O garanhão, o aluguel de filhas e a ponte de Propriá – capítulo bônus

Padre Isaías Nascimento. Foto: Paulo Oliveira

Pároco de Cruz da Donzela entre 2000 e 2004, Isaías Nascimento Filho, hoje com 62 anos, conhece bem os problemas advindos do comércio de prostituição instalado no povoado de Malhada dos Bois, onde hoje atua como coordenador da Cáritas Diocesana. Os prostíbulos do agreste sergipano ficaram conhecidos em todo o Brasil e até no Paraguai por causa da propaganda de boca em boca feita por caminhoneiros que frequentavam o local. Em entrevista para Meus Sertões, o padre fez três revelações sobre o comércio do sexo que ainda não tinham sido citadas pelos moradores, nem por trabalhos acadêmicos sobre o tema.

A primeira é a de que jovens do sexo masculino também se prostituíam à margem da rodovia BR-101. Padre Isaías conta, sem citar nomes, que conheceu um adolescente de 16 anos, dentre outros que ganhavam a vida como gigolôs e “garanhões”, como ele define quem era pago para transar com mulheres de classe média. Deixemos que ele mesmo conte a história:

“Eu conheci o caso de um garoto de 16 anos que foi levado por uma mulher de alto poder aquisitivo para Recife. Ela só o queria para cama e mesa, para dar prazer a ela. O que é interessante é que o rapaz não viu sentido nessa vida e retornou para o povoado. Ele era filho de prostituta, então também vivia em torno do sexo. Ele vendia o corpo, era bonito, bem tratado. Ganhava seus trocados transando com mulheres, que paravam seus carros e os levavam para onde queriam. Isso faz mais de 20 anos. Graças a Deus, a ficha caiu e ele abandonou isso. Tinha apartamento e carro à disposição, mas não quis nada. É preciso muita força de caráter para tomar essa decisão. Eu não sei onde ele se encontra, só sei que ele a mãe dele não trabalham mais com prostituição”.

Padre Isaías mora hoje na casa paroquial instalada no povoado, a 22 quilômetros de distância Propriá.

Antes de falarmos sobre as outras duas revelações, o clérigo faz uma análise sobre o declínio dos prostíbulos na região. Atualmente existem cinco cabarés na localidade.

De acordo com o sacerdote, contribuíram para o fechamento dos cabarés a ação da justiça e do Conselho Tutelar contra a exploração de adolescentes. Além disso, o estado e a igreja ofereceram condições para capacitar profissionalmente e acolher as meninas e mulheres pobres que se prostituíam por falta de opção.

“Esta casa paroquial foi comprada para atuar neste sentido. Formamos um grupo de pessoas adultas que discretamente fazia visitas aos prostíbulos e se reuniam semanalmente, geralmente às segundas-feiras, para almoçarem com elas aqui. Prestamos serviço em questões de saúde, educação e no sentido de providenciar documentos para elas” – disse.

Isaías acrescentou que colaborou também para mitigar o preconceito pernóstico e excludente que havia contra as profissionais do sexo. E deu um exemplo:

“Certa vez uma prostituta morreu em um cabaré. Ela teve morte natural, infarto fulminante e eu fui celebrar a missa de sétimo dia. Antes, convidei o povo para participar da celebração. Para a nossa alegria, a maioria da população esteve presente. Coincidiu que foi que a cerimônia foi em um dia de Corpus Christi. Nós marcamos a missa para as 9 horas da manhã, do outro lado da rodovia, em frente ao prostíbulo. Para mim é uma alegria o povo ter se feito presente. Cada um levou seu banquinho, uma cadeira para sentar. E o grupo de prostitutas que tinha lá arrumou o local” – recordou.

Quinze dias depois padre Isaías descobriu que o nome da mulher morta não era verdadeiro, mas sim um “nome de guerra”, estratégia utilizada pelas prostitutas com frequência para que a famílias não soubesses que trabalhavam em cabarés.

ALUGUEL DE FILHAS

Até o final da década de 1960, a localidade não era área de prostituição. Antes da construção das pistas da BR-101, a estrada que levava à Propriá passava por dentro do povoado, onde em tempos remotos, uma jovem chamada Guilhermina foi assassinada por um homem por ter se recusado a se submeter a ele. No local, onde o corpo da moça foi sepultado, ergueu-se uma cruz, a Cruz da Donzela, que serviu para nomear o povoado.

Já a vítima do feminicídio foi “canonizada” pelos moradores. Sendo assim, o local passou a receber peregrinos. Guilhermina, santa popular, sem aprovação da Igreja Católica, se transformou em padroeira da localidade. Anos mais tarde, a protetora da comunidade foi alterada duas vezes pelo bispo e por um padre, deixando os moradores antigos revoltados. Essa história será contada detalhadamente em outra reportagem.

“A fama dos prostíbulos se espalhou no início dos anos 1970. Cruz da donzela virou berçário de muitos caminhoneiros que vinham deitar nos prostíbulos, pagar para ter uma companheira. Em consequência disso, vários filhos que não conheceram os pais. No começo dos anos 2000, os motoristas contratavam garotas de 14, 15 anos para dormir com elas. Tudo isso com a permissão dos pais. Naquele tempo, era fonte econômica alugar as filhas. Eu ficava horrorizado com isso” – desabafou.

Normalmente, segundo padre Isaías, caminhoneiros de 40, 50 anos tinham relações sexuais com as adolescentes nas casas delas. A prática se espalhava para cidades vizinhas, como São Francisco. O motorista estacionava o veículo e passava a noite e madrugada com a menina. De manhã cedo seguia viagem. As adolescentes sabiam qual era o dia e o mês que o homem, que dizia ser seu dono, voltaria.

Uma dessas histórias teve um desfecho surpreendente, segundo o clérigo: uma ex-menina de aluguel virou caminhoneira.

“Eu encontrei com a mãe recentemente e perguntei pela jovem. Ela respondeu que a filha agora era motorista de caminhão e estava na estrada” – relatou

Um fato, de acordo com o coordenador da Cáritas, foi fundamental para a indústria da prostituição se desenvolver mais rapidamente no povoado: a construção da ponte de Propriá sobre o rio São Francisco. Este fato foi narrado para Isaías pelo teólogo e assessor do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Sergipe (Sintese) Hildebrando Maia Júnior, baiano de Senhor do Bonfim, que se mudou para Sergipe nos anos 1980 e teve atuação destacada em movimentos sociais.

A PONTE DE PROPRIÁ
O teólogo Hildebrando Maia. Reprodução do Whatsapp

A ponte que liga Propriá (SE) e Porto Real do Colégio (AL) foi inaugurada em 1972, durante o período da ditadura civil-militar. Estiveram na inauguração o almirante Augusto Rademaker, vice-presidente da República; Mário Andreazza, ministro dos Transportes: Paulo Barreto, governador de Sergipe; e Ribeiro José do Bonfim, prefeito. Deixemos que Hildebrando nos conte como a obra acelerou o processo de instalação de prostíbulos em Cruz da Donzela. Eis o depoimento dele:

“É preciso deixar claro que não havia prostituição na Cruz da Donzela, um povoado originado por um estupro, um feminicídio, um crime bárbaro, cuja vítima foi Guilhermina. Ali era um pequeno sítio de agricultores, onde a população ergueu uma cruz e, posteriormente, uma capelinha, no local da tragédia. Para a população do entorno e da região o povo acredita que ela é santa e faz milagres

Eu não sei precisar a data e não tenho a informação exata do ano em que Guilhermina foi assassinada. Cheguei em Propriá em 1982 [1]. Trabalhei na diocese, assessorando dois bispos Dom José Brandão de Castro (1960-1987) e depois Dom Lessa (Dom José Palmeira Lessa 1987-1996). Nessa época a cruz e a capela já existiam.

Vamos agora para outra informação para contextualizar. Antes a BR-101 passava por dentro de Propriá. Os caminhões que iam para Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará passavam por lá e esperavam até 16 horas para atravessarem o rio São Francisco de balsa. Durante a espera, os motoristas procuravam os cabarés. E Propriá, que sempre foi um polo regional, era um grande prostíbulo. Os que tinham mais dinheiro frequentavam os que ficavam localizados em uma das ruas principais, a Dom José Tomás. A prostituição dos pobres era na rua da Linha.

A construção da ponte levou a rodovia para fora da cidade. Os prostíbulos entraram em declínio porque os caminhoneiros já não precisavam parar lá.

Também não podemos esquecer que a ponte foi construída no período de ditadura civil-militar. O delegado da época, cujo nome esqueci, forçou a remoção de prostíbulos da rua José Tomás e da rua da Linha. Não teve ordem judicial, foi uma questão de “limpeza social”. A repressão que ele fez sobre os prostíbulos resultou na migração de parte expressiva deles para Cruz da Donzela.

As pessoas ao verem os prostíbulos ali acrescentam o plural ao nome do povoado, achando que há relação com a prostituição. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) instalou placas sinalizando Cruz das Donzelas, mas o nome correto é no singular e se refere à jovem Guilhermina.

Placas na BR-101 com o nome errado do povoado. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

Apesar do declínio econômico e da limpeza social, no início dos anos 80, o último prostíbulo de luxo em Propriá ainda resistia. A cafetina se chamava Rosa. Eu fui professor de uma das filhas dela. Aquela mulher que parecia uma dama de luxo, se vestia bem e era muito respeitada. Ela costumava dizer que na casa (prostíbulo) dela exigia respeito. Era outro conceito de prostituição. Depois eu soube que igual a ela existia outras casas. Inclusive de forma subliminar há referências em música de Luiz Gonzaga [2].

Esses bordéis de luxo, os mais sofisticados, nenhum deles migrou para Cruz da Donzela. Eles simplesmente entraram em declínio ou desapareceram. Até porque a classe média, as pessoas com a renda melhor, não procuraram mais prostitutas já que houve uma liberação sexual. Qual rapaz que não faz sexo com a namorada? Os prostíbulos na rua da Linha sumiram. Pode até existir algum bar com prostituta, mas daquele modelo não existe mais.”

No caso de Malhada, as prostitutas chegaram em uma comunidade rural porque precisavam de mercado de trabalho. Elas tinham que atrair novamente os caminhoneiros da BR.

Pergunto se ainda existem prostíbulos em Cruz da Donzela, embora saia que sim.

“Eu passo pela Cruz da Donzela com frequência por causa do meu trabalho, sou assessor do sindicato dos professores. Como circulo pelo estado inteiro passo lá em frente há 41 anos. O que eu assisti nesse tempo foi a diminuição. Lá os prostíbulos estão diminuindo. A cada prostíbulo que fecha entra uma casa comercial no lugar.  A prostituição de Cruz da Donzela pode estar restrita aos postos de combustíveis onde param os caminhoneiros ou a uma prostituta que receba antigos clientes em casa.

A população hoje de Cruz da Donzela é maior do que a da sede do município (Malhada dos Bois). Lá tem supermercado, farmácia, restaurantes. Onde a cidade se desenvolve economicamente é em Cruz da Donzela. A maior escola do município, o maior número de matrículas é ali em Cruz da Donzela porque lá está a maior parte da população. Quem acessar o site do TRE verá que tem mais eleitores em Cruz da Donzela do que na sede do município. A feira de Malhada e no sábado, a de Cruz da Donzela, sexta-feira. A maior é a do povoado. A concentração de restaurantes, por conta da BR 101, é em Donzela.

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Notas de rodapé

[1] Hildebrando nasceu em Senhor do Bonfim, Bahia. Posteriormente, mudou-se para Sergipe.

[2] Luiz Gonzaga citava Rosinha em pelo menos duas músicas: “Rosinha” e “Propriá”, na qual faz referência a uma certa Rosinha. Ele também homenageava as cidades da região, dentre elas a composição “Malhada dos Bois”. O cantor e compositor pernambucano era um assíduo frequentador da região, onde se hospedava na casa do amigo e protetor Pedro de Medeiros Chaves (ex-deputado e ex-prefeito), a quem chamava de coronel Pedro do Norte ou coronel Bigodão. Para o amigo compôs “Forro de Pedro Chaves”:

“Quando há festa na casa do Pedro/ O comércio fecha em Propriá/ Tem zabumba, esquenta-muié/ E a gente dança sem parar/ Quando há festa na casa do Pedro/ Meu compadre veja como é/ Você dança com a muié dos outros/E eu danço com sua muié”

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Para ler a série completa

A rodovia, o povoado e os prostíbulos

A rotina nos bordéis de Cruz da Donzela

Mulheres e dívidas trocadas em bordéis

Creuzona e os últimos cabarés

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Legenda da foto principal: Inauguração da ponte rodoferroviária sobre o rio São Francisco ligando Propriá (SE) e Porto Real do Colégio (AL), 1972.  Crédito: Arquivo Nacional.

 

 

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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