O poder divino dos nomes

Ouça a nota de falecimento gravada em Maragogipe, no Recôncavo Baiano:

Num tempo em que os sinos não mais dobram finados, as empresas funerárias encarregam-se de anunciar a morte de um membro da comunidade. Em Maragogipe, como em outras cidades do interior do Brasil, o serviço faz parte dos Plano de Assistência Funerária – PAF –, da Funerária São Jorge.

Tão logo ouvi o carro de som na rua, peguei o gravador e saí para registrar o que, para mim, cabe bem em um espaço destinado a Cultura Popular Brasileira. E isto porque a lição do Mestre Cascudo me veio à memória incontinenti e todo o seu ensaio denominado “Nomem, Numen”[1] me pareceu oportuno para temperar com novas iguarias o antigo guisado.

“O nome inicia a existência religiosa e civil da criatura”. Sim, mas na verdadeira genealogia esboçada na nota de falecimento de Chico do Armarinho, percebemos que o importante aqui não é o nome “que na pia lhe foi dado” nem do que “dos pais foi herdado”, mas as referências sociais que identificam não apenas o falecido, mas os familiares que convidam para o seu sepultamento.

Chico do Armarinho, Rosa do Saudoso Lalanca, Rita do Laboratório, Francisco – conhecido por Nego -, Rose da Loja Paixão, Fátima da Farmácia e outros, são exemplos bem comumente encontrados de que as referências familiares e profissionais possuem importância social que extrapola as “oficiais” – batismo e registro civil.

Apesar de nos parecer estranho, num primeiro momento, que referências profissionais ganhem tamanha importância na identificação de uma pessoa, lembramos que ainda hoje temos ruas com nomes de grupos profissionais que as ocupam (Rua dos Ourives, em Salvador-BA), e em muitos cemitérios brasileiros ainda são frequentes alas destinados a membros de determinada confraria ou agremiação profissional.

“Chamar pelo nome”, forma de familiaridade que denotava intimidade, é aqui substituída pelo apelido, que parece ganhar o mesmo valor “numinoso (sagrado)” do nome batismal, ou pela referência familiar mais forte (nome do pai e da mãe, p. ex.), sem que esta seja o sobrenome, ou profissional.

Longa seria uma discussão sobre o assunto, de modo que deixo o exemplo e a impressão que me causou, além da referência cascudiana para deleite e aprofundamento.

–*–*–

Pé de página

[1] Em seu estudo Superstições no Brasil, Câmara Cascudo, no ensaio “Nomem, Numem” expõe a relação mágica entre as palavras e as coisas no universo simbólico de diversas culturas.

Nasceu e cresceu numa típica família brasileira. Potiguar, morando na Bahia há vinte anos, é médica de formação e pesquisadora da cultura popular. Nos últimos 10 anos abandonou a sua especialidade em cardiologia e ultrassonografia vascular para atuar como médica da família na Bahia e no Rio Grande do Norte, onde passou a recolher histórias e saberes. Nessa jornada publicou cinco livros.”. No final de 2015 passou temporada no Amazonas recolhendo saberes indígenas.

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