A tese “Histórias e Leituras de Almanaques no Brasil”, da doutora em educação Margareth Brandini Park, nos brinda com um personagem fantástico. Seu Vicente, nascido em 1916, em uma cidade do interior, é filho de um colono de fazenda de café e de uma escrava liberta que carregava uma marca de ferro no seio feita a mando da sinhá para não atrair a cobiça de seu proprietário.
Vicente, pajem de uma família influente, conta que a primeira vez que viu um “armanaque” foi no orfanato, em 1828. Segundo ele, o que mais lhe atraía na publicação era a história de Jeca Tatu, que ensinava as crianças a não andarem descalças para não pegarem doenças. O almanaque e a Bíblia eram os únicos livros que tinha acesso.
“Lá (no orfanato) se usava os remédio indicado nele. A professora ensinava as letras e eu procurava as letras no armanaque (sic)” – conta.
Na casa onde trabalhou, havia um. Quando casou e foi morar em um sítio, Vicente aprendeu a plantar lendo o livreto. Os nomes dos filhos eram tirados do almanaque, que ficava pendurado ao alcance de todos no armário da cozinha, e do “livro sagrado” (Bíblia).
“Eles davam na farmácia. Era só compra quarqué coisinha e vinha armanaque. Sinhá, o armanaque era iguá a gente ter um médico em casa (sic)” – diz ele, baseado nos anúncios de remédios, tônicos e elixires.
Pelo depoimento se tem a dimensão da importância dessas publicações na vida dos brasileiros.
Filho de agricultor, nascido em Riachão de Jacuípe, o jornalista Evandro Matos se valeu de sua experiência pessoal para resgatar algo que considera indispensável para o sertanejo. Amanhã, dia 25 de janeiro, ele lança o “Almanaque do Sertão”, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Riachão do Jacuípe.
“Eu sou filho de um agricultor. Trabalhei na roça até os 15 anos. Convivi muito com meu pai, um homem que sempre pegou o Almanaque Pensamento (editado anualmente desde 1912), o Almanaque Biotônico Fontoura (1919-1985). Um homem que entendia muito dessa questão da natureza. Ele olhava para o céu e sabia se ia chover por aqueles dias. Quando soprava o vento norte era fatal: a chuva estava perto” – recorda.
Evandro afirma que até hoje o nordestino tem necessidade de obter informações sobre previsão do tempo, fases da lua, fenômenos da natureza e muita coisa da sabedoria popular. Neste tópico, cita como exemplo o conhecimento dos profetas da chuva, incluídos no almanaque.
Desde que começou a preparar o livro, em setembro do ano passado, Evandro localizou dois profetas em sua região.
O agricultor Aurino Pereira Lima, o Aurino da Goiabeira, de Conceição do Coité, baseia seu conhecimento em pedras de sal para saber quais serão os meses mais chuvosos. A experiência consiste em colocar as pedras, representando os meses do ano vindouro, no sereno. Pela manhã, a que estiver mais dissolvida simboliza o mês mais chuvoso. As que estiverem inalteradas identificam o período de seca.
Aurino, cuja foto está na capa do almanaque, também valoriza os sinais da natureza. Segundo ele, quando a árvore conhecida como carrancudo chora (as folhas ficam úmidas) é sinal de chuva. Essas sinalizações constam em parte das 108 páginas do almanaque.
Já Neca do Táxi, profeta da chuva de Riachão do Jacuípe, prefere se valer de equipamentos como termômetros e pluviômetros para fazer suas previsões. Da lavra do meteorologista amador foram escolhidas dicas de, por exemplo, como enfrentar uma tempestade.
As principais chamadas do almanaque estão relacionadas aos fatores climáticos. Nelas constam a previsão de 10 anos sem estiagem, as causas e históricos das piores secas do Nordeste, projetos de convivência com a falta de chuva e um artigo sobre desertificação.
Evandro Matos manteve ainda seções tradicionais como fases da lua, período bom para plantar e um causo contado por Tiago Preto, mecânico e dono de bar que tem um programa de piadas na Rádio Jacuípe.
A tiragem deste primeiro número é de mil exemplares.
Nem bem começaram os lançamentos – depois de Riachão, eles acontecerão em Ichu e Pé de Serra, na segunda-feira, dia 28 de janeiro -, Evandro está planejando a edição de 2020:
“Vou incluir mais questões ambientais como a extinção de pássaros e da vegetação nativa. Pretendo ampliar a indicação de remédios caseiros. A edição deste ano trata dos benefícios da aroeira, mandacaru e umburana de cambão” – antecipa.
O exemplar do “Almanaque do Sertão” será vendido a R$ 12.
Meus Sertões encomendou o dele.
ORIGENS E HISTÓRIAS
Os almanaques surgiram em 1455, na Europa, segundo o historiador francês especializado em Idade Média Jacques Le Boff. Eram escrito em pergaminhos e colados à capa interna do livro de orações. Indicavam os meses, os dias de festa, os signos do zodíaco.
Em 1550, o almanaque do médico e alquimista Nostradamus tornou-se célebre em virtude de algumas profecias. No entanto, a publicação mais importante foi o “Le Grand Calandrei Compost des Bergers “(“O Grande Calendário de Compostagem dos Pastores – 1491), que trazia notícias astrológicas, descrições de vícios e sentimentos, receitas, conselhos sobre doenças e remédios ligados aos signos, que eram associados a partes dos corpos.
No Brasil, o Pharol da Medicina, editado com o patrocínio da Drogaria Granado do Rio de Janeiro, em 1887, serviu de modelo para os almanaques de farmácia que viraram uma febre com o passar dos anos. A tiragem anunciada era de 100 mil exemplares As cidades de Lorena (1882) e Campinas (1886) também tinham seus “almanacks”.
Outra publicação importante foi o “Almanach de Pernambuco”, publicado anualmente com até 300 páginas. No formato de livro de bolso, foi criado por Julio Pires Ferreira, doutor em ciências jurídicas e sociais. Inicialmente editado pela Typografia de Tondella, Coches e Sucessores de F.P. Bolitreau, depois pela Oficina de Imprensa Industrial e pela Oficina da Imprensa Oficial, circulou entre 1899 e 1931, ano da morte de seu criador.
O “Almanach de Pernambuco” vendia anúncios e assinaturas. De acordo com o doutor em história Rômulo José de Oliveira Júnior, era dividido em duas partes. A primeira trazia biografias de pernambucanos e outros brasileiros que se destacavam na sociedade. A segunda, calendários, feriados, festas religiosas, fenômenos naturais, sonetos, poemas, prosas, enigmas, charadas, retrospectivas históricas e histórias de prédios públicos.
Entre 1890 a 1892, foi a vez do Almanachs Fluminenses, destinado às senhoras.
O MAIS FAMOSO
O Almanaque do Biotônico foi lançado em 1919 e se espalhou pelo país, tornando-se o mais famoso do país. A publicação foi idealizada pelo escritor Monteiro Lobato, que a ilustrava e editava. Existe a versão que Lobato andava desanimado e o farmacêutico Cândido Fontoura receitou para ele o medicamento que criara. Recuperado, decidiu produzir o livreto.
As primeiras edições traziam conteúdo variado, incluindo horóscopo, dias bons para a pescaria, passatempos e histórias em quadrinhos que retratavam o personagem Jeca Tatuzinho, criado por Monteiro Lobato.
A edição de 1962 tinha 36 páginas coloridas e foi publicada na Bloch Editora, a mesma da revista Manchete. No pequeno expediente constava que o periódico era de propriedade e responsabilidade de Dirceu de Castro Fontoura, filho do criador do tônico e do Instituto Medicamento Fontoura.
Reportagem do jornal Estado de São Paulo de 21 de maio de 1969 informa que quando completou 50 anos, o almanaque teve uma edição de 3 milhões de exemplares.
Informação atribuída à obra “Do Almanack aos Almanaques”, de Marlyse Meyer, da Fundação Memorial da América Latina, dá conta que cem milhões de exemplares foram distribuídos em 1982.
Os almanaques de farmácia – Biotônico, Capivarol e Sadol – duravam pouco tempo nos balcões das farmácias do interior. Eles eram distribuídos com os fortificantes. A concrorrência era tanta que seus representantes evitavam se cruzar nos estabelecimentos comerciais.
Já o Pensamento, citado por Evandro, começou a ser editado em 1912 e permanece até hoje. Vendido na internet e em livrarias por cerca de R$ 12, traz previsões astrológicas, horóscopo chinês, efemérides, santos do dia, receitas vegetarianas, numerologia, previsão do tempo, agricultura e pecuária.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.