Torcendo para as carrancas terem mais poderes

Paulo Oliveira

Carrancas. Reprodução

As carrancas chamam a atenção na entrada de uma casa, em uma das 12 cidades por onde passa o rio Corrente. Lá mora o escultor, integrante de uma família de pequenos criadores de animais. Neste período de seca, queimadas e incêndios no cerrado,  eles leva o gado [1] para os gerais [2] e soltam os animais por três meses. Lá os bichos podem se alimentar e beber água enquanto o pasto das pequenas propriedades se recupera. Essa prática ocorre há 200 anos ou mais.

As antigas esculturas são chamativas e a cor da parede da casa contrasta com as peças, ainda que estejam estioladas, como diz o escultor que chamaremos de Tupinambá. O nome é fictício, pois assim como todos da região, o artista e família estão sendo pressionados por empresários do agronegócio, através de empresas de segurança ou milícias rurais, a abandonares as terras do cerrado [3] que preservaram.

Voltando às carrancas. Tupinambá foi o nome escolhido em virtude do mais famoso carranqueiro da história também ter nascido no oeste baiano e ser conhecido como Guarany. Assim, os apelidos nos vão remeter a povos indígenas.

Tupinambá nos conta que os seus trabalhos foram feitos há oito anos, quando ele estudava em uma cidade vizinha também cortada pelo rio Corrente, um dos principais afluentes do São Francisco. No século XVIII (18), o Corrente era navegável em toda extensão, ou seja nos 120 quilômetros entre a região oeste e Bom Jesus da Lapa.

“Eu era muito novo e ficava inventando coisas. Fiquei sabendo que as embarcações usavam carrancas, um bicho feioso colocado na proa para espantar os maus espíritos e o mau olhado; livrar a tripulação do mal e dos afundamentos. Fizeram uma exposição sobre este tema e fui ver. Tirei fotos, acessei a internet para aprender mais sobre elas e decidi: “Vou fazer uma bicha dessas” – conta Tupinambá.

Em suas pesquisas, o então estudante conheceu a obra do mestre Guarany, reconhecido nacional e internacionalmente por fazer esculturas para as embarcações. E passou a se inspirar nelas.

O MESTRE
Mestre Guarany. Reprodução

O nome verdadeiro de Mestre Guarany, apelido dado pelo pai, é Francisco Biquiba dy Lafuente. Ele nasceu no dia 2 de abril de 1884, em Santa Maria da Vitória. De acordo com o biógrafo Paulo Pardal, era bisneto pelo lado paterno de um espanhol que se uniu a uma africana escravizada e foi viver com ela nas imediações de Juazeiro (BA).

Já o avô materno casou com uma indígena e se estabeleceu em Barra do Rio Grande (BA), onde construía barcos e os vendia para o porto do arraial de Santa Maria, que pertencia ao então município de Rio das Éguas. A profissão de marceneiro teve continuidade com Cornélio, o pai, e o próprio Guarany, que, a partir dos 14 anos, também produziu santos, altares, oratórios, barris para carregar água e preparava madeiramento para telhados.

As figuras de proa dos barcos, tradição que remonta há pelo menos seis mil anos, chegou à região do Médio São Francisco, na segunda metade do século XIX (19). Na mesma época, a família Lafuente se instalou na região. A primeira peça de Guarany, segundo pesquisadores, foi feita em 191 para a barca Tamandaré.

Foi com base na mitologia de remeiros e pescadores, relatando histórias de seres fantásticos capazes de virar embarcações, que Guarany começou a construir carrancas. Ele mesclava imagens de animais com seres humanos de olhos arregalados, dentes pontiagudos e cabeleira similar à juba de leão. Essas figuras deixaram de ser meramente decorativas e ganharam um componente mítico, pelo qual seriam capazes de afugentar seres malignos.

Entre 1910 e o início de 1940, o artista baiano produziu dezenas de figuras de proa, mas teve de paralisar a produção porque o assoreamento do rio obrigou as embarcações a ficarem mais leves.

Nos anos 1950, o trabalho do escultor despertou o interesse de compradores e críticos de arte. Treze anos depois, ele passou assinar as carrancas como F. Guarany. Ele se manteve em atividade até os 97 anos. E morreu em 1985, aos 101 anos. Hoje há obras do artista em museus da França, México e Nigéria.

FEIOSOS

Os trabalhos iniciais de Tupinambá ficaram “feinhos demais” e foram descartados. Com persistência, ele aperfeiçou os entalhes. Com a melhora de desempenho, passou a presentear vizinhos. Um dia apareceu um comprador. A primeira grande encomenda veio de Goiânia, capital de Goiás. O cliente encomendou uma carranca com a condição que ela tivesse a galhada de um veado, cedida pelo próprio comprador.

Quando parecia que o negócio de venda de carrancas ia prosperar, o artesão foi morar com a irmã em outro estado:

“Resolvi ganhar o mundo. Trabalhei como porteiro de uma universidade e depois tentei a sorte em uma fábrica. Voltei para casa há 12 anos. Como tenho muita coisa para fazer aqui, parei de esculpir” – diz.

Tupinambá, no entanto, não esquece o processo de produção das esculturas, utilizando umburana, árvore nativa do cerrado:

“Ela não tem como enraizar nos morros porque o solo tem muita pedra, muita laje. Quando venta e chove muito, as árvores caem e não tem mais como recuperar. Então, a gente pega as toras e bota para secar” – relata.

A madeira é fácil de moldar com goivas e escopos. Após atingir a forma desejada é preciso lixar, passar selador para evitar rachaduras e pintar. Na época em que se iniciou na profissão, as cores mais utilizadas eram branco, a preto e vermelho. A tendência, atualmente, é envernizar ou colocar pouquíssima cor. As carrancas grandes levam até 40 dias para ficarem prontas.

O que restou do tempo de carranqueiro de Tupinambá atrai o interesse de estudantes da região. Muitos deles pedem as esculturas para exporem em colégios.

Fazenda preparada para o plantio. Foto: Paulo Oliveira

Às vezes, o artesão cogita voltar à pratica artesanal. No entanto, diz que no momento isso é impossível por conta da preocupação com a destruição do meio ambiente que está sendo feita.

“A gente tem que estar com a cabeça boa para fazer uma peça bonita. Eu sou um cara muito ambiental, defensor da natureza. Muitas vezes vou dormir pensando que áreas de preservação estão sendo desmatadas por tratores com correntões. Isso esquenta a cabeça” – revela.

Por fim, Tupinambá comenta que seria bom se as esculturas pudessem realmente afastar tudo o que é ruim:

“Pois é moço, se eles (os empresários) derrubarem todo esse cerrado como querem, o rio nosso não vai mais existir. Seria bom que essas carrancas afastassem esse pessoal” – desabafa.

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[1] Entre três e cinquenta cabeças.

[2] Ampla região constituída de terras encoberta pela vegetação de cerrados e livres de apropriação privada, onde os camponeses são posseiros.

[3] Há várias fazendas de empresários brasileiros e de grandes conglomerados internacionais de agronegócio no oeste da Bahia. Essas propriedades suprimem 100% da vegetação do cerrado e se transformaram em desertos vedes – áreas formadas por plantações de commodities como a soja. As monoculturas não contribuem para a retomada da biodiversidade local. Diante da possibilidade de mudança de governo e da efetiva aplicação da Lei 12.651/2012, que prevê a manutenção de 20% de reserva legal (cobertura de vegetação nativa), os latifundiários avançam sobre as terras ocupadas por comunidades tradicionais há mais de dois séculos.

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Leia a série completa:

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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