Em nome do padre, do filho e das bordadeiras

Capítulo 1: Dona Maria Mecy –

Esta história vai ser contada de trás pra frente, do mesmo jeito que ela começou, em Dom Inocêncio, no Piauí, cidade onde o calor acorda cedo. A água do chuveiro de plástico jorra pelando às 6 horas da manhã.

Isso me lembrou o tempo em que minha avó enchia o tanque de lavar roupa no quintal para que os netos tomassem banho de água quente no verão dos anos 1970, no Rio de Janeiro, para se livrarem das brotoejas de uma forma divertida. No entanto, tirando a poesia, mais parece caldo de galinha caindo sobre a pele e queimando.

Voltemos à história. Após um dia suarento e sacolejante por estradas de terra, o Instagram me conduziu para os bordados da caatinga, uma página eletrônica feita por remanescentes da Fundação Ruralista, criada pelo padre prefeito Manoel Lira Parente. Hoje a entidade que ostentou um período glorioso está decadente.

A leitura provocou uma estranha obsessão me conduziu para o tempo em que Lira moldou o destino de Curral Novo, ex-povoado de São Raimundo Nonato (PI) e o atual município de Dom Inocêncio.

A cidade teve duas emancipações, assim como Quincas Berro D’Água, personagem de Jorge Amado, teve duas mortes.

O primeiro período de autonomia foi decretado em dezembro de 1962. A cidade de 37 habitantes, segundo depoimento do ex-prefeito, ganhou nome do bispo mercedário espanhol Inocêncio López Santamaria, que atuou no Piauí por décadas. O grito de independência curral-novense ecoou por dois anos, sendo revogado em 1964. A emancipação definitiva só aconteceria 24 anos depois.

A bordadeira Maria Mecy Dias da Costa nasceu uma década após o povoado em ser cidade. Hoje, aos 72 anos, ela conta que foi iniciada na arte de bordar com Bezinha, a professora primária.

“Era uma miséria danada: faltava tudo, até linha. Para nos ensinar, a professora dava uns paninhos para as meninas. Foi assim que aprendi a fazer vários pontos e crochê. Só não aprendi a trabalhar com bilro” – conta a artesã.

Maria Mecy conta para o editor de Meus Sertões, como se tornou artesã. Foto: Thomas Bauer

O ponto de cruz, forma popular de bordado em fios contados na qual os pontos têm formato de “X”, foi introduzido em Dom Inocêncio pela Fundação Ruralista. Tudo que era produzido na cidade era vendido para outros estados do Brasil.

As mulheres da família de Maria Mecy tinham o mesmo dom. Uma tia era exímia no filé (rede de fios atados em nós); outra fazia bordados em biscuit. A iniciativa do padre permitiu a melhoria da renda das famílias sertanejas. Ainda hoje há quem sonhe em reativar o projeto, mas falta verba.

Maria Mecy foi professora e diretora de escola, mas nunca deixou de amar o bordado, encontrando tempo para ensinar quem se interessasse. Nos últimos tempos, Maria teve problemas oftalmológicos e passou por cirurgia. A visão não foi plenamente recuperada.  A solução foi fazer encomendas de bordado e tricô para outras artesãs para continuar a vender as peças junto com travesseiros e fitas que ainda produz.

Seu dilema atual é encontrar uma bordadeira que faça um grande bode, símbolo de Dom Inocêncio, em toalhas e panos de prato, vendidos a 70 reais por unidade. Ela ainda não conseguiu recrutar uma artesã. Para bordar a outra marca municipal, a sanfona, não há dificuldade.

Mesmo com anemia, o que lhe causa fraqueza às vezes, a artesã não deixa de frequentar a feira da cidade para negociar os produtos que faz e revende. Com bom-humor, diz que tem sorte de morar próximo do hospital e do posto da Samu, pois assim pode continuar a fazer o que gosta.

(Continua na próxima semana)

–*–*–

Legenda da foto principal: Maria Mecy, artesã de Dom Inocêncio (BA). Foto: @Thomas Bauer

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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