Creuzona e os últimos cabarés – capítulo 4

Oitenta e cinco quilômetros separam Aracaju do povoado Cruz da Donzela, em Malhada dos Bois. No trajeto há trechos da BR-101 esburacados, deformados pelo peso de caminhões e com obras intermináveis o que amplia o tempo de viagem em 40 minutos. O acesso ao local, que ficou famoso por abrigar dezenas de prostíbulos que atraíam caminhoneiros de todo o Brasil e moradores de diversas cidades da região por cerca de quatro décadas, se dá no km 22 da rodovia.

Entre a pista asfaltada e a rua vicinal há uma faixa larga de chão de terra, onde está instalada, em sentido a Propriá, uma escultura de concreto com letras que formam o nome do município e onde se lê abaixo, pintado na base “Sejam bem-vindos ao pov. Cruz da Donzela”. Ao entrarmos na rua João Batista de Matos, homenagem a um ex-vereador que assumiu a prefeitura por dois anos após renúncia da titular, fica claro a decadência do local e dos vestígios do “império dos prostíbulos”.

Há lojas comerciais funcionando onde antes se comercializava sexo, imóveis em ruínas e bares vazios, tocando músicas em alto volume. Mais adiante fica o Centro Integrado de Segurança Pública (Cisp), que reúne uma delegacia e um destacamento da PM, além de cartório, sala de custódia e alojamentos. Quando foi inaugurado, em 2012, o principal foco dos policiais já não eram as brigas, tentativas de homicídio e confusões criadas pelas profissionais do sexo, cafetões, cafetinas e seus clientes, mas sim o tráfico de drogas.

Creuza Bezerra dos Santos, a Creuzona. Foto: Paulo Oliveira

A duas quadras da unidade policial fica o bar Pingo de Ouro, administrado por Creuza Bezerra dos Santos, a Creuzona, que fará 80 anos no dia 19 de outubro. Ex-cozinheira e cafetina, ela foi uma das três mulheres com o mesmo nome que imperaram no comando de prostíbulos e ganharam apelidos para diferenciá-las: Creuza, Creuzinha e Creuzona. A primeira morreu; a segunda está muito doente; e a terceira continua a tocar um botequim, onde só vende bebida alcóolica.

O Pingo de Ouro funciona em dias santos, domingos e feriados, das seis horas da manhã às oito da noite. Nas paredes do salão estão pintadas mulheres fazendo poses eróticas enquanto se exibem fazendo pole dance. Apesar da decoração, Creuzona diz que não trabalha mais com prostitutas:

“Esses desenhos foram feitos quando morava uma mulher que alugava o bar, ele funcionava como prostíbulo, mas depois que eu tomei conta não quis saber mais desse negócio de mulheres. Às vezes aparecem mulheres querendo morar aqui, eu é que não quero. Eu quero é paz” – diz a Creuzona, que saiu de Aracaju para se estabelecer em Cruz da Donzela, segundo ela, em 1980.

Dona Creuza, bem antes de ganhar o apelido, trabalhou como cozinheira de um bordel. Depois abriu seu próprio negócio, o “Dama da Noite”:

“Naquele tempo tinha muito movimento, os bares funcionavam a noite toda. A gente fechava a hora que queria. Tinha deles que amanhecia aberto” – recorda.

Como cafetina, a sergipana chegou a ter seis mulheres trabalhando para ela. Todas, garante, tinham vindo de outros estados do Nordeste.

“Elas vinham pedir para trabalhar no bar. A gente precisava e apoiava” – conta.

Creuzona, além das prostitutas, tinha um garçom e duas outras pessoas para trabalhar na limpeza e como ajudante de cozinha.  De acordo com ela, a segurança era feita pela polícia, pois havia uma delegacia nas proximidades, depois transferida para a sede de Malhada dos Bois.

Hoje, a ex-cafetina afirma que existem apenas cinco bares bordéis em Cruz da Donzela. Todos ficam na rua que homenageia o vereador João Batista. Aliás, João, é muito elogiado pelos moradores dos dois lados do povoado cortado pela BR-101. Segundo o cantor, comerciante e ex-vereador José dos Santos, o Sarito, Batista foi o principal responsável pelo desenvolvimento do povoado. Proprietário de grande quantidade de terras na região, ele vendeu lotes a preços módicos para que ali se instalasse diversos estabelecimentos comerciais.

“João Batista foi meu amigo. Ele não ligava muito para dinheiro. Uma vez negociou um terreno grande para que fosse construída uma churrascaria e concordou em receber parte da quantia em refeições” – revela Sarito.

Creuzona foi uma das pessoas que mais prosperou em Cruz da Donzela. Ela nos contou que chegou a ter quatro casas e “alguns terrenos”, além de um bom carro. Os vizinhos, no entanto, dizem que eram mais de 10 propriedades. No entanto, hoje mora no Pingo de Ouro e dorme em uma cama de solteiro, instalada ao lado da cozinha. O ambiente é decorado com um banner com a foto da irmã já falecida e da sobrinha.

A cama, o espelho, o banner e as roupas de Creuzona ficam ao lado da cozinha do bar. Foto: Paulo Oliveira

“Hoje eu não tenho ninguém, é só sou eu e Deus. Não tem movimento, está parado, botar gente (empregados) para quê?” – diz.

Talvez a solidão – o marido e o filho único morreram – e as perdas patrimoniais sejam os motivos pelos quais a ex-cafetina prefira falar mais sobre o passado do que o presente. Um vizinho, que pede para não ser identificado, contou que Creuza passou todas as propriedades para o pai de santo de um terreiro que frequentava.

Tem mais um motivo para o desalento:

“Daquela época eu tenho muitas lembranças porque era muito movimentado. A gente trabalhava, via retorno de dinheiro. Hoje não tem mais nem retorno nem dinheiro, mais. A pessoa trabalha, trabalha, e malmente dá para comer” – lamenta.

Ela topou tocar o Pingo de Ouro porque não paga aluguel para a sobrinha, só as contas de luz e água. Além de não querer ficar parada, outro motivo para assumir o estabelecimento foi interromper uma sequência de calotes que a filha de sua irmã levou de outros arrendatários.

Dona Creuzona diz que não tem mais saúde para fazer a função de cafetina. Mais nova tinha um acordo com as mulheres, quem não seguisse as regras estabelecidas por ela tinha que deixar o estabelecimento. Eram, basicamente, três recomendações:

  • Tratar bem os clientes.
  • Não explorar os homens.
  • Nunca se envolver com drogas.

Para se manter entre os bordéis mais procurados da região, também havia regras, seguidas pela dona do estabelecimento. A primeira era a mesma para cafetina e prostitutas. As outra duas eram ter preços de bebidas mais baratas que a concorrência e mulheres bonitas para satisfazer a clientela.

“Você sabe que vocês homens quando têm mulheres bonitas vocês chegam” – diz e ri pela primeira vez.

Em seguida complementa:

“Geralmente nesse tempo que a gente movimentava com mulher, preferia as mais bonitas, as mais arrumadas. Mulher feia e desarrumada faz raiva ao dono do ambiente e bota os clientes para correr. Quando você está em uma mesa, chega uma mulher bonita, cheirosa, você se empolga: pede outra cerveja e fica mais à vontade. Quando é uma mulher feia, abusada, você paga a conta e vai embora. Essa dá prejuízo ao ambiente e ao proprietário do bar” – resume

De todas as “meninas” que passaram pelo bar da ex-cafetina, uma única é citada como um bom negócio por ser muito linda. Ela era chamada de Capixaba por ter vindo do Espírito Santo para Sergipe. No entanto, depois de um tempo foi embora e não deu mais notícias.

Acesso entre a BR-101 e a rua dos cabarés de Cruz da Donzela. Foto: Paulo Oliveira

Tudo isso é só lembrança para Creuzona, que ressalta a acentuada mudança de realidade de uns dez anos para cá. Os fregueses dela praticamente desapareceram. Em dias de maior movimento, atualmente, dá para contá-los nos dedos.

Pergunto então quanto se cobrava por um programa há uma década e qual o preço de hoje nos prostíbulos mais próximos:

“Antes era barato. As mulheres iam para os quartos e ganhavam o dinheiro delas, a gente faturava com a bebida. Sabe quanto ouço dizer que elas estão cobrando hoje? Cem reais, 80, 70. As mais fracas, mais necessitadas aceitam 50”.

Na tarde de sexta-feira, dia 9 de junho, o som alto de uma música brega saía dos alto-falantes da caixa de som de um cabarés remanescentes. Sentados em uma mesa, três homens e uma mulher conversavam. No Pingo de Ouro, Creuzona estava na cozinha, cercada por duas torres de panelas e pratos. Não havia clientes.

ECONOMIA, SAÚDE E EDUCAÇÃO

Embora seja considerada zona rural, Cruz da Donzela nunca teve tradição agrícola. A economia sempre foi baseada em comércio e serviço. As culturas de milho e cana ainda são incipientes. No perímetro do povoado há cinco postos de gasolina, uma transportadora, uma empresa de autopeças, churrascarias e duas fábricas de beneficiamento de coco, ambas geram 80 empregos.

O professor de geografia Antônio Barros ressalta que as ruas são pavimentadas, há abastecimento de água e serviço de internet, o que lhe dá características urbanas.

“Circula mais dinheiro aqui do que na sede, onde ficam os serviços públicos” – ressalta.

Malhada dos Bois fica a três quilômetros de seu povoado mais desenvolvido. O IBGE estima que a população é de 3.715 habitantes, sendo que 46% estão na zona urbana e 54% na área rural. O número de homens (1.755) é 1,42% maior do que o de mulheres (1.706).

Ninguém questiona que o crescimento do comércio foi impulsionado pelo movimento dos bordéis.

Na área educacional, o povoado contou por muitos anos com uma pequena escola com duas salas. Hoje, segundo o Inep, o colégio tem uma boa infraestrutura, isso inclui biblioteca, cozinha, laboratório de informática, sala de leitura, sala de professores, internet, banda larga, alimentação para os alunos, água tratada e filtrada, energia elétrica, coleta regular de lixo, fossa de esgoto. Quanto ao desempenho dos alunos 50% do 9º ano e 52% do 5º ano tiveram aprendizado adequado em português, em 2019. Em matemática, os índices foram de 8% e 44%, respectivamente.

Quem termina o ensino médio tem que disputar vagas em duas universidades – uma pública e outra privada – e no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, localizados em Propriá, cidade distante 22,6 quilômetros. Há transporte para os estudantes.

O atendimento médico no povoado é feito por uma Unidade Básica de Saúde.

O sistema de transportes em Cruz da Donzela é precário. Não há linha regular de ônibus, segundo os moradores, o que faz a população depender de micro-ônibus e vans de outras cidades como Aquidabã, Muribeca, Propriá e Neópolis.

As últimas obras da prefeitura no local foram a revitalização da praça da igreja e a construção do ginásio do colégio.

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Para ler a série completa

A rodovia, o povoado e os prostíbulos

A rotina nos bordéis de Cruz da Donzela

Mulheres e dívidas trocadas em bordéis

O garanhão, o aluguel de filhas e a ponte de Propriá

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Legenda da foto principal: Fachada de um antigo bordel. Crédito: Paulo Oliveira

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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