“O bordel (…) é, ao mesmo tempo, esgoto seminal, fábrica de
arrependimentos, refúgio de perversões, receptáculo de carícias, refúgio da
inocência, instituição filantrópica de caridade insubstituível, inferno de vícios,
reservatório de paixões funestas, coletor e conservador de doenças”
Laure Adler – “Os bordéis franceses 1830-1930”
As noites eram movimentadas e barulhentas no povoado Cruz da Donzela, pertencente ao município de Malhada dos Bois, em Sergipe. Na fase áurea do ciclo da prostituição que movimentava a economia da localidade, entre 1971 e 1986, existiam dezenas de cabarés. Em cada um deles, entre 20 e 40 mulheres ofereciam seus corpos aos caminhoneiros, que fizeram a fama do lugar atravessar divisas e fronteiras.
A historiadora e advogada Ana Luzia Santos conta na monografia Grandezas e misérias da prostituição feminina no povoado Cruz da Donzela (1969/2001), que, no início, muitas das profissionais do sexo eram adolescentes:
Nessa época, as meninas menores de 18 anos chegavam com facilidade em Cruz da Donzela, premidas pela miséria e/ou pelo abandono da família. Maria da Conceição Bispo Pereira, 17 anos, foi uma delas. Sem nenhum documento, pediu para um caminhoneiro que seguia para Recife, levá-la de Aracaju ao povoado a 86 quilômetros de distância.
“Era muita menina menor. Fazia dó, parecia crianças, começando a nascer peito. Depois daí proibiram” – lembra Enetildes Silva, moradora que vendia cosméticos e perfumes nos prostíbulos e prestava serviços domésticos para as mulheres. A vendedora e lavadeira foi uma das entrevistadas de Ana Luzia.
Mulheres de vários estados, principalmente, Alagoas, Bahia, Paraíba e Pernambuco chegavam a todo instante. De vez em quando, prostitutas do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais também iam oferecer seus serviços nos prostíbulos locais. Quase todas as mulheres eram analfabetas. Elas, no entanto, segundo a historiadora, tinham ganhos que dificilmente obteriam em outras atividades.
Induzidas por conhecidas, garotas diziam para os pais que haviam conseguido emprego em casas de família na capital sergipana e se estabeleciam às margens da BR-101, a pouco mais de vinte quilômetros da divisa com Alagoas.
As nordestinas, à medida que ganhavam dinheiro, levavam parentes para o local que passou a ser conhecido como Entroncamento, nome dado pelos moradores antigos na tentativa de diferenciar e minimizar o preconceito contra a população de Cruz da Donzela.
Os bares-bordéis que apresentavam “novidades” (mulheres novas recém-chegadas) eram os mais procurados. Havia entre as profissionais mais antigas, segundo Ana Luzia, a máxima de que uma garota nova ficava em evidência por, no máximo, dois meses. Depois, elas tinham que se oferecer para os homens como as demais.
Para ser aceita pelos donos dos prostíbulos, era preciso seguir regras. Pelo menos quatro, segundo Normélia Bezerra, citada na monografia da historiadora.
1 – A mulher não podia sair para beber em outro lugar, além do prostíbulo em que trabalhava.
2 – As prostitutas tinham que induzir o cliente a consumir bebidas alcoólicas e a pagar os drinks delas. Era proibido levar os clientes para os quartos sem que o casal tivesse tomado umas doses [1].
3 – Não era permitido frequentar festas fora das casas de prostituição onde trabalhavam.
4 – As profissionais do sexo tinham obrigação de arrumar o estabelecimento no dia seguinte.
Na fase áurea da prostituição, os bares de Cruz da Donzela só fechavam de manhã. Não raro, as prostitutas terminavam a jornada de trabalho bêbadas. O vício em bebida tinha consequências nefastas: o aumento de casos de mulheres viciadas em álcool, o que as levava a dívidas elevadas com cafetinas e cafetões, e ao crescimento dos índices de criminalidade no povoado. Falaremos disso mais adiante.
Três Marias têm diferentes lembranças do apogeu das prostitutas. Maria Aparecida Ribeiro, moradora da região, disse à autora da monografia que naquela época, as mulheres dos bordéis precisavam cuidar do visual.
“Boa parte do dinheiro que ganhavam era para se vestir. Todo dia elas tinham que estar com visual diferente. Elas também tinham que alimentar os filhos e pagar as pessoas que cuidavam deles” – revela.
Já Maria Eulina Souza, outra entrevistada, lembrou que muitas meretrizes chegavam ali, sonhando em “ter a casinha delas” e se casar. Sem puxar muito pela memória, relacionou seis ex-prostitutas:
“Elas não queriam ficar perdendo noite de sono, bebendo demais e se acabando para dar lucro a dono de bar. Muitas casaram aqui mesmo na Cruz” – afirma.
O romantismo e a realização dos sonhos de profissionais do sexo estão retratados no filme “Eu vou rifar meu coração”, documentário da diretora Ana Rieper sobre amor, sofrimento e processo criativo da música brega. No filme, lançado em 2012 e disponível no You Tube, cantores que bateram recordes de vendagem de discos falam sobre sucesso e preconceito, enquanto personagens reais contam histórias pessoais embaladas por essas melodias. Duas personagens de Cruz da Donzela são citadas nos créditos: Tina e Andréia.
A terceira Maria, cujo nome completo acrescenta Nivalda Gomes Bezerra, ressalta outro aspecto do período áureo:
“Naquela época era tudo linho engomado, passado a ferro. Tinha que ser daquela roupa todos os dias. Era assim como elas fossem ricas, importantes. Mandavam fazer roupas, usavam pulseira, anel, brinco, tudo bonito. Andavam lindas (…), passavam aqui deslumbrantes. Era um charme. Umas andavam super arrumadas, super bonitas e mostravam que tinham dinheiro (…). Elas se arrumavam assim, melhor que o povo da comunidade”.
A circulação do dinheiro no povoado fez surgir mercearias, padarias, restaurantes e três postos de gasolina em Cruz da Donzela. Na monografia, Ana Luzia salienta que a atividade também gerava empregos indiretos para moradoras, que vendiam perfumes e cosméticos nos bordéis, vencendo o preconceito generalizado na comunidade, ou realizando serviços domésticos como lavar roupas para as prostitutas.
CANDELÁRIA
Enquanto produzia a monografia, Ana Luzia Santos procurava o tempo todo encontrar uma nova Candelária, a mais famosa prostituta de Sergipe, cujo nome verdadeiro era Maria Niziana Castelino. Nascida em Belo Jardim (PE), Ainda menina fugiu de casa após levar uma surra da mãe adotiva. Tinha 7 anos e foi morar nas ruas. Viveu nessa condição até ser descoberta pro uma cafetina, que lhe deu o apelido.
“Ela dizia que eu era tão imponente como a Igreja da Candelária [2], no Rio de Janeiro” – contou em entrevista à revista Claudia.
Aos 16 anos, mudou-se para a capital sergipana.
“Com 1,71 metro, corpo esguio e olhos verdes, Maria Niziana – ainda de acordo com a revista – tornou-se a prostituta mais bela e requisitada da cidade, trabalhando na boate Miramar”.
Candelária foi amante de pessoas influentes, casou-se com um empresário de transporte de carga. Ela deixou o ofício aos 22 anos, mas não se afastou das ruas, onde costumava ouvir as profissionais do sexo. Em 1991, ela fundou e passou a presidir a Associação Sergipana de Prostitutas (ASP), que denunciou a violência da polícia contra as mulheres que se prostituíam no estado.
Apoiada pelo Ministério da Saúde, a ASP prestava atendimento às meretrizes, além de promover palestras sobre prevenção de doenças sexuais transmissíveis (DSTs), noções de cidadania e autoestima. A organização distribuía preservativos para prostitutas de baixa renda e geria um posto de saúde, que atendia gratuitamente mulheres com DSTs.
Em diversas entrevistas, a presidente da associação declarou que a situação das profissionais do sexo era tão precária na passagem do século XX (20) para o XXI (21) quanto nas décadas de 1960 e 1970, quando se prostituía. Não havia nenhum tipo de apoio e a orla de Aracaju e Cruz das Donzelas eram os principais pontos de prostituição do estado.
Por isso, passou a se dedicar a fazer denúncias e oferecer serviços para elas.
Candelária cita diferenças entre o tempo em que foi garota de programa e o atual. A primeira tem a ver com comportamento, quando os pais levavam os filhos para manter relações sexuais com putas para provar que o filho era homem de verdade”:
“Tirei muito cabaço naquela época” – lembra.
No programa “Provocações”, apresentando por Antônio Abujamra, na TV Brasil, a mulher que foi tema do documentário “Candelária, aquela que conduz à luz”, realizado por Jade Leonardo Moraes, acrescentou que na época em que vivia da prostituição teve amantes poderosos. Quando um deles passava a bancá-la, informava às autoridades que a partir dali ela era responsabilidade dele. Graças a isso, nas vezes que ia presa por causa de alguma confusão, logo era libertada.
VIOLÊNCIA E DECLÍNIO
As taxas de violência em Cruz da Donzela foram crescendo na mesma proporção que o movimento no povoado aumentava. De acordo com Ana Luzia Santos foi fácil constatar isso consultando processos em cartórios e delegacias da região. A historiadora relacionou uma série de casos em sua monografia.
Em 23 de março de 1985, conforme dados obtidos na comarca de Cedro de São João, cidade distante 20 quilômetros de Malhada dos Bois, Maurício Batista da Silva foi denunciado por ter agredido e quebrado o relógio de pulso da prostituta Maria Aparecida. Embora tenha confessado o crime, o advogado do agressor Raimundo Aragão argumentou que as ações violentas no povoado com muitos prostíbulos deveriam ser encaradas como normais, acrescentando que Cruz da Donzela “tinha sido esquecido por Deus”.
Já Creuza Bezerra da Silva, dona de um bordel e testemunha no caso de agressão de Maria de Lourdes à Maria Francisca dos Santos, 16 anos, em abril de 1984, disse que as duas meretrizes que trabalhavam para ela eram rivais. No processo, fica claro que disputavam clientes ferozmente. E que isso tinha sido o motivo pelo qual Lourdes esfaqueara a mão de Francisca.
Ciúmes era outra causa frequente das agressões entre prostitutas. Ieda dos Santos atacou Josenilda Maria com uma faca porque acreditava que a rival prejudicava o relacionamento entre ela e o amante.
No trabalho de conclusão de curso, a historiadora malhadense ressalta que muitas agressões ocorridas nos prostíbulos eram ocultadas, principalmente quando cometidos por clientes contra as mulheres.
A escalada de violência evoluiu para casos de homicídios. Em um processo que sequer foi numerado consta que o proprietário do “Deusa do Asfalto, Juarez Alves da Silva, matou Antônio Carlos dos Santos com um tiro. Não há mais informações sobre o crime.
Os casos policiais fizeram o Ministério Público encaminhar ao delegado de Malhada dos Bois a instauração de inquérito para apurar os crimes de lenocídio, favorecimento à prostituição, rufianismo, corrupção de menores, tráfico de drogas e uso de entorpecentes nas boates Safare e Girassolbar; no restaurante Deusa da Noite; e nos bares Lenitha, Mineira, Roda de Fogo, Cortiço do Baiano e Lurdinha. Na solicitação, a promotoria ressalta que todos os estabelecimentos funcionam como bordéis e que há registros de lesões corporais e homicídios nestes locais.
Os caminhoneiros não se preocupavam muito com estes casos, mas quando o povoado deixou de ser seguro para suas cargas começaram a debandar. O primeiro sinal de abandono dos clientes foi a queda da venda nas bebidas. As cafetinas e os cafetões tentaram diminuir o prejuízo criando uma taxa, chamada “castelo” [3]. Era uma cobrança compulsória, pré-requisito para ter autorização de levar uma prostituta para o quarto.
Candelária, antes de morrer de AVC e ser diagnosticada com Covid, em 2020, também atribuía à liberdade sexual a decadência dos bordéis.
Um terceiro fator é apontado como definitivo para afastar os caminhoneiros e carreteiros de Cruz da Donzela: a sanção da Lei Seca. A regulamentação entrou em vigor no dia 19 de junho de 2008, com o objetivo de penalizar condutores de veículos flagrados dirigindo após o consumo de bebida alcoólica. Atualmente, a lei prevê tolerância zero para motoristas infratores. A punição prevista é multa de R$2.934,70, recolhimento da carteira de habilitação, retenção do veículo até apresentação de condutor habilitado e suspensão de dirigir por um ano.
Embora o medo da Aids também tenha sido citado como motivo para a derrocada dos prostíbulos de Cruz da Donzela, o médico José Almir Santana, da secretaria de Saúde de Sergipe negou esta versão para a pesquisadora Ana Luzia. Segundo Santana, a prostituição é um problema social e não ligado à prostituição em si. Ele acrescenta que os motoristas de caminhões continuam pegando prostitutas na orla de Aracaju e em postos de gasolina e transam ali mesmo, nas boleias dos veículos. (Continua)
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Notas de rodapé
[1] Boa parte do lucro da cafetinagem vinha daí. Uma garrafa de conhaque de baixa qualidade era vendida nos cabarés por R$ 70, enquanto que no supermercado não custava mais de R$ 7.
[2] A Igreja de Nossa Senhora da Candelária é um templo católico localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro. É um dos principais monumentos religiosos da cidade, palco tradicional de casamentos da sociedade carioca. Sua construção foi iniciada no século XVIII, mas ela só ficou definitivamente concluída em 1901, quando foram instaladas as portas de bronze na entrada principal. Fonte: Wikipedia
[3] Em algumas regiões do Brasil, castelo é sinônimo de bordel
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Leia na próxima semana: Entrevista com a autora da monografia
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Para ler a série completa
A rodovia, o povoado e os prostíbulos
Mulheres e dívidas trocadas em bordéis
O garanhão, o aluguel de filhas e a ponte de Propriá
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
Respostas de 2
Muito bom, mestre. Sempre tive curiosidade de saber o que significava a placa quando passava pela BR-101 na região. O bom jornalismo vive de boas histórias.
Obrigado mestre Biaggio!