Os pais de Dalva tiveram muitos filhos. Dez para ser preciso. Os tios dela não tiveram nenhum. Por isso, quando completou seis anos a menina foi visitar seu Juventino Andrade Souza e dona Urânia Luzia. Saiu de Jaguaquara (BA) e percorreu os cerca de 170 km que separam a cidade onde nasceu do povoado de Pedra Branca, que no século XVIII foi aldeamento de índios kiriris (ou cariris) e deu origem ao município de Santa Teresinha (BA).
Dalva Andrade Souza chegou em 1934. Na época, duas famílias, os Andrade e os Freire, eram donos da maioria das casas do lugar. Até hoje, todos os imóveis e terras à esquerda da igreja de Nossa Senhora de Nazaré pertencem aos primeiros. Poucos casarões haviam substituído as casas de palhas dos indígenas. As ruas eram gramadas, diferentes do calçamento de paralelepípedo que existe hoje em torno da área central de Pedra Branca.
Nas lembranças de menina, os presépios que a tia montava no Natal, o Dia de Reis, os festejos de São João e as “panhas de café” – mutirão animado por antigas cantigas durante a colheita –Dalva lembra ainda do tempo em que crianças entre oito e dez anos ajudavam os pais na roça. Recorda ainda que só saía de Pedra Branca para visitar os pais durante as férias escolares e do período que passou em um internato em Salvador para concluir as primeiras séries.
O VINHO DO PADRE
Havia ainda a Festa da Uva, com direito a rainha escolhida no povoado. Embora os cachos fossem da mesma espécie da fruta, a festividade era bem mais tímida do que as que os imigrantes europeus realizavam no Sul do país.
A produção de vinho na área de transição entre a Mata Atlântica e o sertão foi iniciada por Juventino Andrade antes mesmo dela chegar ali. Ele aprendeu a fazer a bebida com um padre italiano que pediu pousada na casa do fazendeiro, quando seguia de Amargosa para Cachoeira, no recôncavo baiano. Até então a fruta era consumida em casa ou doada para os vizinhos.
Dalva, que assumiria o negócio com a morte dos tios anos depois, tinha outros planos. Ao retornar da capital, passou a trabalhar como professora e começou a namorar Francisco Félix de Souza Filho, que morava na região e trabalhava em um alambique.
“Meu tio convidou Francisco para tomar conta da fazenda porque ele já estava de idade. Casamos logo e ficamos por aqui. Eu estava com 20 anos. Tivemos três filhos. Depois vieram 10 netos e 15 bisnetos. A família cresceu. Estou com 89 anos, beirando os 90. Tem dois anos que meu companheiro se foi” – conta a empresária.
A produção de vinho artesanal ganhou fama na região. Passou a atrair compradores de outras cidades e turistas. A movimentação fez como que outras quatro famílias passassem a produzir a bebida em Pedra Branca.
“Alguns deles trabalharam conosco e aprenderam. Outros foram tentando fazer até conseguir. Tem um senhor que fazia muito, seu Brasilino, mas ultimamente está doente e a filha o substituiu. Dizem que não está a mesma coisa” – diz Dalva, acrescentando o seu produto é o mais antigo e tradicional.
UVA RÚSTICA E RESISTENTE
Ao contrário da versão que contaram para os proprietários da vinícola Pedra Branca há muito tempo, a uva Isabel de seus parreirais não foi trazida para o Brasil pela princesa que aboliu a escravatura A origem dela é o estado da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. No século XIX, ela se expandiu para a Europa e para o Brasil, onde se transformou na base da vitivinicultura.
A uva americana (Vitis labrusca) foi difundida por causa de sua resistência às pragas, fungos e clima úmido, pela facilidade de cultivo e alta produtividade. É a mais plantada no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina e utilizada para a produção de vinhos de mesa, suco de uva, vinagres, doces e geleias. Seu nome homenageia a americana Isabella Gibbs, que iniciou o cultivo nos EUA. Também é chamada de Isabela e Santa Isabel. Em média, leva um ano para dar frutos.
Por muitos anos, a família de dona Dalva também cultivava uva Moscatel, mas um agrônomo aconselhou que elas fossem retiradas porque não eram tão resistentes. Os parreirais atuais de Pedra Branca têm entre 40 e 60 anos. Como a safra tem diminuído e começou a aparecer uma praga que enruga as folhas, a empresária e seu filho estão pesquisando uma nova variedade na Chapada Diamantina.
Os municípios de Morro do Chapéu e Mucugê iniciaram as plantações em 2011. Desde então testam 10 variedades da fruta para identificar as que melhor se adaptam às condições de solo e clima da região. Dentre as uvas escolhidas para o experimento estão a Pinot Noir, Tannat, Cabernet Sauvignon, Chardonnay e Muscat Petit Grain.
AS SAFRAS
Quando videiras estão no auge chega-se a produzir 3.500 litros de vinho Pedra Branca, seco e suave, por safra. Há dois anos, a seca queimou tudo. Não deu nenhuma garrafa. Em dezembro de 2016, quando começaram a arrancar as videiras velhas, saíram dos tonéis 100 litros de vinho suave.
“O preço do litro, no entanto, foi mantido em R$ 23” – ressalta Dalva.
Este ano, no linguajar dos plantadores, “está bem chovido” e as temperaturas no entorno da Serra da Jiboia, onde se localiza o povoado, chegaram a 15 graus. A previsão é de outro período de baixa produção porque “a uva Isabel não gosta de frio e a chuvas não permitem a limpeza das parreiras”. Uma coisa complica a outra.
Por ter sido feito com a orientação de um religioso, o vinho Pedra Branca era vendido para as igrejas da região, onde eram consumidos nas celebrações. Tinha em sua origem um marketing poderoso. A queda de produção, dentre outros fatores, reduziu ao fornecimento à Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, mantida pelos moradores do povoado.
Após a colheita das uvas – até 10 pessoas são contratadas para esta tarefa -, as frutas são selecionadas, separadas das hastes e colocadas em um tanque para serem bombeadas para o vaso de fermentação. Vinhos tintos costumam ser fermentados com a casca. O processo dura de 15 dias a três semanas, de acordo com a temperatura local. Quanto mais frio, maior a demora.
Depois disso, é feita a coagem, um acréscimo açúcar e coloca-se o vinho para envelhecer por um ano, no mínimo. Antigamente, a maturação era feita em barris de madeira. Os da vinícola do sertão têm mais de 80 anos e estão danificados. Como não há quem os restaure, essa etapa é realizada em tanque de aço inoxidável.
O envasamento é feito de forma cuidadosa. Os vasilhames são lavados e precisam ficar bem enxutos. Feita a secagem, passa-se um pouco de álcool e emborca-se os litros.
O vinho é colocado em garrafas escuras, que são fechadas com rolhas. Os litros, os rótulos e a cortiça são comprados em Salvador.
A CASA DO VINHO
Há 15 anos, um rústico imóvel de sopapo da família foi desmanchado para se transformar na Casa do Vinho, único local que vende o tradicional Pedra Branca.
Se a família Andrade quisesse, comercializaria toda a safra para bares e restaurantes. Recentemente, dona Dalva foi procurada por um comerciante que queria comprar 100 litros de vinho.
“Eu disse que não dava para vender porque se fizesse isso desfalcaria a minha freguesia” – explica.
As prateleiras da área de venda da Casa do Vinho são bem grossas. Foram feitas com um tronco de gonçalo-alves que, segundo a empresária, estava no chão há muitos anos. A mesma origem dos bancos e outros objetos de madeira do estabelecimento.
No balcão, um pequeno barril usado para colocar licor durante os festejos São João.
A Casa fica fechada. Tem que chegar e bater na porta para ser atendido pela proprietária ou para seu funcionário de confiança Édson Carvalho, que abandonou o magistério para trabalhar na fazenda. Antes de qualquer coisa, servem uma dose de vinho para os visitantes.
A ex-professora admite que só bebe um pouquinho na hora do almoço “no dia em que dá vontade”. Diz ainda que os netos preferem o vinho seco e que seu marido não dispensava a bebida, que passou a tomar escondido quando descobriu que tinha problema renal.
Os Andrade Souza também têm um ritual. A cada neto e bisneto que nasce, eles separam um garrafão de 40 litros para abrir quando eles se formarem. Com o tempo, os jovens passaram também a brindar com o vinho especial, envelhecido por 20 anos ou mais, os seus casamentos.
(*) Contato com a vinícola – 75 3639-6915
PRODUÇÃO ARTESANAL
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
Respostas de 6
Matéria maravilhosa! Sou uma Freire e estive em Pedra Branca quando criança! Ainda guardo a lembrança da casa de farinha, das uvas, da igreja, do pomar… minha família sempre vai passar feriados por lá! Já tive a oportunidade de experimentar o delicioso vinho! Preciso recordar rsrsrs Que história bacana! Parabéns D. Dalva e ao editor!
Obrigado por seu depoimento. Um de nossos objetivos é despertar a memória afetiva das pessoas. Ficamos felizes quando isto acontece. Abraços.
Equipe Meus Sertões
Conheci Pedra Branca com 19 anos de idade, isso em 1968, fui acompanhar um trabalho de topografia em uma propriedade rural dos proprietários da Vinícola local em que fiquei hospedado e muito bem recebido pela família com generosas refeições que sempre eram acompanhadas de uma taça de vinho. Nunca esqueci voltei por 2 vezes para adquirir à preciosidade e o destino quis que 50 anos depois os encontrasse em Salvador
Muito obrigado por compartilhar conosco sua experiência.
Conhecir dona dalva e seus familiares quando eu erra ainda adolescente,conheço pedra branca mwus pais eram de lá tenho saudades da quele tempo de missa na pequena igrejinha ,muito bom vê essa reportagem relembro meu tempo de criança que brincava ai nessa pequena pracinha afinal relembrar e viver ,espero ainda voltar ai.
Que bom que fizemos você ter boas recordações. Esse é um dos propósitos de Meus Sertões. Obrigado por nos acompanhar!