As conquistas de Ana Barroso

A gestação do álbum “Cisco no Olho”, de Ana Barroso, 27 anos, cantora e atriz de Vitória da Conquista, levou 10 anos. E eu precisei de três meses e 28 dias para contar essa saga. Tempo para ouvir a live, fazer pesquisas, entrevistar e escrever o texto.

Foi outra Ana, a Paula, assessora de imprensa, que me falou da artista pela primeira vez e me convidou para o lançamento virtual do disco da xará.

O Instagram da “cantriz” e o clipe Serana, um jogo de palavras para sinalizar o que é “ser Ana” são as informações iniciais que surgem ao darmos um Google.

“Me chamo Ana, latino-americana
Brasileira, ‘inda baiana, vim aqui me apresentar
Nasci em Conquista, renasci em Jequié
E pergunto por que é que é que tu veio aqui me escutar (…)
Pain’ me disse que eu não sou flor que se cheire
Que que é que tu me olhou assim querendo me dengar(…)
Uso alfazema, peço a bença, visto renda
Toco pouco, mas dá gosto de cantar pra trabalhar”

SERANA – 2018

 O trabalho, feito a partir do pedido de estudantes de cinema da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) que precisavam apresentar um clipe para concluir uma disciplina, atiçou a vontade de gravar um álbum. No entanto, a intenção foi aplacada em virtude da mudança para Salvador, da correria para se dividir entre ministrar aulas e atuar e dos cuidados com a filha Lira, então com três anos.

Antes disso, muita água e detritos passaram pelo poluído rio Verruga, às margens do qual os primeiros habitantes de Conquista se estabeleceram. Voltemos no tempo: Ana é filha da cearense Diana e do cantor e compositor Nagib Barroso, bem-sucedido ao trocar o estilo MPB pelo axé, uma música mais comercial. Com o passar do tempo, a carreira estancou principalmente por falta de registros do fenômeno nas cidades do interior.

Ana no colo do pai Nagib. Anos 90. Reprodução
Ana no colo de Nagib. Reprodução

A menina nasceu enquanto Nagib estava em uma turnê. Ela foi criada pela avó Margarida Barroso. Sem saber, a matriarca mineira a introduziu na música, pois sempre estava ouvindo cantorias em casa.

O pai estimulava Ana a cantar porque via nela jeito e gostar. Só que a filha não apreciava axé music e ignorava os conselhos para cantar sorrindo como forma de disfarçar a voz “linda e triste”. A parceria com Nagib se resume a gravação de jingles, uma apresentação no show Um dia de Brasil, em Sankt Gallen, na Suíça, e em duas – Alumia e Cantinho – das 13 músicas  gravadas no álbum Ama Dure Cimento, o 12º de Nagib Barroso, em 2018.

Na adolescência, com os pais separados, Ana ganhou um violão de Chico, então namorado da mãe, e foi com ele que aprendeu a tocar o básico. Na mesma época, começou a compor e se tornou vocalista da banda de chorinho Brincando de Cordas.

Em Conquista, quinta maior cidade do interior nordestino, excetuando capitais e município de regiões metropolitanas, teve a oportunidade de conviver com muitos estímulos sonoros e poéticos, como o Terno de Reis e Rainhas juninos, e assistir shows de Milton Nascimento, Zizi Possi e Gal Costa em praça pública. Apesar de o maior menestrel da cidade ser Elomar Figueira Mello, Ana teve como principais referências artistas com quem convivia. Para conhecê-los clique aqui.

“Fui estudar teatro tinha 17 anos, engravidei com 20 e pari com 21”.

“Calma Ana, vamos devagar. Por que você foi estudar em outro município?”

A ida para Jequié, a 156 quilômetro de distância, teve como motivações principais sair de Conquista, se desprender da família e ansiedade em ganhar o mundo. Ao mesmo tempo, Ana queria estar em uma cidade que tivesse cachoeiras, um contato maior com a natureza. Lá havia pelo menos cinco, sendo a do Humaitá a mais conhecida.

Aos poucos o Teatro conquistou o coração da jovem estudante. Boa parte graças à “doutora em ciranda”, como ela define a professora Maria de Souza. Foi com ela que Ana Barroso se aprofundou na cultura nordestina de longa tradição, impregnada na maioria de seus trabalhos, e aprendeu a tocar pandeiro.

“Escute essa voz rouca
Que nem mais assovia
E que escorre sua lembrança
Que agonia
Você ia e outra vez voltou
Gotejo esse tormento”

GOTEJO – 2011

 Um relacionamento abusivo levou Ana a compor Gotejo. A música foi criada após ela ter certeza de que não seria mais importunada. Com ela, a compositora “curou um bocado de dor”. Mesmo assim, precisou superar a barreira de cantá-la em público:

“Eu tinha muita vergonha por assumir o lugar de mulher violentada. Mas percebi que quando cantava, eu convidava muita gente a pensar e revelar que passou por situação semelhante. Costumo dizer que em briga de marido e mulher se mete a colher porque se não fossem outras pessoas, eu não se se conseguiria sair de boa, sair com vida desse pesadelo” – conta.

Gotejo faz parte do álbum recém-lançado e é a música preferida da cantora.

Após a formatura, Ana Barroso voltou à cidade natal e participou do coletivo de mulheres que montou a CazaAzul Teatro Escola. O nome é referência à moradia, hoje museu, da artista plástica Frida Kahlo, na Cidade do México. A ex-professora Adriana Amorim, uma das mentoras de Ana também integrou o grupo.

“Ela morou comigo. Quando engravidou eu cuidei dela. Eu engravidei, ela cuidou de mim” – recorda.

Ana estreou na CazAzul fazendo a direção musical da peça Depósito de Alegrias Esquecidas, adaptação de contos e cantigas populares. Nos dois anos que fez parte do movimento, incluiu na biografia a participação como protagonista no romance lítero-musical Faviela, do cantor, compositor e escritor Elomar, cuja obra se fundamenta no imaginário rural sertanejo e em elementos medievais ibéricos.

O espetáculo montado em 2017, na Casa dos Carneiros, fazenda do autor, conta a história de um adolescente que vai pedir bênção a madrinha e visitar a namorada Faviela com quem não se encontrava há sete meses. Ao chegar, descobre que a jovem foi raptada por um feiticeiro disfarçado de príncipe encantado.

“Só quando fui fazer a peça é que fiquei comovida com a presença de Elomar, uma pessoa galante, que olha para você como quem assunta com aqueles olhinhos azuis. Ele estava muito sereno, cordial, bem diferente do que as pessoas falavam: ‘Olha o que você fala porque qualquer coisa o bode…’ (risos). Eu me lembro que ele criticou porque eu estava de calça, porque tinha cabelo curto. E completou com algo bíblico tipo ‘O cabelo da mulher me trazia aos seus pés’” – conta.

A citação, provavelmente, se refere a passagem do Evangelho de Lucas na qual uma mulher pecadora, discriminada pelos fariseus, lava os pés de Jesus Cristo e os enxuga com o cabelo, emocionada. E Cristo lhe perdoa pelos pecados cometidos.

O envolvimento com a escola de teatro não fez Ana Barroso abandonar a música. Ela chegou ao ponto de ficar agoniada, querendo decidir logo qual carreira seguir:

“Eu estava com a coisa da educação, com a escola de teatro CasAzul. Estava vivendo aquilo ali, mas algo falava pra mim que não estava pulsando o meu coração. Na primeira oportunidade, corri para Salvador” – revela.

A vinda para a capital com o então companheiro, o guitarrista Tarcísio Santos, e a filha objetivava se dedicar à música. No entanto, surgiu a oportunidade de fazer o personagem Lisandro, cujo amor é disputado por duas mulheres, no musical Sonho de uma noite de verão na Bahia, de João Falcão. Ana decidiu conciliar as duas atividades.

No final de 2020, a cantora falou mais alto. Ela participou do Festival Unimed Sudoeste de Música. Na competição, definida por voto virtual dos espectadores, Ana cantou “Mortal Loucura”, soneto do poeta barroco Gregório de Matos, musicado por José Miguel Wisnik; “Pedido”, de Elomar, gravado por Elba Ramalho; e as composições autorais “Gotejo” e “Serana”. O primeiro lugar rendeu R$ 10 mil. A vontade de gravar o primeiro álbum aumentou. Contemplada com mais R$ 35 mil pelo projeto, na Lei Aldir Blanc, realizou o sonho iniciado há uma década.

Uma das primeiras composições de Ana foi Cisco no Olho, feita na adolescência. Antes disso, Nagib tentou bancar um disco da filha, mas a experiência não deu certo:

“Eu era muito menina. Os processos de gravação me davam angústia porque era como se eu tivesse que seguir obrigatoriamente uma carreira musical. Eu ainda estava em processo de maturação, não tinha formado um estilo e hesitei” – diz.

Com Tarcísio, ex-companheiro com quem formava um duo, pensou em editar um EP, sigla em inglês para definir um disco com quatro músicas. Dele fariam parte Cisco no Olho, que batizaria o trabalho, e outras três composições feitas pelo casal. Outro projeto frustrado. Dessa vez pela separação.

O Cisco ganhou outra forma. Nele, constariam canções autorais melodiosas e densas que tratam de amor e desfecho de relacionamentos. Em seguida, viria outra produção, chamada Repentina, com canções de folias, de ritmos mais tradicionais. Com a aprovação no edital da Lei Aldir Blanc, os dois projetos se fundiram e a cultura de longa tradição nordestina começou a conviver com o “choramingo”, um pouquinho de todas as Anas.

Fazer um disco não é fácil. Precisa de verba e de pessoas em quem você confie, de acordo com a cantora e compositora conquistense. A maioria dos músicos que participam das gravações e o produtor, o sueco Sebastian Notini, foram apresentados por Tarcísio.

“Dava uma agonia na hora de cantar. O disco é praticamente ao vivo e eu sou virginiana, muito detalhista. Eu ficava procurando falhas na voz e Sebastian prezava pela espontaneidade. Ele dizia que as pessoas gostam de entender a humanidade dos artistas. Ele tinha razão. Eu não tinha como não confiar nele” – conta.

Ana revelou outros detalhes dos bastidores. Às vezes, ela ficava ansiosa com o prazo de entrega dos arranjos. Mas quando recebia o material, via que não tinha “um centavo de razão para reclamar”.

No dia 2 de maio de 2021, pouco mais de uma década depois da primeira composição, o álbum foi apresentado em uma live para jornalistas, músicos e amigos da cantora. As primeiras consequências foram, segundo Ana, elogio enviado por Jaques Morelenbaum, renomado maestro, produtor, violoncelista e arranjador, e o início de tratativas de parceria com um selo musical conceituado.

“Ói o homi qué tirar o que é de direito do povo
É direito o povo oiá pra tirar esse homi de lá
(…) Se eu mandar meu boi bumbá
Rodar umas seis vêiz o homi vai ver o beré inchar
(…) Vai rodar, vai rodar, vai rodar
Roda boi e roda homi, esse desgoverno vai acabar”

VAI RODAR – 2021

 Cisco no Olho tem espaço para protesto. Em Vai Rodar, Ana associa o boi bumbá a algo que assombra o “desgoverno que estamos vivendo”. A canção virou um videoclipe colaborativo, no qual artistas e agentes culturais baianos criticam o atual presidente.

“É pra ver se isso acaba mais rápido. Esse governo tem acabado com as coisas mais preciosa que a gente tem de Brasil. Não consigo olhar as barbaridades que estão acontecendo e ficar emudecida” – admite.

O álbum está disponível no Spotify, nos principais serviços de transmissão de música digital e no You Tube.

Não é só a carreira e o disco que me interessam. Como contador de histórias, tento me aproximar da alma do personagem e pergunto quais as lembranças que Ana Barroso tem de Vitória da Conquista. Ela responde que não se lembra de muita coisa da infância.

Insisto: “O que vem à memória quando ela ouve o nome da cidade?”

“Biscoito avoador. Voinha cearense fazendo baião de dois. Voinha mineira fazendo galinha com quiabo. Painho tocando na sala de casa. A gente indo assistir alguma coisa, de alguém da cidade, no teatro ou na praça. Amigos valiosos, preciosos e talentosos juntos em volta de uma fogueira na casa de qualquer pessoa, tomando licor, dormindo embolado debaixo de qualquer coberta velha. A feira dia de domingo. Fazer aquele feirão e ainda voltar com troco. Essas coisas me lembram Conquista. A juventude de lá é muito bonita, muito preocupada em pensar, em pesquisar, em mudar opiniões. Sinto falta desse lugar”.

Mesmo que Ana Barroso tenha que ir muito longe para desenvolver seus trabalhos, a alma sertaneja sempre a acompanhará.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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