A vida de Orlando Ribeiro do Nascimento, o “Cutinga”, 38 anos, nunca foi fácil. Ele estudou até a 3º série do Ensino Fundamental, após ter se matriculado escondido dos pais. Desde muito novo trabalhou pastoreando cabras, nas safras de café e em construção civil. Recebia diárias que variavam a R$ 3 e R$ 15.
Na localidade em que mora, Barra da Mamoneira, também conhecida como Ruinha, no município de Boa Nova (BA) não havia nenhum tipo de transporte e ele tinha que percorrer longas distâncias a pé para pegar uma empreitada. Se ao fim da lida conseguisse uma saca de farinha, considerava lucro.
Aos 18 anos, um acidente banal deu início a um problema de saúde, que depois se agravaria. Jogando futebol, caiu de costas sobre a bola, quebrou o braço e começou a sentir dores nas costas. Dois anos depois, passou a ir para São Paulo a fim de trabalhar na construção civil. Tinha dificuldades para botar uma meia, não conseguia se alongar. Só quando o sangue “esquentava” é que melhorava.
Em 2006, casado e pai de duas filhas, foi contratado para fazer terraplanagem em uma obra, em Vitória da Conquista, a 90 quilômetros de sua casa. Chegando lá, a construtora trocou sua função e o colocou para fazer massa para abastecer 40 pedreiros.
“Aí me matou, moço! Comecei a sentir dores cada vez mais fortes. Ainda fiquei trabalhando sete meses até que um dia de manhã não aguentei mais. Saí para ir ao médico e nunca mais voltei” – conta o trabalhador que, apesar da gravidade, não conseguiu se “encostar (aposentar) pelo INSS.
Cutinga deu baixa na carteira e voltou para casa, acreditando que as portas não se fechariam para ele.
A ASSOCIAÇÃO
Desde 1999, existia no povoado de Barra de Mamoneira uma associação sem sede de trabalhadores rurais. Os moradores não acreditavam que pudessem obter vitórias através dela, mas a mulher de Cutinga começou a fazer parte dela.
“Um dia resolvi conhecer o que era feito ali e acabei gostando” – lembra.
A mudança de perspectiva começou a partir de 2009 com a chegada de uma equipe do projeto Gente de Valor, que ficou 21 dias elaborando um plano a partir das potencialidades e vocações econômicas do povoado, visando desenvolver atividades produtivas e gerar emprego e renda.
O projeto englobava a ampliação da oferta hídrica com a construção de barragens e cisternas, investimentos em infraestrutura básica (energia elétrica, pontes e sanitários residenciais), apoio à agricultura familiar, formação e capacitação para o trabalho e fortalecimento das organizações comunitárias.
O projeto atraiu R$ 200 mil em recursos para implantar quintais produtivos com depósitos para armazenamento de água, hortas comunitárias e área para plantio de palma (um tipo de cactos, de origem africana, usado para alimentação humana e de animais e para produção de corantes) e leucena (planta originária das Américas, resistente a longo período de estiagem, e que serve como forragem e para enriquecimento do solo).
Todas essas novidades, incluindo o método que aumentava a produtividade da produção das cactáceas de 50 toneladas para 400 toneladas por hectare – suficientes para alimentar 200 carneiros de forma sustentável – fizeram Orlando Cutinga se apaixonar pelo trabalho comunitário e desenvolver em seu quintal uma interessante área de plantio.
“Às vezes, você faz coisas que dão certo, mas as pessoas continuam considerando você um louco” – conta o agricultor.
Com o tempo vieram novas parcerias e tecnologias de convivência com a seca, mas para isso muitos problemas tiveram de ser superados.
DE FISCAL A PRESIDENTE
Orlando Cutinga entrou na associação como fiscal de projetos. Logo depois, o tesoureiro da entidade esqueceu de um documento para abrir uma conta bancária onde seria depositado verba para um projeto. O episódio gerou discussão, resultando na saída do responsável pelo caixa.
No meio do imbróglio, estava sendo realizado um treinamento para captação de associativismo e Cutinga foi apontado como um possível ocupante da tesouraria. Só aceitou após exigir que a associação passasse a ter livro caixa, fizesse prestação de contas e se mobilizasse para construir a sede.
“Disse para o então presidente que isso era apenas a terça metade do que a gente ouviu durante o treinamento. E que era preciso levar tudo muito a sério. Ele aceitou” – recorda.
Outras providências foram tomadas como a divisão de responsabilidades. Os livros de atas e caixa passaram a ficar na sede e controlado pelo tesoureiro, respectivamente. Antes tudo ficava na mão do presidente.
Com tudo organizado, a comunidade passou a ser beneficiária de muitos programas. Com isso, surgiu também oferta de propina por parte de empresas interessadas em tocar as obras. O tesoureiro recusou, mas os corruptores não desistiram. Eles se associaram a vereadores e donos de material de construção para pressionar os líderes comunitários.
A resistência de Cutinga obrigou os vencedores da concorrência a melhorar a qualidade do material de construção fornecido e permitiu a execução de 47 cisternas, sendo que dos R$ 125 mil previstos para as obras ainda sobrou R$ 5.300. Pouco depois, o tesoureiro entregou o cargo.
O rigor no acompanhamento dos programas que beneficiavam a comunidade fez com que o trabalhador rural e pequeno criador de animais fosse eleito presidente da associação oito meses depois. Dos 56 sócios com as obrigações em dia, 50 votaram em Cutinga. Seis preferiram o candidato que tentava se reeleger.
A atração de cisternas de consumo e de produção, a implantação de banco de sementes e a conquista de 19 casas do Programa Nacional de Habitação Rural (Minha Casa, Minha Vida rural) e um sem número de parcerias foram frutos de dois mandatos do ex-fiscal na presidência da associação. Em maio do ano passado, ele entregou o cargo, mas continua participando de todas as reuniões.
As 200 famílias de Barra da Mamoneira vivem do Bolsa Família ou são pequenos criadores de animais. O intercâmbio com outras comunidades fez pecuaristas locais priorizarem o gado leiteiro desde o ano passado, quando conheceram a experiência de Catingal, que será matéria de Meus Sertões nos próximos dias. A mudança trouxe ainda um resfriadouro para as imediações do entroncamento de Boa Nova, com capacidade para armazenar três mil litros de leite.
Além desta troca de experiência, Cutinga também participou em Minas Gerais de encontros com comunidades antes degradadas que conseguiram recuperar nascentes e em criações de abelhas. Mas, foi no banco de sementes e no plantio da palma que ele resolveu investir.
“A nossa semente crioula estava acabando. Com o banco de semente a gente conseguiu resgatá-la. Nos períodos de chuva também não precisamos mais buscar sementes na rua (sede do município). O problema de plantar e não ter produção por não saber que tipo de semente estava plantando também foi resolvido” – explica.
Com a palma, cuja produção decuplicou, vieram a leucena e a algaroba, que empobrece o solo, mais é vista como necessária na região por ter crescimento rápido e suas folhas servirem como ração.
“Não temos madeira, não temos árvore nenhuma. Com ela podemos fazer uma cerca e usar lenha” – explica.
Todas estas tecnologias e a troca de informações resultou, segundo Cutinga, na melhoria de vida no campo e na redução do êxodo rural
“Mesmo em tempo de seca, não tem dinheiro que faça eu sair daqui” – avalia.
A PLANTAÇÃO DE PALMA
Antes dos intercâmbios, os moradores da Mamoneira só conheciam a palma como alimento para animais. Aprenderam em suas andanças que ela também é ótima para adubação e que é possível fazer suco da raquete, da folha e da fruta.
A informação de que alguns bancos ofereciam linhas de crédito maiores para plantadores de palma fez Cutinga dizer para a mulher que ia encher o terreno que possuiu de cactos.
No quintal da família, atualmente, há pelo menos seis tipos de palma: a gigante, a orelha de elefante japonesa, a orelha de elefante africana, a palma miúda com espinho (tem mais proteína), a sem espinho (boa para alimentação, mas menos resistente) e a orelha de onça.
Plantada de forma adensada é possível produzir até meia tonelada de palma por hectare, antes a produção era de aproximadamente 50 mil quilos.
Com as diferentes espécies de palmas estão plantadas mamona, boa para afofar o solo e fazer cobertura; feijão de porco, usado para adubação, alimentação e combate a vermes em animais; leucena; e árvores frutíferas (tangerina polca, manga rosa e graviola). A água usada na plantação é retirada de um barreiro.
Até então Cutinga possuía um terreno com 12 tarefas*. Com os resultados obtidos, adquiriu uma área contígua ao seu terreno para ampliar a produção.
(*) Uma tarefa baiana equivale a 4.356 metros quadrados.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.