Padre Airton Freire de Lima, 64 anos, disponibiliza meia hora para a entrevista, no intervalo do retiro que realiza para fiéis de todas as idades. Nessa conversa, ele avalia a sua trajetória, lamenta o impacto da crise econômica no país e a desativação de cursos profissionalizantes da Fundação Terra. Fala também da saúde debilitada e diz se espelha no Papa Francisco, depois de ter conhecido e convivido com santos vivos: Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce e Frei Damião. Em alguns momentos, ele se emociona e chora.
Como o senhor se sente hoje, após consolidar tantos projetos sociais e espirituais?
Eu sinto que boa parte de minha vida aconteceu a partir dos encaminhamentos que foram dados às demandas vindas dos mais pobres. Ou seja, eu não tinha um planejamento quando fui para a rua do Lixo (antigo lixão da cidade, hoje área urbanizada). Eu não tinha um plano acima, um planejamento estratégico, uma metodologia, um orçamento (ri), essas coisas que as empresas fazem. O que eu queria era morar com os pobres, viver e partilhar minha vida com eles. Dali as demandas passaram a surgir.
Quais foram as primeiras demandas?
Primeiramente, a mudança aconteceu comigo, com o meu olhar. O olhar sobre os pobres mudou. Antes eu via tudo lixo e pessoas somente catando lixo. Morando com eles, eu fui percebendo que eles possuíam talentos, possuíam uma riqueza. Sabiam construir casas, sabiam cuidar de crianças. Só não sabiam ler e escrever. Ninguém sabia ler e escrever. Agora fazer comidas, cuidar de crianças, bater tijolo, pedir esmola, mulheres e homens sabiam fazer. Eles sabiam negociar do jeito deles. E a gente foi organizando a comunidade a partir do que eles sabiam e do que pretendiam.
Quando eu perguntei: o que a gente precisa ter aqui na rua do Lixo? Disseram: “Uma creche, padre, escolinha para esses meninos aprenderem e não ficar como nós, a gente precisa deixar de morar em casa de taipa, cheias de bichos, precisa dar uma coisa mais forte para dar de comer as crianças: leite de cabra, por exemplo”.
Então o primeiro projeto foi o de criação de cabras, em parceria com a Legião Brasileira de Assistência (LBA), e o de recuperação de casebres por pedreiros e serventes. Cada família recebia 25 cabras, na condição de que a primeira cria fêmea passasse para outra pessoa para reproduzir, enquanto pedreiros e serventes reformavam as casinhas.
E hoje veja como está a Fundação Terra. Só o Mens Sana, o centro de reabilitação para pessoas com deficiências intelectuais, auditivas visuais e físicas atende pacientes de 35 municípios. Milhares de pessoas vão ao Mens Sana mensalmente. São cerca de duzentas por dia. Não é muito, mas é razoável. São 12 mil procedimentos por mês.
E agora, a Fundação Terra terá que eleger a educação como base de todas as suas atividades. Eu diria a educação no sentido mais amplo da palavra, tomada de consciência e o ensino profissionalizante para quebrar esse ciclo de miséria, esse peditório.
Qual o seu papel hoje após o crescimento de suas obras sociais e religiosa?
Continuo me sentindo como aprendiz da vida. Eu diria que eu sou um porteiro, eu abro a porta da Fundação Terra e mostro o trabalho às pessoas. E elas veem. Quando perguntaram a Jesus “Onde moras?”. Ele respondeu: “Vinde e vede”. Ele mostrou, ele é a porta. A porta do aprisco (esta palavra tem dois significados: o seio da igreja ou curral onde se abriga as ovelhas). Ele mostrou onde está, o que é feito. E as pessoas veem que o trabalho é sério. Não tem desvio. Não tem 10%, 20%, essas conversas aí. Tudo é muito correto entre nós.
O senhor foi diagnosticado com aneurisma da aorta há alguns anos. Como está sua saúde hoje?
Cuidando, né? Eu tenho que fazer exercício três vezes na semana por recomendação médica. Tenho que ser acompanhado por uma pessoa para ver as comidas. Acupuntura. Alguém do Mens Sana vem fazer umas agulhadas em mim duas vezes por semana. Mas a minha maior atividade atualmente é servir ao altar do senhor e servir aos pobres. Sou um padre que escuta muito o povo de Deus. E ajudo a esse grande mutirão que é a Fundação Terra. Eu sou um homem vestido de saco e amarrado com uma corda. É como me percebo. Eu sou o vaqueiro da esperança. Eu sou um vaqueiro, abro a porta do aprisco para as ovelhas.
Quando o senhor está isolado, refletindo, o que vem à cabeça com frequência?
Primeiro um ato de agradecimento a Deus (nesse momento se emociona e chora. Pigarreia. Leva 20 segundos para se recuperar). Gostaria que a obra tivesse continuidade (se atrapalha um pouco com as palavras) da mesma forma como ela foi pensada. A Fundação Terra existe para servir aos pobres, ela existe por causa dos padres (volta se emocionar e leva oito segundos para dar continuidade à frase) e aquele que me suceder deve ser desse mesmo espírito. Deve ser o servidor dos pobres, o menor (diz com a voz embargada). Presidente é o nome civil. O fato é o fundador, mas eu sou o menor. Quem suceder deve ser o menor também, o servo de todos, o menor de todos. São as coisas que me ocorrem. Que Deus me conceda essa graça de poder escolher aquele que vai me suceder com esse espírito de serviço, zelo e atenção (faz uma pequena pausa). Eu me emocionei, o senhor me desculpa.
O futuro sucessor deve sair do Instituto dos Servos de Deus?
Precisa. Constitucionalmente é assim. Eu tenho que preparar aquele que seja o menor, que tenha o coração de servo mesmo. Total disponibilidade. Amor à causa, aos pobres. Esquecido de si, sem salário, sem honras, envergando o saco e a corda na cintura. Usando essa mesma cruz que eu uso.
Que cruz é essa que serve como símbolo para todos os seus trabalhos?
É uma cruz celta. Ela simboliza os quatro evangelhos, a universalidade da nossa fé. Significa que estamos reunidos em torno da palavra. O que nos reúne é a palavra. E essas amarras e correntes aqui só são quebradas em Cristo. Então ela tem um laço vertical com uma cruz romana e um traço horizontal. Eles significam a relação com o próximo e a relação com Deus. Para ter um relacionamento com Deus tem que passar pelo próximo, o pobre. Um culto que não passe primeiramente por um serviço ao pobre é destituído de sentido. É vazio. A gente tem que lavar os pés para depois celebrar a ceia. Foi o gesto de Jesus. É assim.
Algumas pessoas fazem uma relação de sua obra com a do padre Cícero. O senhor vê algum sentido nessa comparação?
Eu acho que é porque Padre Cícero escutava o povo. Pelo pouco que eu sei dele, ele escutava as pessoas. Deve ser por isso. Fora isso, não vejo não. Era um homem sábio, inteligente. Ôxe!
Infelizmente o Brasil tem passado por um retrocesso que atinge escolas profissionalizantes. É possível ver isso na Fundação Terra, onde alguns cursos estão em crise…
O curso de soldagem naval, por exemplo, foi desativado. Em anos anteriores a gente mandava os jovens para a Indústria Naval do Ceará (Inace). E agora a crise, pronto! Os meninos agora vão soldar grades para as pessoas se trancarem. Imagine as pessoas se sentirem seguras colocando grades nas portas, em cima dos muros. Gradear as pessoas são as demandas atuais. Pela segurança e pelo medo. E antes, o que se fazia era soldar os navios. Era uma soldagem de muito boa qualidade. TIG (Tungsten Inert Gas), MIG eram os nomes que eles usavam. É um retrocesso, mesmo, sabe? Algo puramente funcional pela demanda de medo.
Como foi possível obter avanços trabalhando em uma comunidade tão carente?
Quando as pessoas que estão trabalhando com comunidades carentes me perguntam como foi que vocês conseguiram – da fé a gente conseguiu muita coisa – eu digo o que faz a força de uma comunidade é a união de seus membros. A gente conseguiu luz na rua do lixo porque eu estava dando aula de alfabetização de adultos e quando chegamos no capítulo da letra L, que falava de luz pelo método Paulo Freire. A gente estava discutindo luz, quem tinha luz. A gente não tinha luz, então decidimos que iríamos ter luz. Então a gente desceu com todo povo da rua do Lixo para a prefeitura para pedir iluminação. O mesmo aconteceu quando estávamos na letra A de água.
E como o senhor avalia os caminhos da Igreja a partir do Papa Francisco?
Criei esta frase: “Deus nos deu novamente um Francisco”. Homem de coragem, um homem que não tem vergonha de despir a nudez da Igreja. O João XXIII abriu as janelas e disse assim “Eu espero que o concílio dê uma rajada de ar fresco sobre a Igreja. Francisco falou: “Vocês não são príncipes, vocês são pastores. Os pastores precisam ter cheiro de ovelha”. Gente, que santo! Ele come em bandejas no meio dos trabalhadores da Casa Santa Marta. Não mora no palácio pontifício romano. Ele mora na Casa Santa Marta, que é a casa que acolhe o pessoal, uma casa de acolhimento de gente. Ele mandou construir chuveiros e lavanderias em Roma para as pessoas de rua. Ele muda a roupa dele – para não ser visto – e às quartas-feiras e vai dar comida aos pobres na rua. Um homem desses para mim é um modelo.
Além do Papa Francisco, quem mais serve de exemplo para o senhor?
Eu conheci Madre Teresa de Calcutá, quando estava em Hamburgo, em 1992, quando estava abrindo a casa em Reeperbahn, no centro de prostituição de Hamburgo.
Conheci Irmã Dulce na Bahia, com quem trabalhei no ano de 1987. Trabalhei com ela 40 dias. Já era padre, tinha três anos de padre, confessei Irmã Dulce. Em 1987, nos Alagados, estava lá com ela, eu vivia em uma casinha lá.
Conheci Frei Damião criança, me confessei com ele criança/adolescente. Vi milagre de Frei Damião. A menina que estava caminhando de quatro porque tinha um problema na coluna. Ele chegou com as cordas dele, começou a bater com elas na menina e disse: “Levante, que Deus não lhe fez para rastejar. Você não é bicho, se levanta”. A menina começou a se levantar, se levantar, ficou dura assim, começou a levantar os pés. Frei Fernando (principal assessor de Damião) chegou espalhando o povo. Foi me espalhar. Eu era uma criança, dei-lhe uma mordida no braço, ele não me espalhou mais. E eu fiquei vendo aquela cena.
Vi também Frei Damião pregando nas missões. Ele saiu uma vez, perguntou: “Quem deseja seguir a Jesus porque nós estamos indo embora. Quem deseja, levante o braço”. Eu levantei uma “cruzinha”. Pronto, fui tocado no coração. E eu escuto o povo como ele escutava. Aprendi de meu pai, que era vicentino, a distribuir para os pobres e escutar o povo de Deus, missão que eu faço até hoje. Minha vida só foi isso, conheci vários santos.
Que mensagem o senhor envia para os pobres?
Existem pessoas que são tão pobres, mas tão pobres, que só têm dinheiro. E existem pessoas que são tão ricas, mas tão ricas, que só não têm dinheiro. Existem pobres e pobres, independente da conta bancária. Mas aos pobres, onde o rosto do senhor é mais desfigurado porque os direitos mínimos lhe foram negados, junto a esses, eu tenho estado. Faço a escuta de todos os lados, mas estou ao lado, partilhando a vida, o sofrimento daqueles a quem os direitos fundamentais humanos lhes são negados. Essa é a mensagem que eu deixaria.
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O beatismo - capítulo de transição Padre Airton e a transformação de Arcoverde Tecnologia impulsiona o novo beatismo
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.