O guardião da memória de Pau de Colher

Paulo Oliveira –

As iniciativas de Gregório Rodrigues impediram o apagamento da história do massacre 

A luta incansável de Gregório Manoel Rodrigues, 80 anos, o guardião da memória do Massacre de Pau de Colher, e a romaria anual organizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA) são os pilares que não permitem o apagamento do episódio mais sangrento da ditadura de Getúlio Vargas.

Entre os anos de 1937 e 1938, centenas de seguidores dos beatos José Senhorinho e Joaquim Bezerra, o Quinzeiro. estabelecidos no povoado de Casa Nova (BA) foram massacrados por policiais militares de três estados (Piauí, Pernambuco e Bahia) e soldados do Exército, na região da tríplice divisa.

O número de camponeses mortos, incluindo mulheres e crianças, pode ter ultrapassado a casa de um milhar. Eles sucumbiram a tiros, fome e sede. Para saber detalhes do movimento rotulado de ser formado por “comunistas fanáticos”, clique aqui.

Desde que se entende por gente, seu Gregório, nascido no local do conflito sete anos após a carnificina, autorizada pelo governo federal, se esforça para resgatar a história que as autoridades tentam esconder.

Local onde ficava a casa do beato Senhorinho. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

Uma das primeiras providências do lavrador foi limpar, demarcar e sinalizar a área do acampamento estabelecido por Senhorinho para evitar que ele fosse ocupado. Orientados por religiosos, os moradores de Pau de Colher decidiram que só poderá ser erguido algo no local com o consentimento da comunidade.

Seu Gregório e seus filhos, principalmente, esperam que sejam construídos pelo menos um museu e um monumento no local. Partiu do guardião a iniciativa de sinalizar os pontos mais importantes do banho de sangue, como a casa de Senhorinho, as covas coletivas – só em uma delas foram sepultados 172 corpos -, trincheiras, o local das mortes dos líderes do movimento, dentre outros.

O protetor do local costuma levar jornalistas, pesquisadores e estudantes para visitar a trilha que leva ao túmulo de Ângelo Cabaça, também chamado de Anjo Cabaça, onde um dos líderes do acampamento morreu. Segundo o guardião, ao avistar um dos policiais que atacavam Pau de Colher, Cabaça correu atrás dele com uma foice.

O subchefe do acampamento viu quando o policial entrou em uma catingueira e tentou golpeá-lo, mas o alvo havia conseguido sair do arbusto.

“Ele aproveitou para atirar duas vezes. Dizem que as balas entraram parelhas no peito dele. O corpo de Cabaça só foi encontrado dias depois, já inchado”, conta Gregório, cujo relato se baseia em antigos moradores e no depoimento de historiadores que visitam a região.

Nas andanças com os visitantes, o lavrador conta ainda que os ossos de Senhorinho e de Ângelo Cabaça foram desenterrados pelos policiais pernambucanos, integrantes da tropa pernambucana que dizimou os religiosos. Foi determinado que os ossos deles fossem queimados até virar pó para que o local da sepultura não atraísse peregrinos.

Gregório acrescenta que quando era criança e ainda não entendia direito o que se passara no povoado, brincava, pulando no buraco da cova, deixada aberta pelos algozes. Além disso, espalhou-se a notícia que se os restos mortais não fossem queimados, o beato e seu homem de confiança se transformariam em bichos.

As relíquias e o juazeiro

Enquanto nos guia pelo acampamento, seu Gregório contou que encontrou muitos artefatos da época no local. Ele guardou fragmentos de ossos, balas de fuzis, cachimbos, pedaços de cerâmica, garfos, garrafas, pedaços grossos de vidros e uma moeda antiga, de 1828. São peças que pretende destinar a um futuro museu, que acredita será construído um dia.

Relíquias do acampamento do beato. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

Seguindo o instinto e a experiência, o guardião acredita que muitas outras coisas serão encontradas caso o terreno seja escavado. No entanto, embora algumas pessoas já tenham se voluntariado para fazê-lo, Gregório diz que ele e os filhos só permitirão com a condição de que o que for achado faça parte do acervo de um memorial em homenagem aos mortos.

O lavrador lamentou a forma como a história tem sido negligenciada e até boicotada. A maior feira da região era realizada no entorno de um juazeiro, próximo do terreno onde cerca de quatro mil seguidores de Senhorinho e Quinzeiro se agruparam.

Oitenta e seis anos após a matança ainda tentavam derrubar a árvore, no centro do povoado, que simboliza resistência e lembra o massacre. Há alguns meses, atearam fogo e uma banda da árvore caiu. O juazeiro se mantém em pé atualmente por causa de um monte de areia colocado em seu entorno.

Sepultura de Ângelo Cabaça. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

“Parece que o local onde ocorrem muitas mortes nunca tem paz” – deduziu o guardião, que está cansado de ouvir dos visitantes que terá apoio para seu projeto, o que nunca aconteceu.

O lamento se estende à falta de cuidado com outros cova coletiva mais para dentro do povoado. Com seus poucos recursos, ele mandou construir um pequeno cemitério com cinco fileiras de blocos e um portãozinho. Como achou os muros baixos, decidiu colocar mais uma fileira de tijolos.

“Desde então as almas que estão jogadas em outras covas estão me perseguindo e querendo que eu cuide delas também. O que faço?” – perguntou.

Ao ouvir como resposta que deveria chamar um padre para rezar uma missa, retrucou:

“O padre ddeveria construir outros cemitérios”

A indignação de seu Gregório continuou com ele argumentando que o poder público deveria construir uma estátua para Senhorinho, reparar os danos e reconstruir o sítio histórico

O juazeiro parcialmene queimado. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

Com as marcações feitas por ele derrubadas e com as inscrições se apagando, ele considerou que as autoridades não tinham o direito de matar homens, mulheres e crianças “como se fossem jumentos”. Em vez disso, devia ouvi-los.

Para dar ideia da covardia dos policiais e militares, que após dizimar o acampamento perseguiram sobreviventes, na caatinga utilizando até um avião com duas metralhadoras, Gregório contou a seguinte história:

Da polícia só morreram seis soldados.  Eles deram fogo de sábado de manhã até meio-dia de domingo. Um deles acocorou virado para uma trincheira. Quando ele deu fé, foi atingido com um tiro na testa. Os “caceteiros”, como eram conhecidos os seguidores de Senhorinho, só tinham um fuzil, deixado pelos piauienses que fugiram após o primeiro ataque. E apenas um religioso sabia manuseá-lo. Já as tropas traziam metralhadoras e fuzis.

Romaria

A romaria de Pau de Colher, realizada no povoado de Casa Novo é um evento promovido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA) e pela Diocese de Juazeiro desde 2003. A peregrinação rememora e honra a memória das vítimas do massacre, ocorrido entre 1937 e 1938. Este ano será a 22ª edição do evento.

Os participantes entoam cânticos durante a procissão de 2022. Foto: Thomas Bauer/H3000/CPT-BA

A celebração serve para denunciar a tentativa de apagamento e conscientizar a população para impedir que a história do massacre seja esquecida

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Legenda da foto principal: Seu Gregório sonha com a construção de um museu e um monumento no local do massacre. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões.

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Leia mais sobre o tema

A romaria de 2022 O banquete após a matança

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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