Banho de sangue feito por PMs e pelo Exército

Paulo Oliveira –

“Alevanta pecador/
Da cama em que está deitado/
Vamos ver Jesus em tormentos/
Pelos nossos grandes pecados”

Quadrinha cantada pelo beato José Senhorinho

Antes de mais nada, já que a história de Pau de Colher não é relatada nos colégios, vamos contar o que aconteceu no arraial do sertão baiano. O massacre ocorrido no município de Casa Nova, foi a chacina mais sangrenta registrada no período da Ditadura Vargas, no contexto do Estado Novo, entre 1937 e 1938. Policiais militares de três estados e do Exército assassinaram uma quantidade de pessoas que pode ter ultrapassado 1.000 mortes.

O arraial era uma comunidade messiânica, comparada a Canudos (BA – 1896 a 1897) e Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (CE -1937). Para lá foram atraídas quatro mil pessoas, principalmente de cidades vizinhas. O movimento, que também tinha viés social e político, era liderado pelo beato José Senhorinho, seguidor das ideias do paraibano Severino Tavares.

Tavares ficou conhecido por suas pregar o desapego aos bens materiais, orações e rezas diárias e feitura do sinal da cruz. Ele se autointitulava a “terceira pessoa da Santíssima Trindade”, substituto de Padre Cícero, falecido em 1934, e enviado do beato José Lourenço Gomes da Silva, líder da comunidade de Caldeirão. Ele também recomendava peregrinações à comunidade cearense para o combate ao anticristo.

Visto pelas autoridades como um grupo de fanáticos e uma ameaça constante, os liderados por Senhorinho buscavam melhores condições de vida em meio aos desmandos dos coronéis e à injustiça social. Os seguidores do beato eram conhecidos como caceteiros por carregarem “cacetes” torneados em forma de cruz na parte superior, sendo empunhado com a mão direita. Os objetos feitos de madeira de marmeleiro eram considerados importantes para salvação. Depois, passaram a ser utilizados como armas.

Foto de 40 órfãos de Pau de Colher entregues a famílias de Salvador. Reprodução de A Tarde

Em janeiro de 1938, os caceteiros atacaram à Fazenda Olhos D’Água, em São Raimundo Nonato, no Piauí, a 35 quilômetros de distância na época. Na investida, mataram entre 12 e 20 pessoas, incluindo duas crianças. Até hoje o motivo da violência é considerado “uma incógnita”.

O que se tem conhecimento é que o ataque aconteceu em um período de grande violência. E o crescimento do povoado, cuja população era maior do que a de Casa Nova (BA) e Petrolina (PE), preocupava os produtores rurais.

Estes acusavam os seguidores de Senhorinho de comunistas, assaltante de propriedades e de impedir o transporte de gado. Essas informações constam da dissertação de mestrado “Arqueologia, paisagem e materialidade do Movimento Pau de Colher (1937-1938)”, do arqueólogo Marcelo Alves Ribeiro, da Universidade Federal do Piauí. E

Vale ressaltar que à época, os religiosos voltavam para suas casas para buscar mais alimentos, pois os que havia na roça de Senhorinho acabaram. A movimentação assustava constrangimento e medo a parte da população. Muitos fugiam e se refugiavam na caatinga. No mesmo período, as romarias a Caldeirão se intensificaram. Senhorinho e seus líderes começaram a fazer reuniões para encorpar o número de romeiros. Quem não concordasse era ameaçado de punições divinas e vítima de violência.

As primeiras mortes ocorreram no dia 7 de janeiro, na localidade de Barra, dois homens foram assassinados pelos caceteiros. Em seguida, ocorreu a chacina na Fazenda Olhos D’Água, que pertenciam a Janjão. Ao mesmo tempo, eram assassinadas pessoas em Pau de Colher, principalmente aqueles que não respeitavam interdições como a proibição de relações sexuais mesmo entre casais e quem pretendia voltar às suas moradias.

Cinco dias após a matança na fazenda, um grupo formado 30 voluntários civis e quatro policiais, liderados pelo sargento Geraldo Bispo dos Santos. Eles alegaram que pretendiam conter a violência na comunidade e impedir a invasão à sede de Casa Nova.

Os homens atacaram pelos fundos do acampamento e mataram José Senhorinho, que estava debaixo de um umbuzeiro e foi atingido na cabeça, e os subchefes João Damásio e Ângelo Cabaça. Os religiosos reagiram, espancando e matando o cabo Antônio Vieira da Silva (Vieirinha), o soldado João Batista do Santos e José Rodrigues, sapateiro voluntário da expedição.

Com a morte de Senhorinho, a liderança de Pau de Colher passou para o beato Joaquim Bezerra, o Quinzeiro, que não tinha o carisma de Senhorinho. Além disso, no período à frente do grupo foi marcado por mais violência dentro e fora do arraial.

A repercussão do primeiro combate fez os prefeitos de São Raimundo Nonato e São João do Piauí pedirem providências para reprimir “um bando de criminosos” ao coronel Fernando Dantas, interventor federal. Os dois acrescentavam que “o numeroso grupo de fanáticos pertenciam a seita de José Lourenço, no Ceará” e estavam invadindo o Piauí, cometendo assassinatos.

Assim, foi organizada nova expedição constituída por forças militares federais e estaduais incluíam a seção de metralhadoras do Batalhão de Caçadores de Aracaju (SE), a segunda companhia de fuzileiros do 19º Batalhão de Caçadores da Salvador (BA), o esquadrão motorizado da PM baiana, a companhia de fuzileiros da PM baiana, a Brigada Militar de Pernambuco e a Força Pública do Piauí.

De acordo com Marcelo Ribeiro, a operação deveria ser articulada, em ação simultânea que resultasse na rendição dos religiosos. No entanto, no dia 15 de janeiro, sob o comando do tenente Antonio Mendes, a polícia piauiense atacou e matou 11 pessoas. Os PMs, no entanto, tiveram de recuar, porque o grupo de religiosos estavam em maior número.

Policiais cercam sobreviventes de Pau de Colher. Reprodução do jornal Notícias do Vale

Três dias depois, utilizando metralhadoras e fuzis, o capitão Optato Gueiros, da Brigada Militar de Pernambuco, iniciou o ataque utilizando metralhadoras e fuzis. Ele comandava 97 soldados.

O fogo só terminou no dia 21 de janeiro, quando o militar, conhecido caçador de cangaceiros, assinalou em seu diário que 400 pessoas haviam morrido. Nos três meses seguintes foram realizados buscas, caça e abate aos remanescentes do acampamento pelas polícias dos três estados. Calcula-se que a matança tenha passado de mil pessoas.

Devido ao elevado número de mortos, o Capitão Gueiros determinou que os corpos fossem queimados.  A fim de não deixar resquício dos líderes da comunidade, os ossos de Senhorinho e Ângelo Cabaça, também chamado de Anjo Cabaça, foram retirados das covas e queimados no local.

Outra consequência do massacre foi o envio de crianças órfãs, nas chamadas “carroças da salvação”, para serem entregues às famílias abastadas de Salvador. Eles faziam o trabalho doméstico, frequentemente em regime análogo à escravidão.

As forças pernambucanas foram saudadas pelos casa-novenses por terem destruído o arraial. O prefeito da cidade ofereceu um banquete ao líder das tropas, na sede da prefeitura.

Segundo o jornal Diário de Pernambuco, um avião bombardeio do Exército, equipado com metralhadoras partiu para a região no dia 24 de janeiro para “cooperar na perseguição aos fanáticos”. No dia 29, o então presidente Getúlio enviaria um telegrama ao interventor Fernando Dantas, felicitando-o pelo extermínio de Pau de Colher.

Os governos estaduais e federal se empenharam em inviabilizar os vestígios do massacre. Não contavam, porém, com a disposição de Gregório Manoel Rodrigues, considerado o “guardião da memória” de Pau de Colher.

Ele demarcou o antigo acampamento e preserva os locais de sepultamento coletivo, lamentando a carnificina e o fato de a polícia ter tratado o povo como animais. É dele que falaremos a seguir.

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Legenda da foto principal: Seu Gregório sinalizou as covas dos mortos de Pau de Colher. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

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O massacre não pode ser esquecido O banquete após a matança

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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