“A primeira criança que morreu em meus braços era um menino muito magro. Tomei-o nos braços: ele tinha olhos grandes, abria e fechava a boca. Eu procurei água no pote, mas não havia água. Também não encontrei água na torneira. Levantei-me às pressas, e saí em direção à rodoviária, para pegar um ônibus e ir ao hospital. No caminho, vi que ele estava morrendo. Olhei para o menino e desabafei num choro que não conseguia conter. Parei e, olhando bem para ele, molhei a ponta dos dedos nas lágrimas que caíam no seu rosto magro, quase sem vida, e pensando em Deus, disse: José, eu te batizo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém”.
As lembranças do tempo em que o Padre Airton Freire de Lima, 64 anos, foi morar em uma casa de taipa na rua do Lixo, na verdade o local onde estava situado o vazadouro do município de Arcoverde, no sertão pernambucano, estão vívidas em sua memória e registradas no livro “Aos Olhos de Deus”, escrito em 1997, em português e alemão, e até hoje entre os livros mais vendidos dos cerca de 90 de autoria do religioso.
Foi na rua do Lixo que o também psicólogo Airton Freire encontrou resposta para a crise existencial que teve pouco após ser ordenado: “Qual o sentido de ser padre?”. A vida entre os pobres, opção preferencial de Deus, lhe deu forças para transformar a realidade da rua e da cidade, abrir caminhos através dos braços sociais e espirituais da Fundação Terra, fundada por ele, e espalhar suas obras por outros estados.
Muitas vezes comparado ao Padre Cícero, religioso nordestino extremamente popular pela sua simpatia, feitos e por cuidar dos fiéis, sobretudo os menos favorecidos, Airton Freire diz que as únicas semelhanças são ouvir o povo e atender as suas necessidades. O posicionamento e a popularidade de ambos, no entanto, não trouxeram apenas conquistas e alegrias.
Cícero, acusado de forjar um milagre pelo bispo de Fortaleza dom Joaquim José Vieira, chegou a ser excomungado pela Igreja. Padre Airton, visto como adversário por políticos locais que temiam sua eventual candidatura à prefeitura, convenceram o bispo da Diocese de Pesqueira a impedi-lo de atuar na rua do Lixo. Em ambos os casos, as decisões foram revistas. A reabilitação de Cícero ocorreu 81 anos após a sua morte. A punição imposta ao padre pernambucano levou bem menos tempo.
A história de Padre Airton Freire, que goza de prestígio entre os pobres, empresários e políticos influentes – assim como Cícero, começa em São José do Egito, em 29 de dezembro de 1955, data de seu nascimento. De uma família pobre, com cinco irmãos, Airton fez o primeiro grau no Colégio Olavo Bilac, na capital. Depois, estudou filosofia, teologia e psicologia. Foi no Instituto de Teologia do Recife, na época do arcebispo dom Hélder Câmara, que pregava uma igreja simples, voltada para os pobres, e a não-violência. Os ensinamentos marcaram o jovem seminarista.
Ordenado em 13 de fevereiro de 1982, foi designado para a cidade de Pedra, a 18 quilômetros de Arcoverde. Lá, começou a desenvolver um trabalho na rua da Palha, onde não havia casa com sanitário. O padre organizou um mutirão e comandou a construção de 30 banheiros. A vida sacerdotal era compartilhada com a de psicólogo. Airton Freire mantinha um consultório e dava aula em uma faculdade. Foi quando uma aluna lhe convidou para conhecer em Arcoverde um local mais miserável do que o existente na cidade vizinha: a rua do Lixo.
Em sua primeira visita ao local, em 1984, ele viu crianças disputando restos de comida com cães, porcos, cabras e jumentos; famílias vivendo em casas de papelão ou de taipa; ruas sem pavimentação, sem iluminação; e esgoto correndo à céu aberto. O que lhe deixaria ainda mais impressionado ocorreu durante a primeira missa que celebrou na rua, debaixo de uma árvore. Durante a cerimônia, na hora da comunhão, uma criança começou a chorar e a dizer: “Eu quero bolacha. Eu tô com fome”. O menino confundiu hóstia com biscoito. Naquele momento, o padre reconheceu que trabalhar em favor dos pobres era a missão dele. Decidiu morar na rua do lixão, em uma casa de taipa, e, logo em seguida criar a Fundação Terra, organização não-governamental voltada a atender os pobres.
“Na época, Arcoverde era a cidade brasileira, proporcionalmente, com mais gente morando e dependendo no lixo. Trezentas e vinte famílias estavam nessa condição. Praticamente todos eram analfabetos” – diz Wellington Santana de Lima, 58 anos, irmão do Airton e superintendente da fundação.
A primeira construção efetiva, depois de iniciar um projeto de alfabetização de adultos, foi uma creche. Inicialmente funcionando em uma casa de taipa, o berçário e jardim de infância eram mantidos com o salário de professor e com o que Airton ganhava como psicólogo. O dinheiro dava para comprar leite, frutas e os ingredientes para fazer papas para as crianças, as primeiras a deixarem de catar restos de comida no lixo. Depois da creche, veio a escolinha Ping Pong. Posteriormente (1994), as duas seriam englobadas pela Pax Christi Schola.
O padre começou a escrever cartas às autoridades municipais. Prefeito e vereadores ignoravam os pedidos de infraestrutura para a comunidade. O desprezo serviu como motivação para a realização da primeira passeata realizada em Arcoverde. Estudantes e catadores seguiram Airton Freire até a prefeitura.
“Não sei dizer quantos éramos. Eu carregava nos ombros um menino de quatro anos e meio que me deram para criar. À medida que caminhávamos, crescia o número de pessoas. “Luz, luz, queremos luz” era o nosso refrão. A polícia já estava por perto. O prefeito, doutor Ruy de Barros Filho, recebeu-nos. A Rádio Cardeal já anunciava “esse escândalo, que era um padre fazendo passeata com o pessoal do lixo” – relata Airton no livro “Aos Olhos de Deus”.
A história prossegue contada por Washington:
“O prefeito pediu para que a esposa dele atendesse o grupo. Ela era presidente da Legião Brasileira de Assistência (LBA) no município. Não foi uma recepção de acolhimento ou satisfação. Pode-se dizer que foi até hostil. A mulher do prefeito, que viria a ser eleita para o cargo também, disse que sabia quais eram as reais intenções do padre. Ela falou assim: ‘Não vou criar cobra para me morder. O senhor está querendo ser prefeito de Arcoverde, pensa que eu não sei? Eu não tenho nem voto ali “– não ocasião analfabeto não podia votar’. Ela deixou claro que como não conseguiria votos, o povo que continuasse no lixo, pois não era problema dela”.
Aproveitando o embalo, o padre seguiu em passeata para o escritório da Companhia de Eletricidade de Pernambuco (Celpe), onde foi muito bem recebido pelo gerente. Saiu de lá com a promessa de que a funcionária iria à comunidade analisar a situação. A Celpe ainda era uma empresa estatal e estava expandindo as linhas de transmissão no interior. Três meses depois, a rua do Lixo ganhou energia. No entanto, a partir daí uma série de intrigas, culminaram com a saída de Padre Airton de Arcoverde
Mudança para Minas Gerais
O resultado favorável da manifestação desagradou os políticos. O prefeito procurou o então bispo de Pesqueira, hoje falecido, Dom Manuel Palmeira da Rocha, e pediu para que o afastasse. Wellington conta que o irmão foi convocado à diocese e ouviu do bispo que ele poderia fazer celebrações em qualquer lugar da diocese, menos na rua do Lixo. Insatisfeito, o padre tomou uma decisão radical: decidiu deixar de ser diocesano (incardinado em uma igreja – diocese –, que tem área territorial definida e está sob orientação direta do bispo) e passou para uma ordem, cuja atuação se dá em território mais amplo e é subordinada ao superior hierárquico. Sua escolha recaiu sobre os jesuítas. Em 1986, partiu para Minas Gerais.
Como já era padre, foi designado para a paróquia de Belvedere, bairro de classe alta em Belo Horizonte. Suas pregações sobre os vazios existências e carências diversas que fazem todos serem pobres em algum sentido agradou aos fiéis. Embora com seu trabalho reconhecido, resolveu voltar para Arcoverde um ano e meio depois, “quer o bispo quisesse ou não”, conforme o relato de Wellington.
O ímpeto foi refreado pelo Conselho de Padres, que lhe negou o uso de ordem da Diocese de Pesqueira. Afastado das atividades religiosas, padre Airton ficou atuando como voluntário em hospitais e voltou a morar na rua do Lixo. Um de seus poucos compromissos na diocese era se encontrar na primeira segunda-feira de cada mês com Dom Manuel Palmeira. Em uma dessas ocasiões, contou como era a vida entre os pobres e disse que sentia constrangimento por estar sendo chamado de ex-padre. Foi então que recebeu autorização para fazer celebrações sozinho, à noite, desde que o Conselho não ficasse sabendo. Ao fim de 11 meses foi reintegrado.
“A época das eleições passou e viram que ele não seria candidato” – diz Wellington.
O reestabelecimento das atribuições, no entanto, não facilitou a obtenção de apoio financeiro e material para o desenvolvimento de obras sociais na rua do Lixo. Foi aí que Airton teve a ideia de fotografar a situação das crianças e adultos que viviam do lixão para sensibilizar doadores. O primeiro lugar onde buscou ajuda foi na paróquia do bairro Belvedere, em Minas Gerais. Lá, mostrou a comunidade que abraçou desde quando se tornou padre e pediu ajuda, argumentando ser Arcoverde uma cidade pobre e relatando a falta de apoio do poder público aos seus projetos.
Como ficou o antigo lixão
Os mineiros foram os primeiros a enviar recursos para desenvolver as obras da Fundação Terra, que em 2020 completou 36 anos. A partir da observação da necessidade da comunidade, padre Airton decidia qual projeto seria implantado. O centro ginecológico e pediátrico foi criado a partir de antiga prática abortiva das mulheres da rua do Lixo: elas colocavam uma agulha grande pela vagina para perfurar a bolsa e perfurar o feto, matando-o. O padre tomou conhecimento disto no dia em que foi chamado para socorrer uma jovem desmaiada e pálida por ter perdido muito sangue. Entre as pernas dela se via a agulha.
A ajuda do exterior passou a ser recebida depois que Airton Freire recebeu um convite para apresentar a comunidade e o trabalho desenvolvido em Hamburgo, na Alemanha. Os slides que mostrou despertaram o interesse de jovens alemães em conhecer e trabalhar como voluntários em Arcoverde. Cristian Bearbaum, que mantém relações com a Fundação Terra até hoje, foi o primeiro. Ele quebrou pedra, ajudou a construir um galpão e depois organizou a ida do padre para outras cidades alemãs. Por um bom tempo, a principal fonte de recursos da fundação veio da Europa.
Na proporção que a Fundação crescia, padre Airton era vítima de boatos e acusações infundadas. Após visitar uma ocupação de sem-teto no local conhecido como Vila do Presídio foi chamado pela imprensa local de baderneiro. Também era acusado por colegas da diocese de querer fazer uma “igreja particular” na rua do Lixo.
Não se pode afirmar que até hoje há prevenção com relação à atuação de padre Airton, entretanto, a reação da cúpula da regional Nordeste 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com jurisdição nos estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, é, no mínimo curiosa. A assessoria de imprensa da entidade informou que dois bispos disseram desconhecer as obras da Fundação Terra; um alegou que era “um trabalho particular do padre”; e o quarto disse não poder falar porque estava em missão, em Roma.
Calúnias e intrigas não impediram o crescimento da Fundação Terra, que hoje beneficia através das obras sociais 84 mil pessoas em dois estados – Pernambuco e Ceará. A ONG possui 200 funcionários, além de voluntários, e tem um braço voltado para a espiritualidade, o Instituto Servos de Deus, organizadora de retiros e formadora de religiosos.
Tudo é mantido com doações obtidas através de um sistema com 12 modalidades de captação de recursos. Estão incluídos desde cofrinhos colocados em saguões de hotéis e estabelecimentos comerciais de Arcoverde, contribuições através de conta de luz, equipes de porta a porta, call center, prospecção de agências de fomento no exterior, loja para vendas de livros, mensagens e músicas gravadas por Padre Airton, venda de ingressos para palestras realizadas pelo religioso Brasil afora e o selo “Empresa Amiga”, concedido às companhias que fazem doações mensais.
Apesar de toda organização, a Fundação Terra tem encontrado dificuldades para manter os projetos que eram mantidos por empresas devido à atual situação econômica do país e por causa das consequências da Operação Lava-Jato, principalmente no tocante à Petrobras, que suspendeu todos os patrocínios. A Escola de Formação de Soldadores, situada na rua do Lixo, foi uma das mais atingidas. Na época que Meus Sertões/Projeto Headline esteve lá, os dois instrutores faziam pequenos serviços para a comunidade e o maquinário de ponta doado pela Esab, líder mundial de equipamentos de soldagem, estava encostado em um canto do galpão:
“O Complexo Industrial Portuário de Suape (PE) pedia, na fase áurea da indústria naval, 3.500 soldadores, a gente mandava 30 ou 40 à medida que os formavam. A demanda era tanta que os estaleiros iam buscar soldadores nas Filipinas e na China. Nossa escola também fornecia trabalhadores para a Indústria Naval do Ceará (Inace) e para estaleiros cariocas. Os 40 formandos anuais saíam daqui com emprego garantido. A Petrobras repassava R$ 600 mil por ano (R$ 50 mil por mês) para manter a escola. Ano passado, começamos a ver os nossos profissionais voltando para casa desempregados atrás de rumo. Quem teve sorte passou a construir grades para as casas, cujos donos estavam amedrontados com o aumento da violência” – diz Wellington.
Por outro lado, a amizade do religioso com políticos influentes como o ex-vice-governador de Pernambuco e atual deputado federal Raul Henry (MDB) garante verbas para projetos importantes. Henry diz que visitou Arcoverde e tomou conhecimento do trabalho social do padre. Acrescenta que ao constatar a idoneidade da Fundação Terra apresentou emendas parlamentares em favor dela. Henry considera Airton Freire um homem de grande elevação espiritual, imerso na plenitude dos valores cristãos
“Além de prestar serviços sociais imprescindíveis àquela comunidade, o padre tem, com sua capacidade de pregação e persuasão, modificado definitivamente a trajetória de muitas vidas” – avalia.
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As tilápias de padre Antônio O ganho dos associados Apostolado diferenciado As associações de mulheres Ivone, a mãezona Preço da ração dispara A fábrica de gelo O beatismo - capítulo de transição Tecnologia impulsiona o novo beatismo O abrigo Domus Christi Beijinha O centro de reabilitação Mens Sana O refúgio e os Servos de Deus
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.