SOTAQUE DE UM POVO NAS BARRANCAS DO VELHO CHICO
Há anos em que o alagadiço da Ilha do Gado Brabo, nas margens do Velho Chico, vem sendo uma arena de grandes rixas por questões de terras. Em violentas batalhas sangrentas de famílias, homens trocam facãozadas no meio da estrada, reivindicando o direito de continuar sendo o mandante das terras. No fim das contas, uma tentativa inútil.
No último confronto, no entanto, não foi assim. Os valentões simplesmente bateram boca e se retiraram como um lutador derrotado, partindo de cabeça baixa com o chapéu atolado na cabeça, xingando palavras de protesto e promessas de um novo encontro para acertos de contas.
Para Dedé, dono da maior faixa de terra, não importava. A batalha poderia durar o resto da vida que ele estava pronto para matar ou morrer. Já Chico Trapalhado, dono da menor área e que manejava o facão como um chinês maneja um tchaco, o caminho estava livre para os dois passarem, porém, se o outro atravessasse na frente, o facão corria solto no centro.
Tudo acabou na manhã de sexta-feira de um outubro seco, sob um sol escaldante. Chico Trapalhado, homem de fala fanha, saiu da margem esquerda para a direita do São Francisco, em direção à feira, como era de costume.
Com as pernas da calça dobradas até o meio da canela, camisa aberta ao peito, percata arriada no pé e chapéu de couro na cabeça, Chico era homem sem pressa, caminhava a passos miúdos e assobiava o tempo todo. No sentido oposto, Dedé tinha pressa nos passos para chegar à roça na companhia do amigo Totonho. Trazia no rosto uma feição sisuda como um bode embarcado.
Quando o caminho ficou estreito para os dois, Dedé, de facão à mão, provocou:
“Olha o safado véi aí, Totonho!”
Com a voz fanhosa, Chico respondeu:
“Vai passando pra não inganchar, bicho!”
E assim, cada um passou para o lado, um saiu pela direita, o outro, pela esquerda, alargando o caminho que por muito tempo foi estreito para os dois.
Até os dias de hoje Chico Trapalhado e Dede dividem o mesmo caminho sem dizer um isto para o outro.
Coisas de Xique-Xique, na Bahia.
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Arilson Borges da Costa ,nasceu em 22 de fevereiro de 1970, em Xique-Xique – BA. Filho de sorveteiro e neto de pescador, é professor. Estudou contabilidade na escola pública de Xique-Xique, Bahia, porém em 2008 abandonou a área de exatas e passou a estudar letras vernáculas, na Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Ao longo de sua vida acompanhou pescadores às margens do rio São Francisco, no intuito de entender o sotaque do povo ribeirinho, por isso migrou seu trabalho para escrita de contos e causos do povo.