Católica fervorosa, Benta Pereira Lobo, 85 anos, reza diariamente três vezes o ofício de Nossa Senhora, três vezes o terço, 90 Salve-rainhas, além de Ave-marias e Pais-nossos. Ela ora para pedir proteção à família e para “os padres cuidarem bem dos seus rebanhos”.
A grande quantidade de preces diárias não impede que ela cumpra a tradição familiar de mais de um século: a realização, no início de maio, da reza-penitência da Invenção da Santa Cruz, devoção criada na Idade Média. Neste caso, a palavra invenção tem o sentido de encontro.
Foi seu Leobino, criado pela madrinha e beata Maria Bazinha, que valorizou a realização do rito entre os parentes. Antes de morrer, ele pediu para a reza ser mantida todo dia 3 de maio, sem explicar a origem nem o motivo para essa adoração. Benta tomou para si a missão dada pelo pai. Ela reúne os familiares e amigos na data especificada, uma das três vezes no ano em que os católicos veneram a cruz na qual Jesus Cristo foi crucificado.
A reza-penitência consiste em se ajoelhar e se levantar 100 vezes enquanto o fiel ora uma centena de vezes a jaculatória da Invenção da Santa Cruz e a mesma quantidade de Ave-marias. Para não perder a conta e descumprir a proeza, a líder do grupo utiliza caroços de milho ou de feijão, que são separados um a um, formando montes de 10 até chegar à meta estipulada.
A oração começa:
“No dia da bela Cruz, 100 vezes me benzi, 100 vezes me ajoelhei, 100 ave-maria eu rezei.
Em seguida todos se ajoelham para rezar a Ave-Maria e levantam quando terminam. A prece prossegue:
“Alevanta-te alma forte, que passando pela hora da morte, no campo de Josafá, passará o inimigo da Cruz. Encontrarás, dirás: arredefáz satanás, poder de mim tu não terás, pelo poder de Deus e da Virgem Maria.”
Juliana Pereira Porto, sobrinha de Benta, compara a reza-penitência a exercícios puxados feitos em academias. Segundo ela, as pernas ficam doloridas durante uma semana após as orações. Ela conta que pela primeira vez, devido a pandemia de Covid-19, a família e amigos não se reuniram este ano. Cada um cumpriu o ritual em casa.
Benta chama a atenção para o fato de que a Invenção da Santa Cruz tem um relevante diferença se comparada às demais rezas realizadas no sertão: não há um lado profano como, por exemplo, a realização de rodas musicais após o término da parte religiosa.
“Também não há distribuição de comida, servimos apenas café e pronto. Muita gente alega ter esquecido a data e não vem por causa disso” – conta.
A ex-professora não participa mais do ato de ajoelhar e levantar porque sofre de artrose. Ela acompanha o ritual sentada. E lembra de quando era mais nova e ia com frequência à missa. Atualmente só se desloca da Fazenda Rancho do Negro, onde mora, até o centro de Rio do Antônio, no sudoeste baiano, quando uma sobrinha vai buscá-la de carro. Da moradia à igreja são sete quilômetros de distância. Do município a Salvador, 717.
Assim como o pai, Benta quer que alguém da família assuma a responsabilidade de manter a reza-penitência, mas não tem preferência por um sucessor. Ela conta que tem cerca de 100 sobrinhos, filhos de 15 irmãos – sete do primeiro casamento do pai e nove do segundo, núcleo ao qual pertence – e diz que não teve filhos porque nunca conheceu um homem.
“Deixo a missão para quem ficar por aí. Não posso escolher ninguém. O povo está de um jeito hoje, amanhã de outro” – diz referindo-se a troca de religião por vários componentes da família e a atual pandemia do novo coronavírus, que pode matar quem menos se espera.
Quanto à mudança de crença, dona Benta é categórica:
“Nasci católica. Vou morrer do mesmo jeito.”
Antes de seu Leobino falecer, chamou a filha e disse que deixaria para ela a única coisa que tinha: o livro “Novas Horas Marianas”, de 1848. A publicação, com capa de couro, pertenceu à Bazinha e foi benzida pelos missionários José e Júlio, cujos sobrenomes estão ilegíveis, no fim da primeira metade do século XIX (19), em Salvador. A herança está bem guardada e conservada.
Não é para menos. É um livro antigo e não é barato. Há dois exemplares à venda do também chamado Ofício Menor da Santíssima Virgem Maria Nossa Senhora no site Estante Virtual, organizado pelas principais lojas de livros usados do país. O primeiro, edição de 1923, está sendo vendido por R$ 150. O segundo, mais antigo (1908), custa R$ 449,90.
Um episódio ocorrido em 2015 fez dona Benta ter certeza de que ter fé é fundamental. Ela sofreu um acidente vascular cerebral e foi levada para um hospital em Brumado, a 67 quilômetros de distância.
“O médico disse que as chances de ela sobreviver eram mínimas e avaliou em 3%” – revela Juliana.
Após quatro dias em coma, Benta recuperou os sinais vitais e foi transferida para um quarto. Em pouco mais de uma semana, recebeu alta.
“O doutor disse para mim que não foi remédio que me curou. Foi Deus do Céu” – diz a aposentada, emocionada.
Por levar tão a sério a reza-penitência, dona Benta determinou que todos os parentes usem o banheiro antes do ritual começar para não o interromper. Também exige que os celulares sejam desligados.
mil vezes jesus
Leobino fez o pedido à filha Benta para manter a tradição que ele sempre apreciou e cumpriu. Ela obedeceu sem fazer perguntas, sem saber nada além do rito de se reunir em um cômodo da casa onde tivesse um altar e fazer o que chama de “reza forte”.
Em busca de mais informações sobre a prática, Meus Sertões primeiro se deparou com uma oração muito parecida na página Diversos Terços Católicos, no Facebook. Nela, consta o “Terço da Santa Cruz” e não há alusão à Ave-maria, muito menos aos atos de joelhar e levantar. A penitência é bem mais amena. Usando um rosário, nas contas do Pai-nosso, se reza assim:
“Alma minha põe-te rija e forte/Eis que tens que passar pelo vale da morte/ No campo de Josafá, o inimigo encontrarás/ E tu dirás: vai-te embora satanás/ Esta alma que tu procuras não terás/ Pois no dia da Santa Cruz/ Mil vezes eu disse Jesus.
Usando as 200 contas da Ave-maria cinco vezes é preciso repetir “Jesus, Jesus, Jesus” mil vezes.
Dando a continuidade à pesquisa, encontramos em um site português informações sobre o Dia da Invenção da Santa Cruz, celebrado no dia 3 de maio. Segundo a página eletrônica de efemérides, a data registra a descoberta da Cruz de Cristo, chamada de Vera Cruz, no ano 326, por Flávia Júlia Helena, mais tarde reconhecida como Santa Helena, mãe do imperador romano Constantino.
Na mesma data, no ano 630, a Cruz foi entregue ao patriarca Zacarias após ter sido recuperada na Pérsia. Nesta ocasião, recebeu a designação de Dia da Invenção da Santa Cruz e passou a ser celebrada na Gália, antiga região francesa que serviu de província do Império Romano.
Com o passar do tempo, a celebração se espalhou pelo mundo, sendo que em Portugal passaram a realizar festas e romarias; ornar fontes com flores, verduras e arbustos aromáticos para proteger as pessoas dos males que andam à solta de noite. A Santa Cruz também é exaltada no dia 14 de setembro e tem destaque na Sexta-feira Santa, dia da crucificação de Cristo.
PIAUÍ E MINAS
Foi na pequena cidade de Santa Cruz dos Milagres, no Piauí, onde vivem 4.019 pessoas, que a devoção à Cruz mais prosperou. O antigo distrito de Aroazes, a 180 quilômetros de Teresina, se emancipou em 1993. Onze anos depois, graças a doações de fiéis, iniciou a construção do que viria a ser o maior templo católico do estado, voltado à veneração do instrumento do suplício de Jesus Cristo. A inauguração ocorreu em 2010.
A veneração à Cruz teve início, segundo a crença popular, com a chegada de um beato à fazenda Jatobá. Este homem teria pedido para um vaqueiro lhe acompanhar até o alto de um morro. Lá chegando, entregou um cavador de madeira ao rapaz, ordenando que ele cavasse um buraco na rocha. Enquanto isso, o homem santo foi buscar galhos de árvores no mato.
Ao voltar, o vaqueiro não havia conseguido cavar nem um milímetro. O velho beato traçou um círculo na pedra com o dedo e com a mão arrancou um pedaço da pedra, abrindo um buraco profundo, onde fincou a cruz. Ele teria dito ao jovem que ali aconteceriam maravilhas e milagres. O beato continuou viagem e o vaqueiro voltou à lida.
Um dia a filha do vaqueiro ficou muito doente. Quando estava sem esperanças, o pai da menina lembrou do que lhe dissera o velho pregador e a levou a criança até à cruz e lhe deu um banho e a fez beber da água da nascente que passa pelo local, curando-a. Naquele local foi erguido o santuário – a obra levou seis anos -, que hoje tem capacidade para 3.500 fiéis e recebe dezenas de milhares de romeiros anualmente.
Os piauienses rezam uma prece parecida como a que é feita por dona Benta, mas tornaram a penitência mais cansativa:
“Nos campos de Califas, o inimigo da Cruz encontrarás. Arreda e afasta-te, Satanás, tu comigo não tens conta, deixa minha alma passar em paz. Porque no dia da Invenção da Santa Cruz, cem vezes me ajoelhei, cem vezes o chão beijei, cem vezes me levantei, cem vezes me persignei (pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor, de nossos inimigos), cem Ave Marias rezei, cem na véspera e cem no dia. Me encomendo a Deus e à Virgem Maria. Cem vezes do Cão arreneguei. Arrenego de ti, Satanás. Ave Maria…”
A explicação para o “exercício” (ajoelhar, beijar o chão, levantar), segundo os padres diocesanos responsáveis pelo santuário, vem de um tempo em que se valorizava mais o sentido da penitência corporal, buscando um paradigma na Paixão de Cristo.
O culto do encontro da Santa Cruz também é realizado em Santa Maria do Suaçuí, na região de Governador Valadares, Minas Gerais. Lá, os devotos chamam a celebração de Terço de Santa Cruz e valorizam mais a oração.
Realizada há cerca de 70 anos, a comunidade enfeita um pequeno morro com bandeirolas coloridas e se reúnem no cruzeiro para rezar. Há pelo menos três vídeos no canal Beleza de Minas sobre a devoção. Clique aqui para ver um deles.
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AGRADECIMENTO
Meus Sertões agradece Juliana Porto, sobrinha de dona Benta, por ter sugerido a pauta, nos ter colocado em contato com a tia e por ser autora da maioria das fotos utilizadas na reportagem. Essa matéria também tem a tua assinatura Juliana, muito obrigado.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
Respostas de 8
Parabéns pela reportagem.
Que bom lê e ficar sabendo dessas tradições.
Conheço Dona Benta, e sabia da reza.
Só não sabia de toda essa tradição deixada pelo Sr. Leobino.
Juliana, fez muito bem dá essas informações para o conhecimento de muita gente que não sabia da tradição de Dona Benta.
Gileno, grato por nos dar esse retorno. Realmente, Juliana foi fundamental para revelarmos este tesouro cultural e religioso para muita gente. Abraço,
Paulo Oliveira
Muito obrigado Paulo de Oliveira. Gostei. Os sertões guardam muitos segredos e devoções no populares carregadas de lamentos,tpromessas, penitências e fé. Não importa a lógica da linguagem ou d gramática. O mais interessante é a contrição fervorosa dos atos rezados.
Obrigado, Roque. Mostrar a riqueza cultural do sertão e preservá-la fazem parte de nossos objetivos. Grato pelo contato, Paulo
Parabens Paulo Oliveira por contar a historia da minha conterania, Tia Benta como carinhosamente tdos da minha familia chama.
Tdos os anos participo da reza grande como e chamada.
Realmente Tia Benta e uma mulher de muita fé.
Foi minha primeira professora.
A juliana tda minha adimiração por cuidar com tanto zelo de tia Benta
Parabens.
Nós é que agradecemos à Dona Benta e à Juliana por terem sido tão gentis e colaborarem conosco. Agradecemos também a você, Gelva, por nos acompanhar e nos enviar esta mensagem carinhosa. Grato, Paulo.
Estava procurando esta oração/reza forte. Há dois dias acordo pensando nela e desperta em mim o desejo de fazê-la pois há mais ou menos 30 anos atrás fiz e alcancei muitas graças. Não conhecia a história é agradeço por publicá-la. Neste momento estou diante de Santíssimo sacramento rogando não ser interrompida pois tenciono fazê-la agora. Grata!
Que Deus lhe atenda. É o que deseja a equipe do site Meus Sertões