Ana Carolina Caliari Sestari sempre gostou de jogar futebol. Descendente de italianos, a menina se fascinava com o campo de futebol da Sociedade Esportiva Canarinho, em frente a casa do avô Otomar, no povoado de Rui Barbosa, em Canudos do Vale (RS).
Aos oito anos, Ana Carolina entrou para a escolinha do Centro Esportivo CFM, no município de Encantado [1], e chamou a atenção dos técnicos por ser dedicada e ter personalidade forte. Em 2007, ela bateu a bicicleta que dirigia contra um carro.
Além de colocar uma placa de platina e pinos em uma das pernas, ouviu do médico, aos 11 anos, que não poderia fazer o que mais gostava na vida: jogar futebol. Inconformada e seguindo uma lógica desmentida quando se profissionalizou, decidiu trocar a linha pelo gol.
“Eu acreditava que sendo goleira não teria muito risco e resolvi mudar de posição para continuar jogando. Peguei gosto e segui em frente. Hoje em dia, vejo que, na verdade, sofro muito mais impacto do que antes.” – diz Ana.
Mais adiante, a jogadora tomou outra decisão: deixar o futebol de campo para se dedicar ao futsal. Por não ser muito alta – 1,70 m -, avaliou que ficaria mais à vontade nas quadras, onde as traves têm dois metros de altura e três de comprimento, enquanto que nos estádios possuem 2,44 m de altura e 7,32 m de largura.
As estratégias levaram Ana a defender as cores da equipe profissional do Montesilvano, que este ano trocou o nome para Pescara, e da seleção italiana feminina. Além disso, nas últimas duas temporadas, foi eleita uma das três melhores goleiras do mundo pelo site Futsal Planet, que há 20 anos organiza a votação de craques de futsal.
Ana Carolina ficou em terceiro lugar em 2019 e foi a segunda colocada na temporada 2020. Na escolha mais recente, se posicionou 17 pontos atrás da portuguesa Ana Catarina Silva Pereira, do Benfica, e 81, à frente da brasileira Patrícia Moraes “Giga”, da Associação Chapecó (SC).
O TESTE
Elizandra Caliari, mãe de Ana, recorda que após os Jogos Escolares Brasileiros, a filha soube da peneira [2] que seria realizada na Associação Barateiro de Futsal, em Brusque (SC) e marcou o teste pelo Orkut [3]. Aos 14 anos, a gaúcha conseguiu vaga e ficou no clube catarinense por quatro temporadas.
Ana Carolina jogava e estudava direito quando um jornalista que cobria futebol feminino perguntou se ela tinha interesse em jogar na Europa. Diante da resposta afirmativa, ele fez a ponte com o técnico do Montesilvano.
“No primeiro momento não assimilei bem. Depois vi que a proposta era boa, o treinador era brasileiro e tinha uma colega de Ana jogando no mesmo time” – relembra Elizandra.
A brasileira, nascida na pequena Progresso, cidade que cedeu parte do território para a constituição de Canudos do Vale [4], embarcou levando na bagagem títulos nacionais e internacionais nas categorias sub 15, sub 17 e sub 20. Esses troféus e medalhas seriam ofuscados no futuro por dois campeonatos italianos, uma Copa Itália, duas Supercopas, um primeiro lugar de divisão e dois de torneios internacionais pela seleção italiana.
O excelente desempenho em quadras europeias teve como consequência o convite para Ana Carolina Sestari defender as seleções brasileira e italiana.
“A diferença do futebol feminino entre os dois países é a estrutura. A Itália investe muito. Infelizmente isso não ocorre no Brasil, onde prevalece a ajuda de custo. Lá, muitas atletas jogavam por conta de ganhar bolsa de universidade. Aqui sempre recebemos salários. Existe mais profissionalismo. Eu optei pela Itália porque ela me deu a oportunidade que, infelizmente, não havia no Brasil” – revela a goleira.
A seleção italiana de futsal feminino foi criada em 2015. Considerada uma equipe jovem, enfrentou a poderosa Espanha no primeiro campeonato de seleções da União das Federações Europeias de Futebol [5] (UEFA), em 2019.
Os dois selecionados venceram a Eslovênia e a Suécia na fase principal. No confronto direto, as espanholas, que tinham massacrado as adversárias (12×2 e 7×0), venceram com dificuldade a Itália por 2×0 e se classificaram para as fases finais. A Espanha conquistou o primeiro lugar da competição.
“Ter batido de frente com a campeã europeia foi gratificante. Hoje todos nos olham de outra maneira. Nossa meta é evoluir e beliscar o título” – diz Ana Carolina, que recentemente se recuperou de uma distensão na panturrilha (batata da perna).
A segunda edição do Euro de Futsal Feminino será na Inglaterra, em 2022. As adversárias do grupo da seleção italiana serão a França, Bélgica e Islândia.
TROCA DE NOME
Montesilvano é um dos 45 municípios da província [6] de Pescara, na região [7] de Abruzos. Tem cerca de 39 mil habitantes. A cidade vizinha, também chamada de Pescara [8], possui 115 mil moradores. A alteração do nome do time de Ana Carolina é uma estratégia para obter mais apoio das autoridades, investidores e de um número maior de torcedores.
A rotina da arqueira brasileira é estudar – ela está cursando faculdade de educação física à distância, no Brasil – treinar, cuidar da casa, preparar o almoço, voltar aos estudos e ao segundo período de treinamentos à tarde. Por morar sozinha, Ana fica sobrecarregada.
Além disso, tem que cumprir os compromissos publicitários. Ana Carolina é embaixadora de uma marca de meias para uso esportivo e tem patrocínio de empresas de joelheiras, de cotoveleiras e de tênis. Ela faz ainda a divulgação nas redes digitais do centro esportivo de treinamento e da nutricionista que a acompanha.
Não há sossego nem mesmo quando entra de férias por dois meses e meio, durante o inverno no hemisfério sul, entre junho e setembro.
“Tento aproveitar o máximo que posso. Ficar com minha família o maior tempo possível, pois é dela que mais sinto falta. E não importa se estou de férias, tenho de treinar de qualquer jeito” – conta.
Dona Elizandra revela mais um pouco da rotina da filha durante o recesso:
“Ela descansa a primeira semana e visita sempre os avós em Rui Barbosa. Quando sai, por ser muito conhecida na região, é constantemente parada por vizinhos e fãs. Como é muito disciplinada, minha filha mantém os treinamentos rigorosos com personal trainer e fica sob os cuidados de uma nutróloga [9]”.
Na volta à Europa, Ana Carolina costuma levar na mala um reforço para mitigar as saudades do Brasil. São 12 quilos de erva de chimarrão, que a jovem adora, e alguns pacotes de tapioca. Quanto ao feijão e a goiaba, outros alimentos preferidos, ela adquire em lojas de produtos brasileiros na Itália.
Aos 25 anos, a goleira tem planos de ter uma carreira longeva como a da pivô gaúcha Luciléia, 38 anos, tricampeã sul-americana de futsal, bicampeã mundial, campeã italiana e tricampeã da Taça Itália. A atleta jogou no Pescara e agora defende o Bitonto, de San Giovinazzo.
“Eu não sei quanto tempo ficarei na Europa. Eu acho que cada ano é diferente e não dá para fazer previsões. Por enquanto minha meta é trabalhar e continuar aqui por muitos anos”
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[*] Tradução: Ana, a goleira
[1] São 63 quilômetros de distância da casa do avô da jogadora no povoado de Rui Barbosa, em Canudos do Sul, e a escolinha do CFM, em Encantado. E 19 quilômetros da antiga casa de Ana, em Nova Bréscia, até o CFM.
[2] Testes que os clubes fazem para descobrir novos e talentosos jogadores para as categorias de base.
[3] Rede social criada pelo Google em janeiro de 2004 e desativada em setembro de 2014.
[4] Canudos do Vale se emancipou de Lajeado em 16 de abril de 1996, dois meses e três dias após o nascimento de Ana Carolina. O novo município, porém, só ganhou autonomia administrativa em 1º de janeiro de 2001.
[5] O nome original em inglês é Union of European Football Associations.
[6] Província equivale na Itália à Região Metropolitana
[7] Região equivale a um estado no Brasil.
[8] A cidade de Pescara fica a 12 quilômetros de Montesilvano,
[9] O nutrólogo é formado em medicina e tem especialização em nutrologia. Ele avalia a saúde do paciente como um todo, fazendo a ligação entre problemas nutricionais, sintomas e doenças.
Parte I - A Canudos do sul Parte II - A gruta milagrosa
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.