Avanço de empresas de energia eólica aumenta denúncias de grilagem na Bahia
– Texto: Thomas Bauer e Paulo Oliveira –
Os ventos das torres de transmissão de energia eólica têm feito soprar, cada vez mais forte, denúncias de problemas causados por multinacionais e suas subsidiárias no Brasil. Uma das principais questões está relacionada com a “grilagem verde”, processo pelo qual empresas conseguem obter grandes extensões de terras públicas, a pretexto de produzirem energia renovável. A apropriação de terra tem como alvo comunidades e famílias de posseiros que têm direito às terras públicas por ocuparem e torná-las produtivas há décadas.
Neste domingo (9/3), cerca de trezentas pessoas fizeram uma manifestação pacífica, saindo da Praça da Igreja, caminhando pelas ruas de Umburanas, no sertão baiano, até chegar diante do canteiro de obras da Engie, multinacional franco-belga que atua em 30 países.
No Brasil, a companhia investe nas áreas de geração, comercialização e transmissão de energia elétrica, transporte de gás e soluções energéticas. Ela opera 82 usinas hidrelétricas, eólicas, solares e biomassa. Isso equivale 6% da capacidade energética nacional.
Em Umburanas, a Engie Brasil instalou parte do Conjunto Eólico Umburanas. As obras começaram em 2017 e foram concluídas em 13 meses, em janeiro de 2019. Entre a cidade e Sento Sé, funcionam 18 parques eólicos e 144 aerogeradores. A operação é feita remotamente a partir do Centro de Operações da empresa, em Santa Catarina.
Toda essa iniciativa, segundo denúncias, só foi possível porque empresas ligadas à multinacional – Maestro Holding, Sequoia e Moinhos de Ventos – alegaram ser detentoras de grandes áreas, como a pertencente ao espólio de Serafim Joaquim da Silva. De acordo com o advogado Daniel Carneiro, representante dos descendentes do lavrador que adquiriu 3.571,92 hectares de terra desde 1940, a Sequoia alegou que fez um contrato de arrendamento entre os herdeiros. No entanto, o documento só foi assinado por um dos 11 filhos de Serafim.
Então, um outro familiar pediu uma certidão de inteiro teor da propriedade e descobriu que a matriz do imóvel rural tinha sido repassada para a empresa através de um contrato de cessão de direitos hereditários. Nele, há casos de assinaturas feitas como dedos por analfabetos, pelo menos uma pessoa assinando por seis parentes, assinaturas fora da ordem estipulada. Além disso, segundo os herdeiros várias assinaturas teriam sido feitas por idosos entre 70 e 90 anos, que teriam sido ludibriados.
Daniel foi contratado pelo grupo no final do ano 2020. Ele entrou com uma ação de nulidade da cessão de direitos hereditários, julgada procedente pelo juiz da 5ª Vara dos Feitos de Relações de Consumo Cíveis e Comerciais de Sento Sé, Eduardo Soares Bonfim. O advogado relata que as três empresas, por alegarem ser as donas das terras recebem, mensalmente, 1,6% do faturamento bruto da energia produzida por cada aerogerador instalado na área.
Os pagamentos continuam apesar da sentença judicial de reintegração de posse aos familiares de Serafim. O magistrado, em janeiro deste ano, entendeu que não foram seguidas formalidades legais nos contratos, além do fato de que alguns herdeiros não assinaram o documento. Outros teriam assinado enganados, pois havia a alegação que só uma torre anemométrica (de testes) seria instalada.
A Maestro é uma das empresas acusadas de tomar terras de posseiros irregularmente. Foto: Thomas Bauer
A Justiça levou em conta ainda que não houve abertura de inventário, nem partilha de bens. E, que por ser indivisível, a cessão só poderia ser feita com a concordância de todos os herdeiros diretos e indiretos. Em função disso tudo, o juiz condenou a Sequoia, Maestro Holding, Moinhos de Vento e Engie a pagarem retroativamente os valores recebidos desde que passaram a explorar a propriedade e reintegrou a terra para a família de Serafim. Os herdeiros ainda lutam para que a multinacional deixe de repassar o dinheiro para as companhias coligadas. Como consequência do processo duas servidoras públicas dos cartórios envolvidos foram advertidas por não cumprirem as normas e por aceitarem assinaturas recolhidas em galpões das firmas envolvidas.
“Quanto à Engie, o magistrado reconheceu que ela tem responsabilidade no caso por estar ciente da situação e garantir o pagamento para as outras empresas que se dizem proprietárias da fazenda, dividida em três áreas, mas com a mesma poligonal, além de ocultar os contratos celebrados entre as Centrais Eólicas Umburanas, suas subsidiárias e sócias, ou seja, as empresas citadas” – diz Daniel Carneiro
As empresas envolvidas negam irregularidades e recorreram da decisão.
HERDEIROS
Maurício (nome fictício por questões de segurança), parente de Serafim conta que a propriedade fica na região conhecida como Gruna e hoje envolve três áreas nas terras adquiridas em 1940: Fazenda Queimada de Baixo, Fazenda Olho D’Água e Fazenda Canabrava.
Ele conta que a propriedade sempre foi utilizada para criar gado e cultivo de lavoura. E que nunca houve questionamento com relação a propriedade. Segundo Maurício, a perturbação começou em 2009, quando as primeiras empresas começaram a chegar. Quando o contrato foi assinado apenas cinco dos 11 herdeiros de seu avô estavam vivos, portanto, era necessário obter a assinatura de todos os netos.
A alegação inicial, conta, é que colocariam um equipamento para coletar dados sobre o vento, velocidade, direção, intensidade, constância, temperatura, umidade, pressão e radiação solar. E que precisariam apenas de uma tarefa (medida agrária equivalente a 4.356 m²)para fazer a instalação. A iniciativa do contrato foi de uma das companhias ligadas à Engie.
“A empresa fez um pré-contrato para teste, mas depois construiu um parque eólico. Na realidade, todos foram enganados porque se soubessem a dimensão que ia ser ninguém teria aceitado a proposta. Todos os meus tios, meus avós, não têm leitura. Quando eles assinaram ou colocaram o polegar no documento, a maioria deles devia ter 70, 80 anos. Nessa faixa aí, tio Ranulfo tem 97 Há 14 anos tinha 83, 84 anos, por aí” – revela.
Protesto no canteiro de obra e no escritório da Engie, em Umburanas, no sertão baiano. Foto: Thomas Bauer
De acordo com Maurício, o protesto de domingo envolveu famílias que passam pela mesma situação. E que não se conformam por terem suas propriedades griladas. O neto de Serafim revelou ainda que após a sentença de janeiro, a família foi procurada para fazer um acordo inviável. As empresas teriam feito proposta para comprar a área, mas isso não interessa.
CASO ENEL
Antônio, filho de Francisco (nomes fictícios por questão de proteção), vive problema semelhante. Ele participou do processo porque sua família também teria sofrido com a grilagem que supostamente beneficiou a Enel Green Power, multinacional italiana, presente em 28 países, incluindo o Brasil, e cinco continentes. A Enel é responsável pelo Parque Eólico Aroeira, que engloba os municípios de Umburanas, Morro do Chapéu e Ourolândia, na Bahia.
De acordo com o manifestante, a propriedade de sua família tem cerca de 500 tarefas, ou seja, 2 milhões e 178 mil metros quadrados. Ele recorda o tempo das plantações de feijão, mamona e melancia. E acrescenta que em 2012, os pais passaram a criar gado, após adquirirem outra área, pertencente ao vizinho (seu Lau).
Antônio recorda que quando a Maestro Holding chegou na região, não dizia o que pretendia fazer direito. Eles falavam apenas que estavam fazendo prospecção para um projeto. Em 2017, cinco anos depois dos primeiros movimentos, um funcionário da empresa, conhecido por Diu, se aproximou de seu Francisco a ponto de tomar café com ele com frequência. O preposto chegou a jurar que a família nunca seria prejudicada.
Pura mentira. A tática de infiltração é utilizada para ganhar a confiança dos agricultores e criadores de animais. Em 2019, começaram a construir uma estrada e proibiram a passagem de todos, inclusive bloqueando-a com uma caminhonete.
Ao mesmo tempo, Antônio e seus familiares descobriram que a empresa já estava abrindo diversos acessos em sua propriedade. Quando foram até lá, um aerogerador estava instalado. O jovem e o pai passaram a dormir na estrada para tentar impedir novas invasões. Segundo o agricultor, para garantir a obra, os funcionários tinham a proteção de policiais à paisana, armados. Nessa época, a justiça garantiu a reintegração de posse para a eólica.
“Eles entraram, abriram a cerca, deixaram o gado fugir. Aí, depois de tanta perda que a gente teve, perda de gado, perda de cerca, perda de tempo, veio o medo. Quando a situação ficou insuportável, eles mandaram uma proposta de comprar a terra por um valor irrisório” – conta.
Antônio contou que para ficar em paz, o pai aceitou a oferta. A empresa então disse que só pagaria o valor se Daniel Carneiro, o advogado, abrisse mão de processos que mantém contra a companhia, o que não foi aceito. Os casos de Daniel envolvem pelo menos 50 famílias prejudicadas.
Ao participar da manifestação de domingo, o agricultor tinha como objetivo tentar um acordo com a Enel ou fazer com que a Justiça tomasse uma providência. Sua família não recebeu nada da multinacional italiana até hoje. Assim como no primeiro caso relatado, outra empresa é que estaria sendo beneficiada com os valores pagos pela geração de energia.
Apelo desesperado de um manifestante contra a prática das empresas de energia eólica. Foto: Thomas Bauer
Antônio não esconde sua irritação com Ricardo Borges, da Maestro, com quem discutiu:
“Ele olhou pra mim e disse que pagou pela terra a uma pessoa. Eu perguntei: ‘Quem? Cadê essa pessoa que não aparece?’ Ele não disse mais nada. Aí eu o chamei de ladrão. Eu disse ‘Você é muito ladrão’. A gente compra as coisas para ser nossa. Meu pai comprou a primeira terra em 1992, no ano em que eu nasci. O restante foi adquirido em 2012. Nós temos toda a documentação” – desabafa.
O caso envolvendo a Enel e as empresas coligadas foi denunciado por repórteres do The Intercept, Mongabay e IRPI Media (Projeto Itália de Jornalismo Investigativo). Para ler clique aqui
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Legenda da foto principal:Manifestação contra empresas de energia eólica, acusadas de grilagem de terra. Foto: Thomas Bauer
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