Jeremoabo é uma cidade com cerca de 400 anos de história. No século XVII, Garcia D’Ávila, o senhor da Casa da Torre, capturou nativos para escravizá-los durante o processo de desbravamento do Nordeste e de expansão da criação de gado bovino. Dono da maior sesmaria do mundo, o administrador colonial português teve divergências com os missionários que se opuseram à escravização dos indígenas muongurus e cariacás, descendentes dos Tupinambás. Em represália, D’Ávila incendiou o aldeamento dos jesuítas.
Oficialmente, a freguesia de São João Batista de Jeremoabo do Sertão de Cima foi criada por alvará régio em 1718. Virou vila em 1831, quando se desvinculou de Itapicuru. E 94 anos depois passou a ser município. De suas terras surgiram as cidades de Santa Brígida, Coronel João Sá, Pedro Alexandre e Sítio do Quinto.
Apesar de existir há tanto tempo, os políticos e a classe dominante celebram apenas a data da emancipação (6 de julho de 1925) de Jeremoabo. Seja para valorizar as famílias tradicionais ou para varrer para debaixo do tapete da história o massacre dos indígenas, o período da escravidão, as arbitrariedades dos coronéis, a prática, felizmente, não consegue apagar a memória do povo definitivamente.
Uma iniciativa que permite a preservação da cultura local, com destaque para as comunidades quilombolas, é o canal F&P Jere, mais conhecido no You Tube como Flapa Vídeo. O responsável pela produção dos filmes é o pedagogo e servidor público Flávio Luiz Silva Passos, 53 anos.
Sem nenhum tipo de patrocínio, com um celular e um programa de edição instalado em seu notebook, o Flapa, apelido criado a partir da junção das primeiras sílabas de seu nome e do último sobrenome, começou a fazer vídeos há 10 anos. Ele lembra que os primeiros eram gravados em videocassetes.
“Meu equipamento continua precário. Eu sempre quis comprar um drone, mas os bons custam aproximadamente R$ 5 mil. Faço tudo com um smartphone. Eu queria ter uma filmadora, mas não consigo comprar uma sem ter patrocínio” – lamenta.
O propósito era lançar um vídeo por semana, aos sábados. A cobrança dos seguidores para a publicação do material, alguns deles produzidos em capítulos, fez com que Flávio flexibilizasse a data das postagens. Atualmente são feitas até três semanais.
A ideia de se transformar em uma espécie de repórter foi do amigo que mantinha na internet a “Revista e TV Vitrine”. Flávio, a princípio timidamente, deu os primeiros passos mostrando o descaso com a cultura, a seca e o impacto dela nos laticínios da cidade. À medida que as histórias se espalhavam, ele passou a ser incentivado a ter o próprio canal.
No final de junho de 2017, o pedagogo fez a primeira filmagem sobre a trilha dos quilombolas de Jeremoabo, que leva a 12 comunidades reconhecidas pelo Instituto Palmares. A boa repercussão, somada ao fim das transmissões da TV Vitrine, cujo dono abandonou por não obter lucro rápido, deram origem à emissora independente de Flávio.
“Muita gente que começa com canal pensa em monetização. No meu caso, não. Eu queria divulgar minha cidade, minha região. Meu objetivo é mostrar as serras, os rios Vermelho e Vaza Barris, a Pedra Furada e os pontos turísticos para os meus conterrâneos que moram fora. Eu quero botar um pouquinho de saudades neles” – conta.
Flávio diz que atingiu o objetivo e passou a ter “o combustível” necessário para persistir nas filmagens e postagens. Nos quatro anos de existência, o Flapa publicou 272 vídeos, sendo dois recuperados de sua primeira experiência com comunicação.
O primeiro reúne uma coletânea sobre o Coral Santa Cecília, o grupo de dança Abomutuca e a produção de leite durante a estiagem de 2013. O segundo mostra como fazer o aluá, trabalhoso refresco de milho criado pelos indígenas, praticamente extinto da região.
O MATADOR DE CANGACEIROS E OUTRAS HISTÓRIAS
O servidor público cita três vídeos que lhe deram mais prazer de realizar. O primeiro vídeo da lista é “Trilha do Cangaço”, o oitavo mais acessado. São 1.500 visualizações, o equivalente a cerca de 4% da população de Jeremoabo. Nele, Flávio e Manoel Aristides Ribeiro da Silva, o Mané Maroto, percorrem um trecho das terras de João Ribeiro da Silva, coiteiro de Lampião, nos anos 1930. Eles mostram o que restou do casarão onde o líder dos cangaceiros se abrigou.
O vídeo foi elogiado, segundo Flávio, pelo blog paulista Cangaçologia destinado a estudos, pesquisas e preservação da história do cangaço. A pandemia de covid-19 interrompeu os planos do documentarista amador registrar outros caminhos por onde Lampião e seu bando passaram na região.
O segundo é o que fala sobre o coronel José Osório de Farias, o Zé Rufino, famoso perseguidor e matador de cangaceiros, considerado herói por alguns e criticado por seus métodos ultraviolentos por outros. O aposentado Sebastião Passos, 87 anos, é um dos que ressaltam a luta do policial contra o bando de Lampião.
Sebastião narra fatos curiosos. Dentre eles, a decisão do monsenhor Francisco José de Oliveira em não autorizar a construção de um mausoléu para Rufino no cemitério municipal. O religioso o considerava muito violento. O cangaceiro mais famoso morto por Rufino foi Corisco, o “Diabo Louro”. Há controvérsias se a morte do jagunço foi em confronto ou fruto de uma emboscada.
Depois da publicação do vídeo, o cordelista Antônio Poeta lançou um livreto e passou a vender camisetas com imagens do policial. Há ainda um movimento para que a secretaria municipal de Cultura instale um busto do coronel em uma das praças da cidade.
O “Top 3” consiste em cinco vídeos sobre as comunidades quilombolas de Catuabo, Caboclo, Saco do Tigre, Juazeiro dos Capotes, Viração, Ciriquinha e do povoado de Casinhas. Neles estão registradas danças tradicionais e recentes, pagamentos de promessas, festas de padroeiros e celebrações diversas. Um rico acervo da cultura local. Abaixo, você pode assistir o filmete “Comunidades Quilombolas de Jeremoabo – BA”.
“Gosto muito dele porque mostra a união de quatro comunidades vizinhas para festejar a semana da Consciência Negra. Eles reúnem as famílias, levam para o terreiro e chamam uma banda de pífanos. As mulheres vestem saias compridas e chegam a dançar com potes de barro na cabeça. Acho importante divulgar essa manifestação” – enfatiza.
PARCERIA
Há cerca de um ano, Flávio Passos passou a ter um concorrente mais estruturado, o canal Sertão TV. Com foco comercial, a nova web emissora transmitia jogos de futebol da Copa Rural, musicais e programas para os jovens. Em julho deste ano intensificou a programação.
Flávio contou que o criador da web emissora é um jeremoabense, radicado em Aracaju (SE), chamado Pablo. Ele é sócio do apresentador Jovino Fernandes. O veterano defensor da história e cultura locais revelou que foi convidado para ser parceiro do empreendimento, utilizando a equipe, câmeras e drones da Sertão TV.
“Achei bacana porque posso realizar projetos antigos como filmar a bela Serra da Canabrava. Estou esperando passar o tempo de chuva para gravar. Todo o vídeo que eu fizer vai sair a minha logomarca e a deles” – celebra.
Flávio é uma pessoa humilde. Nas horas vagas cria ovelhas na roça. Recentemente, passou a se interessar por plantar milho, feijão e abóbora na propriedade que possui no povoado de Água Branca. No entanto, o que ele gosta mesmo é de atender alunos da rede pública e universitários quando é procurado para mostrar e falar sobre seus vídeos. Desejamos que o projeto prospere cada vez mais!
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
Respostas de 2
São Paulo 28/07/21
Olá pessoal sou João Batista Gonçalves
de Jeremoabo radicado em São Paulo há 49 anos e sinto-me privilegiado em receber este artigo compartilhado por
o meu primo Flávio passos.
Ele sabe que eu gosto das matérias aqui relatadas.
Que pra mim são novidade e me desperta muita curiosidade.
Que bom João Batista! Sentimos imensa alegria por tê-lo como seguidor de nosso site e por gostar de nossas histórias. Forte abraço.
Equipe Meus Sertões