Paulo Oliveira –
O menino que só aprendeu a desenhar o nome porque a vaga dele foi repassada para um aluno branco
João nasceu no Lago da Onça (1), comunidade quilombola a seis quilômetros do centro da cidade de Pedreiras, no Maranhão. A família mudou-se para a rua da Golada (2), em frente ao rio Mearim.
O menino gostava tanto de frequentar o Grupo Escolar Oscar Galvão, única escola estadual entre as três existentes no município, que acordava cedo para se banhar nas águas diante da casa e seguir bem limpo para o colégio.
O ritual se repetia, mesmo que na véspera , ele tivesse passado boa parte do dia vendendo arroz doce, mugunzá, bolos e pirulitos para ajudar a família. Um dia, aos 9 anos e na terceira série,

João foi barrado. A vaga dele foi repassada para o filho de um coletor de impostos branco que acabara de chegar a Pedreiras.
O garoto sentiu o impacto do preconceito. Tanto é que após se banhar no rio, ele ia diariamente para a escola, não mais para aprender, mas para subir no muro e atirar pedras no prédio.
Adulto, João do Vale, extraordinário compositor e cantor que só estudou até a terceira série primária (atual ensino fundamental I), não esqueceu a covardia que fizeram com ele, citando o fato direta ou indiretamente em pelo menos três composições:
- “Ouricuri”, de 1965, (“Lá no sertão, quase ninguém tem estudo/ Um ou outro que lá aprendeu ler”);
- Minha história, de 1981, (“Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar/ A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar”);
- E “Zé” (data não encontrada), na qual convida o hoje ex-governador do Maranhão e ex-presidente da República, José Sarney, a visitar Pedreiras (“Zé vai ver/ Vai ver Pedreiras como está/ Zé vai ver/Ainda ontem eu vim de lá/Percorri todo o Nordeste/ Fui inté no Maranhão/ Visitei minha Pedreiras/ Trizidela e o sertão/ Eu vi tantas novidades/ Que alegrou meu coração/Escola pra todo lado/Sem precisar pistolão”).
A terceira canção pode ser ouvida, a partir dos 18 minutos e 40 segundos do vídeo abaixo, feito durante a gravação do DVD do “Projeto Cultural da Golada para o Brasil”, criado há 25 anos para enaltecer o cantor e compositor pedreirense e divulgar os artistas da cidade.
Tributo
Histórias de e sobre João correram Pedreiras de ponta a ponta, de forma oral, graças a Dona Maricô, que preparava pratos de surubim e galinha caipira e vendia cerveja para quem “esticava” após as festas. O cantor frequentava o local.
Também faziam parte do núcleo bem próximo de João do Vale a prima dele, Tereza Vale Parga, 96 anos, que o acompanhava até nos cabarés e nos jogos de carteado, e o falecido Zezinho, amigo de infância desde o tempo em que os dois vendiam doces nas ruas. Graças a eles, foi possível conhecer mais detalhes da vida do ex-pedreiro.
Hoje quem guarda detalhes da vida do mais ilustre pedreirense é a professora quilombola, ativista cultural e ex-secretária municipal da Fundação Pedreirense de Cultura e Turismo, Francinete Santos Braga. Ela mantém uma dúvida familiar e a memória do único encontro que teve com João.
A incerteza tem a ver com o fato de os vizinhos comentarem que o pai de Francinete é primo de João. Essa informação nunca pode ser confirmada porque ele nunca mais apareceu após deixar a família.
Já o único contato com o compositor ocorreu no quilombo urbano, onde a professora é vizinha de dona Maricô.
“Uma vez eu estava em casa e ouvi um alvoroço danado. O pessoal dizia que o cantor e compositor estava lá. Como era uma criança curiosa, corri com lápis e papel na mão para pedir um autógrafo. Eu desconhecia que ele não sabia ler nem escrever” – contou.
Em seguida, João falou para a menina que atenderia seu pedido, pois aprendeu desenhar o nome. E assim fez. Francinete guardou a relíquia de seu ídolo por um tempo, mas um temporal destruiu boa parte do que existia na casa de taipa em que ela morava.
(Continua)
Matéria atualizada em 23/10/2025, às 16h30
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Pé de página
(1) – Apesar do filho de João, João Aurélio e outras pessoas informarem que ele nasceu no Lago da Onça, o biógrafo Marcio Paschoal, autor do livro “Pisa na fulô mas não maltrata o carcará”, diz que ele nasceu na rua da Golada. Segundo Paschoal, a mãe de João do Vale tinha quatro filhos – Aurélio, Antônio, Cleide e Miguel – e carregava mais um na barriga, quando convenceu o marido a mudarem para a sede da cidade de Pedreiras. João nasceu lá, em 11 de outubro de 1933. Na cópia da certidão de nascimento do artista, lavrada em 1944, consta apenas que ele nasceu na “casa de sua residência nesta cidade”, não deixando claro se foi próximo ao centro do município ou no povoado de Lago da Onça.

(2) A rua da Golada, atual rua da Ponte, é o local da antiga zona do meretrício de Pedreiras. Repleta de biroscas, era frequentada assiduamente por João do Vale, cantores e tocadores. Ali também era o ponto de encontro de jogadores de dominó e damas. Existem três versões para o nome, segundo a jornalista Mayrla Frazão, do site O Pedreirense.
A primeira tem a ver com os goles de cerveja e cachaça; a segunda, com o fato de uma mulher ter sido degolada às margens do rio Mearim, no passado; e a terceira, por ser um local de passagem de boiadas, cujo trajeto tinha o formato de uma gola.
A rua da Golada foi imortalizada na música “Pisa na fulô”, assim como alguns de seus personagens: Zé Cachangá, famoso tocador, seu Serafim, o melhor sapateiro da região e Dió, uma mulher que defendia os direitos das prostitutas.
Um artista popular , chamado Chiquinho, fez uma imagem, representando João e a colocou na Golada. É uma das três estátuas do artista na cidade. Parentes de João e alguns moradores criticam a obra por achar que ela não se parece com o cantor.
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Legenda da foto principal: Imagem de João do Vale, feita por um artista popular, sentado em um banco da rua da Golada, atual rua da Ponte. Foto: Paulo Oliveira
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Leia a série completa-
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.








