Diaristas são prejudicadas pela desvalorização do trabalho doméstico, tendência de flexibilização trabalhista e herança escravagista.
Letícia Barbosoa/ Coletivo Caburé
“O trabalho doméstico não é produtivo porque não tem fins lucrativos” – explica Sabrina Barbosa, advogada trabalhista.
De acordo com ela, não há como encaixar a categoria como produtora de recursos para a sociedade, pois é a pessoa que trabalha fora que gera renda e que, assim, paga os serviços da babá, da empregada doméstica e da diarista, por exemplo.
Sem esses profissionais, entretanto, a pessoa que exerce a atividade reconhecida como produtiva teria que abdicar de suas funções para exercer o trabalho doméstico não remunerado em tempo integral.
Dessa forma, será que o trabalho doméstico é apenas reprodutivo? O que seria das atividades econômicas ditas produtivas sem que os profissionais, em sua maioria mulheres, não ficassem responsáveis pelas funções de limpeza, cozinha e cuidados?
Lenira Carvalho (1932-2021), que inspira todos os intertítulos desta reportagem, fundou o Sindicato das trabalhadoras Domésticas de Pernambuco (Sindomesticas). Para ela, a trabalhadora vive a luta de classes, assim como qualquer outra categoria, mas sua atividade está “escondida” e não é “vista”, problema que se estende a outra categoria: as diaristas. Elas exercem as mesmas funções, mas com deveres, assim como direitos, diferentes.
A flexibilização do trabalho das domésticas se insere dentro do contexto mais amplo do neoliberalismo. Entretanto, a peculiaridade deste grupo tem raízes mais profundas associadas à questão de gênero e raça que interferem na classificação da função como improdutiva. Isto é possível perceber no percurso lento dos avanços das leis trabalhistas para categorias que envolvem as atividades em “casas de família”.
O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas contabilizou que a remuneração das tarefas em casa e do cuidado seriam equivalentes à produção do estado do Rio de Janeiro, o segundo mais rico do País, o que significa que o trabalho doméstico produz em torno de 13% do Produto Interno Bruto brasileiro.
Ainda segundo o estudo, 65% das mulheres as responsáveis pelo trabalho doméstico no Brasil, incluindo as remuneradas e as donas de casa. Além disso, as trabalhadoras que exercem a função de forma remunerada, têm o menor rendimento na economia.
Lenira Carvalho já refletia sobre isso.
“Quando eu cozinho para esses caras que estão lá discutindo, para esses médicos, para esses engenheiros, para tudo, eu estou dando uma contribuição”.
No campo do Direito, a advogada Sabrina entende a essencialidade da atividade e enfatiza a desigualdade do acesso a direitos para a categoria. Ela exemplifica com o seguro desemprego, o qual as trabalhadoras têm direito a três parcelas, enquanto trabalhadores de outros setores podem receber o benefício por até seis meses.
‘Só quem vive é que sabe’
“Trabalhei com carteira assinada como costureira na fábrica da Torre, na fábrica da Hering. Fui cozinheira em um restaurante self service. Hoje vivo de “congelamento”, [eu] trabalho clandestino”. É assim que Abigail Lima, 55 anos, define sua trajetória laboral.
Mulher negra, residente no bairro de Nova Descoberta, na zona norte do Recife, Abigail integra o Fórum de Mulheres de Pernambuco, na Rede de Mulheres Negras e no Grupo Mulher Maravilha. A luta feminista e antirracista são pautas fundamentais nas suas vivências. Ela conta que se envolveu com a política desde 2007 e, desde então, tem sido um dos principais motivos que movem sua vida:
“A prática do feminismo que eu vivo é puxado. Mas é o que eu gosto de fazer “-afirma.
Porém, quando o assunto são os direitos das diaristas, sua opinião é diferente:
“Hoje não acompanho questões ligadas aos direitos trabalhistas, pois sei que não tenho [direitos] e isso não tenho interesse” – explica.
Para ela, há vantagens em atuar nesse formato de trabalho pela flexibilidade de fazer seus horários, por acreditar que consegue um retorno financeiro maior e por não passar por determinadas situações de exploração. Abigail argumenta que conhece histórias de empregadas domésticas altamente desvalorizadas.
A diarista exemplifica a situação de uma colega:
“Ela [a patroa] disse ‘o copo que eu tomar água você lave porque que eu estou pagando. Eu não lavo para não quebrar minha unha’. Ela [a colega] me disse que quando chega para trabalhar na segunda-feira até a última xícara do armário está usada, tem panela no chão, não tem lugar nem para botar o pé de tanta louça suja.”
Por fim, Abigail desabafa:
“Eu fico besta com pessoas que têm coragem de humilhar a empregada doméstica.”
Alexandra Correia, também diarista, acredita que a ocupação permite mais tempo com seus familiares. Ela, que exerce ainda as funções de técnica de enfermagem e cuidadora de idosos, conta que tem amigas que terminaram seu relacionamento por conta do trabalho, o que, para ela, é um problema.
Aos 48 anos de idade, a experiência trabalhista de Alexandra seguiu os passos da mãe, que se dedicava ao trabalho doméstico como empregada.
“Minha mãe sempre foi doméstica. Ela era do interior e a vida era muito dura. Ela sempre passou para a gente que o pai dela lhe forçava a trabalhar na roça, plantando macaxeira, milho, essas coisas. Eram três homens e cinco mulheres. O trabalho era muito pesado, uma das irmãs dela veio para Recife morar com uma prima e trabalhar como doméstica. Arrumou emprego para ela também. Fugiram da roça e não voltaram mais. Ela era bem jovem quando saiu de São Benedito do Sul. Ela recebia, morava na casa da prima e ia trabalhar” – recorda.
A trajetória de Alexandra também envolveu atividades celetistas. O primeiro emprego foi na limpeza e na cozinha do setor de geriatria de um hospital perto da escola Dom Bosco. Quando a filha, Débora, nasceu, ela não arrumou mais emprego porque tinha que cuidar da criança. Então, mudou um pequeno comércio, que lhe estressava muito. Então, a trabalhadora decidiu ser diarista.
Abigail e Alexandra concordam que o ponto positivo de seu trabalho é o fato de fazerem os próprios horários e se sentirem donas do próprio serviço.
Entretanto, quando indagadas acerca da possibilidade de se acidentarem e ficarem sem sua principal ferramenta, o próprio corpo, percebem a fragilidade de sua condição.
As diaristas têm sua contribuição à previdência social paga por uma das famílias para qual cada uma trabalha. Neste caso, estão, em alguma medida, protegidas para situações em que precisem se ausentar por invalidez ou doença.
Com uma trajetória semelhante, mas em um contexto diferente, está Ana Paula dos Santos, 51 anos diarista. Ela conta que passou por um período com carteira assinada, até chegar, atualmente, ao regime de trabalho sem direitos.
“Desde os 15 anos eu trabalho em casa de família. Hoje me encontro com 51 e continuo trabalhando do mesmo jeito. É assim mesmo, é o meio que a gente tem de se viver”, desabafa Ana.
Depois de 25 anos de contribuição, Ana Paula está há cinco sem fazer o pagamento ao Instituto Nacional de Segurança Social (INSS). Segundo ela, o que recebe é muito pouco e não resta para esse fim.
“A vida como diarista não é nada boa. Quem pensar que a gente é feliz como diarista, saiba que não é. Porque a gente sofre, a gente rala tanto pra ganhar 150, 180 reais em uma diária” – diz.
Ana Paula prefere ter direitos do que a flexibilidade de horário apontada pelas colegas como benefício. Afinal, ela não tem o auxílio de nenhuma das famílias para quem trabalha para pagar sua contribuição mensal à previdência social.
‘A doméstica vive a luta de classes’
Em abril de 1973, entrava em vigor o primeiro conjunto direito das trabalhadoras e trabalhadores domésticos. A Lei 5.879/72 garantiu à categoria férias anuais, com adicional de um terço do salário, carteira de trabalho e serviços da previdência social. Quinze anos depois, a Constituição Federal de 1988, adiciona direitos como salário mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, licença maternidade e direito ao aviso prévio.
Com mais 25 anos de luta, a chamada PEC das domésticas adicionou o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), a delimitação da jornada de trabalho, pagamento de horas extras, seguro-desemprego, adicional noturno e abono família. A proposta de emenda constitucional entrou em vigor em outubro de 2015, pela Lei Complementar 150.
A iniciativa veio adequar o país ao que vinha sendo discutido internacionalmente em relação ao trabalho doméstico. A Convenção 189, da Organização Internacional do Trabalho, já definia em 2011 o que seriam condições dignas para esse tipo de ocupação.
O tema tem ainda como fatores a questão do gênero e da raça. A socióloga especialista em gênero, racismo, identidade e autoritarismo, Liana Lewis, explica que a desvalorização do trabalho doméstico remonta aos tempos escravagistas.
“Temos a cultura muito influenciada pela escravidão, passamos por uma revolução burguesa na América Latina, mas não transformamos trabalhadores em cidadãos, que continuam sendo essa massa explorada” – explica.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 97% dessa atividade é desempenhada por mulheres e, entre elas, 64% são negras.
Liana acrescenta, apontando como essa herança perdura na associação do trabalho físico e braçal às pessoas negras e quanto às mulheres o problema é ainda maior.
“Vamos ter uma grande cisão do espaço público, determinada vigilância, o que está acontecendo dentro das portas fechadas da residência. Violências e estigmatização contra essas trabalhadoras, na maior parte das vezes negras” – relata.
O contexto capitalista e neoliberal que se impõe também é responsável pelo problema.
“O trabalho que é extremamente árduo, que é exaustivo, que você vai desempenhar múltiplas tarefas, que vai assegurar o conforto e tranquilidade para várias famílias, vai ser um trabalho extremamente desqualificado, porque isso é típico do capitalismo., da violência capitalista” – analisa Liana.
Para a socióloga, pode-se comparar a interação trabalhista dentro do lar ao que vem sendo chamado de relação abusiva. Isso porque envolve algum grau de intimidade e a ideia do “como se fosse da família”. Ela define como “surreal” a circunstância da pessoa que convive diariamente com a família e, por vezes, compartilha o lar, não sentar à mesa de jantar ou até mesmo comer.
Neste cenário, a prática de tratar dignamente a pessoa que se ocupa das atividades domésticas acaba sendo individualizada como gesto de gentileza.
“Quando a gente fala das escolhas individuais, com a nossa trajetória profundamente escravocrata, a gente sabe que vai ser a minoria da minoria que vai tratar com dignidade e com respeito o que essa população merece. E aí esse discurso é como se fosse da família, é justamente para minorar esse processo de violência. Na verdade, não é para minorar, faz parte do processo da violência, porque faz com que a trabalhadora acabe internalizando esse sentido devedor, de ‘mas ela me trata tão bem’ “– pontua Liana.
‘Os problemas de todas as domésticas são os mesmos’
Ainda de acordo com a socióloga, não há grande diferença entre as atividades realizadas pelas empregadas domésticas e pelas diaristas. O que na prática as distanciam é o grau de convívio com as famílias para as quais trabalham.
Em termos legais, essa distinção se dá a princípio pela quantidade de dias de prestação do serviço. É a partir de três dias de trabalho semanais que a condição de diarista passa para a de empregado ou empregada doméstica.
Sabrina Barbosa, advogada trabalhista, explica que o vínculo de trabalho se dá a partir da pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação. Isso significa que para ser empregado – em qualquer categoria profissional – o trabalho precisa ser executado exclusivamente pela pessoa contratada de maneira contínua, estando o trabalhador ou a trabalhadora sujeita a ordens do(a) contratante em troca de um salário.
Diaristas não têm salário e sim remuneração por serviços prestados. Além disso, o usufruto de seu trabalho não exige o pagamento de encargos, como o FGTS e da contribuição para o INSS. Dessa forma, a opção por esse tipo de relação laboral é, por vezes, uma forma de economizar por parte das famílias às custas do sucateamento da atividade doméstica.
O IBGE constata que, em dez anos após a PEC das Domésticas, o número de empregadas diminuiu. Neste período, houve crescimento da atuação de diaristas. Atualmente, a cada quatro trabalhadoras domésticas no Brasil, três trabalham sem carteira assinada.
Luiza Batista, presidente do Sindoméstica e da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), afirma que há casos em que os contratantes trocam a trabalhadora que exercia a função durante a semana por duas ou mais que prestem serviços por dois dias.
“Não é uma questão de não precisar do serviço, mas de não pagar os direitos” – conclui Luiza.
A discriminação da categoria se dá também no âmbito do Direito. A socióloga faz a comparação com outros setores, como os de saúde, no qual a prestação de serviço configura-se apenas em caso de um dia de trabalho.
‘Por que para o serviço doméstico, não é assim?’
Para a diarista, Abigail, um plano de saúde é o que faz falta para sua função.
“Eu passei dois anos sem ir a uma ginecologista porque não consegui marcar consulta. Principalmente, para pessoas de idade, pois existem diaristas que são mais velhas que eu” – reflete.
Já Alexandra não pensa muito sobre a possibilidade de direitos para sua categoria. Em sua fala gosta de colocar ênfase na formação em técnica de enfermagem, negando, em alguma medida, sua principal fonte de renda, o trabalho doméstico.
Ana Paula segue desejando o dia em que terá condições melhores de vida e de trabalho.
“Mas eu creio no Senhor que um dia eu vou me libertar, um dia eu vou ganhar minha carta de alforria e vou sair das casas dos outros. Porque não é nada fácil a gente trabalhar como empregada doméstica. Não é nada fácil ser diarista, não é nada fácil cuidar de idoso. A gente só faz porque a gente precisa. Porque a gente tem que trabalhar para botar o pão para dentro de casa” – desabafa.
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Créditos da ilustração principal e das fotos 1: Canva; 2 e 4: Divulgação. 3: Facebook
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Letícia Barbosa é estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco e comunicadora popular. Também faz parte do Coletivo Caburé de jornalismo independente. A curiosidade e a vontade de sempre aprender coisas novas foi o lhe levou à comunicação. Como mulher preta e periférica, seu objetivo é humanizar o jornalismo e evidenciar os atravessamentos de classe, raça, gênero e território enquanto conta histórias.