do nome de Itatim nos créditos. Um deles é o fato de Milagres, a 247 quilômetros da capital, ter tradição em servir de cenário para filmes. Foram pelo menos seis, incluindo “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber Rocha, “Os Fuzis” (1963/64), de Ruy Guerra.
O cineasta Nelson Pereira dos Santos foi o primeiro a filmar no local em 1958, quando documentou a pavimentação da estrada Rio-Bahia e conheceu uma realidade composta de beatos e crianças famélicas. Em depoimento para uma pesquisadora, Nelson assim definiu Milagres no fim da década de 1950.
“Fiz muita coisa, muitos documentários, e fiz um também que foi sobre a pavimentação da Rio-Bahia. E foi aí que nós descobrimos Milagres. As cavernas habitadas por pobres, aleijadinhos, cegos…. Uma coisa incrível. Eles desciam pra pedir esmola. Era um ponto de parada naquela época. Hoje você imagina? A Rio-Bahia era sem asfalto. De Vitória da Conquista até Milagres não tinha nada. Era tudo terra. Milagres era uma parada de beber água, as pessoas desciam dos ônibus, sem falar nos paus-de-arara. Era terra pura. Você só via os olhinhos, quando sorria apareciam os dentes, tanta terra que era. Foi quando nasceu a ideia do ‘Vidas Secas”.
Outra possibilidade, segundo o ex-prefeito de Itatim, Nane, é que os produtores podem ter procurado empresário e prefeito de Milagres à época das gravações de Central do Brasil, Raimundo de Souza Silva. E este “empresário forte” teria dado apoio à equipe do filme.
Após ter perdido as eleições de 2016, Raimundo trancou a prefeitura com tapumes e cadeados, alegando que era o dono do prédio que emprestava ao município em sua gestão. Além disso, formatou todos os computadores. Hoje, ele se dedica aos diversos negócios como pontos de apoio rodoviários, na prática rodoviárias que recebem ônibus intermunicipais e interestaduais e que têm lanchonetes com preços extorsivos, além de postos de gasolina. Procurado em Feira de Santana, Itatim e Milagres, não foi encontrado.
Um terceiro fator pode ter contribuído para Itatim não figurar na lista de agradecimentos de “Central do Brasil”. Sua emancipação era recente. Havia pouco mais de sete anos que deixara de ser distrito de Santa Teresinha quando o filme começou a ser feito. Já Milagres, que fez parte de Amargosa, era município há 35 anos.
POSTO SÃO ROQUE
“Central do Brasil” conta a história de uma professora aposentada que começa a escrever cartas para pessoas analfabetas na gare da estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Seus clientes – grande parte nordestinos – ditam o que querem contar aos seus familiares e Dora (Fernanda Montenegro) cobra pelo serviço e pela postagem das cartas, mas não as coloca no Correio.
Um dia, uma de suas clientes é atropelada e morta diante da estação de trens, deixando o filho Josué (Vinícius de Oliveira), 9 anos, desamparado. Dora reluta em cuidar do garoto, mas segue com ele para o Nordeste, na tentativa de encontrar o pai que o menino não conhecia.
Pelos menos duas cenas importantes foram gravadas em Itatim. A primeira acontece aos 48 minutos e 49 segundos de filme. O caminhoneiro César (Othon Bastos) dá carona para Dora e Josué. No meio do caminho, para a fim de fazer uma entrega. Nesta cena, o caminhão entra no Posto São Roque. Antes do veículo parar, um menino passa de bicicleta. Na área do posto, aparecem um restaurante e uma venda, onde Josué e Dora, famintos e sem dinheiro, vão furtar alimentos.
O complexo formado pelo posto, um restaurante e uma pensão, que depois virou pousada. Foi construído à beira da linha férrea, após o DNER instalar o canteiro de obras para a construção da BR-116. O proprietário era Aquilino Andrade, conhecido como Aquilino de Murici, proprietário de terras no local.
Na cena, a pousada, hoje desativada, e a igreja instalada posteriormente não aparecem.
Atualmente, só existe a fachada do restaurante. O local da venda é a loja do posto de gasolina.
NOSSA SENHORA DA PIEDADE
A segunda cena passa na tela logo após a primeira hora do filme, quando César percebe que Dora está se apaixonando por ele e abandona a escrevinhadora e o menino.
No momento seguinte, a dupla de viajantes está em um morro, mais precisamente na Ponta Aguda, onde Josué pergunta se sua mãe foi enterrada direito e onde ela está. Dora e o garoto descem para o platô da igreja, onde a professora dá para o menino o lenço da mãe dele e diz para que ele amarre no cruzeiro em frente à igrejinha.
O livro “Tanquinho de ontem ao Itatim de hoje”, lançado em 2013, conta a história da cidade e de seus personagens. Seu autor, o empresário Jeová Santana, revela que a igreja de Nossa Senhora da Piedade foi construída no Morro da Ponta Aguda pelo ‘coronel’ João José Dias de Andrade, o Janjão, em 1883.
O morro que deu origem ao nome da cidade, depois que o padre Jonas Vaz Santos utilizou dois termos da língua tupi – ita (pedra) e tim (bico ou nariz) – para designá-lo, pertencia a Janjão.
A construção da igreja tinha como objetivos, a celebração de missas, a realização dos festejos em homenagem à santa, no dia 8 de setembro, e servir de abrigo ao jazigo do fazendeiro. Cumpriu os dois primeiros e passou a ser local de penitência na Sexta-feira Santa. No entanto, o dono das terras não foi sepultado ali como queria. Ele morreu em Amargosa (BA). Os corpos da mulher do fazendeiro Maria Vitória e de outros familiares foram enterrados na igrejinha.
O templo tinha um formato diferente de hoje. Sua cúpula lembrava uma coroa. Atualmente, cruzeiro diante da igreja está pintado de azul. As festas de Nossa Senhora da Piedade deixaram de ser realizadas.
SILÊNCIO ABSOLUTO
“Central do Brasil” arrecadou 22,5 milhões de dólares, o equivalente a 71 milhões de reais. Foi dirigido por Walter Salles e produzido por Elisa Tolomelli. Teve 50 indicações e premiações entre 1996 e 1998. Destacam-se o Urso de Ouro (melhor filme), Urso de Prata (melhor atriz – Fernanda Montenegro) e o prêmio de melhor filme dado pelo júri ecumênico do Festival de Berlim, na Alemanha; o prêmio de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz dados pela Associação Nacional de Críticos de Cinema dos Estados Unidos; além das indicações para o Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz.
Apesar de todo prestígio adquirido seus realizadores nunca se redimiram nem explicaram porque não incluíram o nome da cidade nos créditos do filme. Contactada pelas redes sociais, a produtora Tolomelli não respondeu às perguntas enviadas.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.