A onça mora no pé do lajeiro

Paulo Oliveira –

A origem do Quilombo Lago da Onça e do sobrenome de um dos ícones da MPB

João Batista Vale nasceu em uma casa de barro coberta com palha de palmeira, no dia 11 de outubro de 1933, no Lago da Onça, a seis quilômetros do centro de Pedreiras. Na época, dez famílias moravam no local.

O menino foi registrado pelo pai com meses de atraso, mas houve um erro na certidão, segundo a ativista cultural Francinete Braga. O documento só foi corrigido 11 anos depois.

O primeiro a chegar no povoado, reconhecido em 2008 como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, foi o bisavô de João, Regino Vale. Escravizado, trazido à força de Angola, Regino adotou o sobrenome do senhor de escravos que o comprou. O fundador do povoado hoje é nome da escola municipal existente no local.

Réplica da casa onde João nasceu não existe mais. Reprodução

Quando João estava grandinho, ele ia para a sede de Pedreiras, a fim de vender os bolos preparados pela mãe, Levergidia. Nessa época, começou a compor os primeiros versos para atrair compradores.

Para frequentar a escola, o futuro cantor e compositor mudou-se para a rua da Golada, no centro da cidade.  No início da adolescência, João partiu para São Luís com o restante da família, atendendo um chamado do irmão mais velho, Aurélio, que acabara de ser promovido a terceiro–sargento da PM. Na capital maranhense, o adolescente começou a vender bananas em uma feira.

Sonhando em ir para o Rio de Janeiro, o futuro cantor fugiu aos 14 anos para Teresina, capital do Piauí, se unindo a trupe de um circo. Os artistas circenses percorreram o sertão daquele estado antes de chegarem ao destino final, onde João do Vale abandonou o grupo e arrumou emprego como ajudante de caminhão. Fazia viagens constantes para Fortaleza (CE), de onde escreveu para o pai, pedindo perdão pela fuga e informando que pretendia seguir para o Sudeste.

Antes disso, foi pedreiro na Bahia, garimpeiro em Minas Gerais, onde não encontrou riqueza, só formigueiros. Sem esperança de fazer fortuna, partiu de carona em um caminhão carregado de arroz para o Rio de Janeiro. O ano era 1950, o mês, dezembro. Com 17 anos, o adolescente de Pedreiras foi trabalhar como ajudante de pedreiro em uma obra, em Copacabana.

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“João do Vale ficou famoso, mas nunca deixou de vir para o Lago da Onça. Sempre que chegava em Pedreiras, tirava os sapatos e ia para lá. Andava descalço para sentir o chão” – disse Francinete.

A ex-secretária municipal da Fundação Pedreirense de Cultura contou uma história que dá a dimensão do amor que o “maranhense do século XX” tinha por sua terra, inspiração para várias composições.

“Os familiares de João venderam as terras do Lago da Onça. Ele veio do Rio de Janeiro assim que soube da compra. Chegou em Pedreiras e quis saber quem era o novo proprietário. Descobriu que o comprador estava hospedado no Planalto Hotel e foi até lá, levando uma mala de dinheiro. Após recomprar as terras, foi ao povoado e entregou a documentação para Salvador, primo e parceiro.

João Aurélio, filho mais novo do artista, calcula que, atualmente, 70% das casas do povoado são de alvenaria. O restante é de barro com cobertura de palha. O abastecimento de água é feito através de poços artesianos e a energia elétrica chegou por volta de 2010.

João Aurélio sentado ao lado da estátua que homenageia o pai, na rua da Golada. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

Recentemente, a Câmara de Vereadores aprovou a criação do Complexo Cultural Lago da Onça, que consiste na reconstrução da réplica da casa de João no local exato onde ele morou; a construção da réplica da antiga capela de São Benedito, primeiro templo de Pedreiras; a construção de portais na entrada e saída do povoado; e a colocação de uma estátua representando uma onça.

(Continua)

Matéria atualizada às 09h05 do dia 24 de outubro de 2025,

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Legenda da foto principal: Visão parcial do quilombo Lago da Onça. Foto cedida por João Aurélio, filho mais novo de João do Vale

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Leia a série completa

Teste seu conhecimento sobre João do Vale A cidade de Pedreiras e as pedradas de João Prima Tereza, a companhia perfeita Abandono após a morte A maldição do carcará Uma bodega chamada João Lembranças carinhosas e aventuras João será enredo de escola de samba carioca Diferentes gerações exaltam João do Vale

Jornalista, editor, professor e consultor, 63 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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