Não foram só alemães e italianos – As aventuras de Giba III B

Em suas andanças por todas as 497 cidades do Rio Grande do Sul, o ex-bancário Gilberto Castoldi, o Giba, acumulou conhecimentos e quebrou paradigmas, principalmente quando com relação ao tema imigrações. As mais conhecidas são alemã, a italiana e a portuguesa, No entanto, outros povos contribuíram para a formação do estado e a identidade dos gaúchos. Vamos viajar com nosso intrépido aventureiro no penúltimo capítulo dessa série.

Os primeiros 39 imigrantes de língua alemã chegaram no dia 25 de julho de 1824, às margens do Rio dos Sinos, em São Leopoldo. O grupo era formado por agricultores, artesãos e soldados e atendia os intenções do Império brasileiro ao permitir a vinda de imigrantes. Os principais objetivos eram: criar um mercado interno, incentivar o surgimento de manufaturas, substituir a mão-de-obra africana aos poucos e ajudar na formação do exército para lutar nas guerras travadas pelo Brasil.

Cerca de 60% dos que chegaram, entre 1824 e 1845, eram de artesãos, metalúrgicos, comerciantes e produtores têxteis. Daí o surgimento de indústrias, que floresceram. Novo Hamburgo, por exemplo, se transformou na capital nacional de calçados

São Leopoldo, entre 1824 e 1845, 60% dos homens eram artesãos, da área metalúrgica, da produção têxtil, do comércio, etc. Deste artesanato surgiram pequenas, médias e grandes indústrias. Sobrenomes como Adams, Arnt, Dreher, Gerdau, Mentz, Oderich, Renner, Ritter, Trein, entre outros, despontaram no cenário econômico brasileiro. Assim, é possível perceber que o artesanato, trazido por imigrantes alemães e perpetuado por seus descendentes, floresceu e permitiu que algumas famílias fundassem indústrias.

Fala-se em povos de língua alemã porque, no início do século 19, a Alemanha não existia como nação. Embora a maioria das levas iniciais de imigrantes fossem de territórios que hoje formam o país, outros povos que também falavam o mesmo idioma vieram para o Brasil.

Para ter uma visão global sobre os movimentos migratórios que desaguaram no Rio Grande, Giba admitiu que foi montando um quebra-cabeças nas viagens que fez durante cerca de 10 anos parta conhecer todos os municípios do estado. Uma das paradas mais importantes foi na cidade que recebeu os primeiros viajantes.

O acervo do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo é composto por cerca de 10 mil objetos, 25 mil livros, 85 mil fotos, 9 mil periódicos e 12 mil documentos raros sobre a colonização alemã e a história da cidade. Fundado em 20 de setembro de 1959, a instituição foi inundada em maio deste ano. O acervo, localizado no térreo, passou dias debaixo d’água. O prejuízo foi de R$ 500 mil. Para restaurar instrumentos musicais, relógios, um altar e outros objetos usados pelos imigrantes, foi lançada uma campanha de adoção de peças por pessoas físicas e jurídicas.Fundado em 1959, o museu possui 10 mil objetos, 25 mil livros, 85 mil fotos, 9 mil periódicos e 12 mil documentos raros.

Interior do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo

Depois de se instalarem nas chamadas “colônias velhas”, dentre elas Santa Cruz do Sul e Lajeado, as famílias estavam grandes e as terras já não eram suficientes para acolher a todos os seus integrantes. Então, os pais vendiam propriedades de 20 hectares para comprar extensas áreas no Norte, que estava desabitado. E as famílias, que chegavam a ter 10 ou mais filhos, seguiam em carroças ou de trem para o novo lar. Até hoje o Rio Grande do Sul é sinônimo de imigração alemã e italiana, da qual Giba faz parte e falará adiante.

Este ano, reconhecendo a contribuição dos alemães para a constituição e desenvolvimento econômico e social do estado, o governo do estado programou 120 eventos até dezembro para comemorar o bicentenário da imigração.

ITALIANOS

Descendente de italianos, da região do Vêneto, a oitava maior do país, Gilberto Castoldi se especializou na história de seus antepassados, que colonizaram quatro grandes colônias gaúchas. Além disso, ele leu pelo menos 10 livros sobre o assunto.

Consta que o imperador Dom Pedro II, viajando pelo Sul, conheceu regiões não exploradas semelhantes a que ele tinha conhecido no norte da Itália, onde havia produção de vinhos e laticínios. Em contato com o governo daquele país, Pedro II contratou imigrantes para que povoassem as serras do estado.

A primeira leva se estabeleceu em Garibaldi (antes se chamava Conde D’Eu), em 1870. A segunda, ao lado da primeira, em Dona Izabel, hoje Bento Gonçalves. A terceira, foi criada em 1875, na região de Caxias do Sul, com o nome de Campo dos Bugres. Como as terras estavam totalmente ocupadas e muitos colonos queriam vir para o Brasil, foi designada outra região, próximo a Santa Maria, que se chamou Quarta Colônia de Silveira Martins. Nela, foram demarcados lotes rurais de 20 a 25 hectares, habitados a partir de 1876.

Giba no monumento da imigração italiana na Quarta Colônia, em Silveira Martins

A Quarta Colônia é integrada por nove municípios (Restinga Seca, Agudo, São João do Polêsine, Silveira Martins, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande e Dona Francisca). Nela, existe sítios arqueológicos que comprovam a presença de comunidades indígenas na região, além de relatos de viajantes que apontam a convivência dos imigrantes com grupos nômades e com comunidades quilombolas. Dentre elas se destacam a Comunidade Vovó Isabel, em Nova Palma; São Miguel dos Pretos e Rincão dos Martimianos [1], em Restinga Seca.

Existe rivalidade e diferenças comportamentais entre descendentes de alemães e italianos. Giba vivenciou e testemunhou muitas delas. Nascido na cidade de Encantado, onde seu bisavô se estabeleceu, seus pais falavam entre si e faziam perguntas para os filhos em um dialeto. Estes por sua vez, respondiam em português. Algo bem diferente dos alemães, que só se comunicavam no dialeto dos pais e avós.

Isso ficava nítido quando a gurizada ia jogar bola contra os descendentes dos alemães das cidades próximas (Arroio do Meio, Lajeado, Estrela), os rivais só falavam em hunsrückisch, dialeto alemão falado na região do Hunsrück, no sudoeste da Alemanha. Essa linguagem deu origem à língua falada nos estados brasileiros da região Sul e no Espírito Santo. O dialeto possui forte influência do português.

“Os alemães mantiveram esse negócio a vida toda. É uma característica assim que sempre me saltou aos olhos. Além disso, eles chamavam os italianos de gringos, pois chegaram antes deles no Rio Grande” – recorda.

Na região de Gilberto Castoldi os “gringos” ganhavam um adjetivo a mais: “polenteiro” (comedor de polenta). Por sua vez, os guris alourados eram chamados de “batata”.

OUTROS IMIGRANTES

Outros grupos de imigrantes povoaram o Rio Grande do Sul. Os açorianos foram os primeiros. Entre 1748 e 1756, 2.300 pessoas, cerca de dois terços da população gaúcha, se estabeleceram em Viamão, na capitania de São Pedro do Rio Grande. Depois se dispersaram por Rio Pardo, Taquari e região.

Na sede da Casa de Açores, em Gravataí,  funciona um museu e uma biblioteca. Foto: Gilberto Castoldi

A imigração foi uma solução para conter o excesso de população nas ilhas do arquipélago e para o governo português povoar o sul do Brasil. Eles influenciaram a cultura, a culinária e a música no estado. Foram eles que introduziram o sonho, os doces portugueses e uma grande variedade de receitas com peixe. A música tradicionalista música e na dança do pau de fita foram algumas de suas heranças.

Está em Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre, o Solar das Magnólias, construídos por açorianos da família Fonseca com características arquitetônicas coloniais portuguesas: sobrado, telhas de canoas com beiradas e janelas tipo guilhotina. A casa, visitada por Giba foi restaurada e funciona como sede, museu e biblioteca da Casa dos Açores do Estado do Rio Grande do Sul (Caergs).

 POLONESES

As 26 famílias de pioneiros da Polônia, aportaram na Serra Gaúcha, em 1875. De 1890 a 1894 ocorreu a primeira das três “goraczka brazijliska” (febre brasileira, em polonês). A maioria dos imigrantes eram camponeses de Płock, cidade da Província de Mazóvia, e de Kujawy, parte mais ao norte da Grande Polônia.

Portal da cidade de Áurea, auto-intitulada “Capital polonesa dos brasileiros”

Estudo realizado pelos pesquisadores Adriano Makikoski e Lúcio Kreutz, da Universidade de Caxias do Sul, mostram que o grupo manteve a religiosidade e criou escolas étnicas. No final de 1938, havia 128 escolas polonesas, 4.560 alunos e 114 professores. Das 128, 117 eram bilíngues, 10 tinham ensino em português e uma, em polonês. Sete eram religiosas e 121 leigas. Dezenove fecharam por falta de professores.

No mesmo ano, o então presidente Getúlio Vargas, de acordo com Makikoski e Kreutz, inviabilizou o funcionamento dos colégios, restringindo o uso e o ensino em língua estrangeira e determinando a obrigatoriedade da presença de professores brasileiros natos. Isso resultou no aumento de analfabetismo entre os imigrantes e o fechamento das escolas.

Placa afixada em Guarani das Missões

Gilberto Castoldi conta que em suas viagens encontrou pelo menos três igrejas com estátuas em homenagem ao papa polonês Karol Woityla (João Paulo II). Áurea, Guarani das Missões e Dom Feliciano, cujo nome homenageia o primeiro bispo gaúcho. A terceira cidade tem ainda um monumento para a padroeira Nossa Senhora Czestochowa, também protetora do país da Europa Central. No Brasil, a santa também é conhecida como Nossa Senhora do Monte Claro.

O PAPA E A SANTA
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No alto, as homenagens ao papa João Paulo II em Áurea, Guarani das Missões e Dom Feliciano. Abaixo o Monumento dedicado à Nossa Senhora Czestochowa, padroeira de Dom Feliciano e da Polônia

Em Áurea, cidade com aproximadamente 3.400 habitantes, a comunidade chamava-se Princesa Isabel. O nome foi mudado  para Vila Áurea, em alusão a lei que libertou os escravizados no Brasil, em 1944. O município é um importante produtor de erva-mate. Nele, estão instaladas 12 indústrias ervateiras.

Já em Guarani das Missões há um santuário dedicado Nossa Senhora Czestochowa, local de peregrinação internacional. Anualmente, no último domingo de agosto, se realiza a romaria em homenagem à santa.

Uma curiosidade: quando esteve em Dom Feliciano, Giba e seu primeiro companheiro de viagens, o piscineiro Jaime André Hubner, visitaram o prédio do museu e da casa de cultura do imigrante. Uma funcionária da instituição não gostou quando Jaime perguntou se o gentílico da Polônia era polaca ou polonesa.

A mulher ficou séria, se concentrou para não falar bobagem e disse assim:

“É polonesa porque polaca é sinônimo de prostituta”.

Segundo o dicionário Oxford Languages, utilizado pelo Google, polaca é “mulher nascida e habitante da Polônia”. A palavra, no entanto, tem também um significado ofensivo obsoleto: meretriz.

JUDEUS

Em 17 de abril de 2022, Giba visitou a cidade de Quatro Irmãos, no norte do estado, e conheceu o Memorial da Imigração Judaica, inaugurado onde antes funcionou o Hospital Leopoldo Cohen, fundado em 1932, restaurado e transformado em centro cultural e museu cinco meses antes da visitação feita pelo bancário aposentado e seus amigos.

O antigo hospital Leopoldo Cohen foi transformado em museu da imigração judaica

 O memorial, todo construído em madeira, tem no acervo fotos e objetos que contam a trajetória dos imigrantes na região. Tudo começou quando a Jewish Colonization Association (Associação de Colonização Judaica), criada pelo banqueiro de origem judaica-alemã e barão, Moritz von Hirsch, também conhecido como Maurice de Hirsch, decidiu patrocinar a imigração Judaica em larga escala para o Brasil e para a Argentina, em 1891. Hirsch criou colônias agrícolas nos dois países e no Canadá.

Em 1904, os imigrantes começaram a chegar, na Colônia Philippson, no interior de Santa Maria, no ano de 1904. De lá, foram também para Júlio de Castilhos. E em 1911, para Quatro Irmãos. Os primeiros a se instalar vieram do Leste Europeu e se reuniram na Bessarábia, no território que hoje pertence à Romênia. Eram 148 pessoas, de 38 famílias, que fugiriam das políticas antissemitas do Império Russo, que pretendia ver a região convertida à Igreja Ortodoxa, segundo o repórter Edison Veiga, da BBC Brasil.

Em outubro de 1904, 38 famílias chegaram a seu novo lar no município de Santa Maria

Muitos dos russos, lituanos, estonianos, ucranianos, bielorrussos, moldavos e romenos do grupo tinham a intenção de encontrar acolhimento, ganhar dinheiro e retornar. Acostumados a trabalhar no comércio, eles iriam se tornar agricultores e pecuaristas “em novo local, um novo clima, com nova língua”, disse Veiga no texto “A história de Philippson, a primeira colônia de judeus do Brasil”

O nome dado à colônia foi uma homenagem ao presidente da ferrovia Companhia Auxiliar dos Caminhos de Ferro do Brasil, o belga Franz Phillippson (1851-1929). O empresário era dirigente da associação criada por Hirsch.

A localização da colônia foi definida após a Associação Judaica ser autorizada a comprar terras para colonizar o extremo sul do Brasil. A concessão para a construção da ferrovia previa como contrapartida da empresa, o assentamento de colonos ao longo da via férrea, a construção de uma escola e um templo quando a colônia tivesse mais de 30 famílias.

Inicialmente, cada família tinha direito a lotes de 25 a 30 hectares, com casas de madeira, animais, instrumentos agrícolas e sementes. Nos anos 1920, segundo a reportagem da BBC, a maior parte das famílias migrou para centros maiores como Erechim, Santa Maria, Porto Alegre e São Paulo, voltando a se dedicar ao comércio.

A primeira integração entre a comunidade judaica e os brasileiros veio através da educação. Os imigrantes fundaram o Hospital Leopoldo Cohen, em Quatro Irmãos, e uma escola na Colônia de Philippson, cujo ensino era realizado em português e acolhia também os brasileiros, filhos dos colonos e trabalhadores da região.

ÁRABES

Ao contrário dos alemães, que foram convidados por autoridades e receberam terras e auxílio fiscal para povoar parte do Rio Grande do Sul, os árabes vieram por conta própria e se espalharam por quase todos os municípios brasileiros.

De acordo com o museólogo e doutor em história Júlio César Bittencourt Francisco, no artigo “Turco de cuia e bombacha: sírios e libaneses no Rio Grande do Sul”, os imigrantes sírios e libaneses, todos registrados inicialmente como turcos, concentraram-se nos centros urbanos, desenvolvendo atividades relacionadas com o comércio como mascates e, posteriormente, com a abertura de lojas.

 

Pedro II e os árabels. Foto: Brazil Imperial/Facebook

No princípio, levavam bijuterias e miudezas para vender no interior do estado. Com o passar do tempo e o aumento de ganhos, passaram a oferecer tecidos, lençóis, roupas prontas e outros artigos para os consumidores interioranos. Entre 1895 e 1914, ingressaram 57.020 imigrantes no Brasil, sendo cerca de 4.500 no Rio Grande. Em Porto Alegre, os imigrantes sírios e libaneses organizaram uma rede de comércio que permitiu que mantivessem um padrão de vida acima da média.

Esses povos árabes ajudaram a construir a identidade gaúcha. Atualmente, a cultura árabe pode ser apreciada de várias formas em todo o Estado. Há diversos restaurantes e programações especiais que celebram essa união do Brasil com o Oriente Médio.

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Quando Gilberto Castoldi começou a planejar as viagens pelos 497 gaúchos tinha como estratégia conhecer a prefeitura, a igreja e o museu de cada um. A busca pelo conhecimento, no entanto, o levou a fazer pesquisas mais profundas, ler livros e trabalhos acadêmicos e ampliar a gama de locais visitados. E, dessa forma, o bancário aposentado se tornou uma espécie de professor de história, geografia e processos de imigração do Rio Grande do Sul.

“Eu aprendi muito e quando se fala em questões riograndenses ou leio algo nos jornais, tenho uma visão global. Muitas vezes eu começo a rir de certas coisas que ouço ou são publicadas” – diz.

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Nota de página

[1] Nome dado por causa do fundador Martimiano Rezende de Souza

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Legenda da foto principal:Portal do município de Guarani das Missões.

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Leia a série completa

As aventuras de Giba Os três gorilas e a cidade fantasma A solidão devora

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Na próxima semana: A última viagem

 

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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