Thomas Bauer (CPT-BA / H3000) e Paulo Oliveira (Meus Sertões) –
João Caçuá foi encontrado caído na roça, após família considerá-lo desaparecido.
Ele passou 40 anos querendo punição para os assassinos.
O posseiro Jorge Araújo de Sousa, o João Caçuá, 76 anos, foi encontrado morto na roça em que cultivava no dia 27 de outubro. Sobrevivente da Chacina do Sarampo, em Canavieiras (BA), em 1985, ele estava desaparecido. A primeira versão para a causa da morte é infarto.
Em março deste ano, o documentarista e fotojornalista Thomas Bauer entrevistou João. Ele relatou detalhes da emboscada que matou quatro trabalhadores rurais na disputa por terra. Esta entrevista inédita, que Meus Sertões publica hoje, revela detalhes do episódio.
O Massacre do Sarampo aconteceu em 2 de julho de 1985, na localidade Campo do Sarampo. Nove posseiros foram surpreendidos ao amanhecer por um bando de jagunços armados, sob o comando dos pistoleiros Valdevino Bigode, Vicente e Pinheiro.
O confronto resultou na matança de lavradores, incluindo José Cardoso dos Santos (Zequinha) e João Batista Cardoso dos Santos (Batista). A matança ocorreu em um contexto de violenta luta pela terra, tendo como mandante Dely Dias dos Santos, o Dely Ruim, interessado na extração de madeira.
Devido à repercussão nacional, a chacina resultou nos primeiros atos de desapropriação de terras para fins de reforma agrária no período da redemocratização.
Em setembro de 1986, o governo federal assentou 66 famílias nas fazendas Poxim e Sarampo, garantindo a terra aos trabalhadores rurais. Contudo, a justiça criminal falhou em punir os responsáveis, apesar de terem sido denunciados por homicídio qualificado. O processo judicial sobre as mortes prescreveu em 21 de agosto de 2009, por decisão do juiz Daniel Álvaro Ramos.
Quarenta anos após a chacina, ninguém foi punido pelas mortes, e o mandante e os pistoleiros continuaram em liberdade. A impunidade final reforça a dificuldade de responsabilização criminal em casos de violência agrária no Brasil.
Caçuá era um dos nove homens que estavam no barraco de madeira dispostos a enfrentar os pistoleiros contratados por Derly. Ele conseguiu fugir após ver Zequinha e Raimundão serem mortos.
O trabalhador rural contou ainda que recebeu um lote de terra do governo federal após a matança, mas o vendeu e foi para outro assentamento. Na época da entrevista, João Caçuá ainda lamentava não ter encontrado o chefe dos pistoleiros, Bigode, para que ele fosse punido.
No último mês de outubro, João desapareceu. No dia 27, o corpo dele foi encontrado.
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O modo de falar de João Caçuá foi mantido na entrevista
Então, primeiro, muito obrigado por ter vindo e pelo tempo do senhor e eu queria pedir para o senhor se apresentar. Dizer o nome completo, a idade e onde o senhor mora hoje?
Jorge Araújo de Sousa, vulgo João Caçuá. Eu estou com 76 anos, completo. Vou fazer 77. Hoje eu moro no distrito de Hermelândia, em Canavieiras. Minha casa fica no no assentamento Canaã 2. Continuo em assentamento, nunca larguei não.
O senhor nasceu aqui na região?
Não. Nasci em Itamaraju (BA).
E como é que o senhor chegou no Campo do Sarampo?
Rapaz, achei o Sarampo. Foi crise, precisão, perseguição de fazendeiro, traição. Eu sou horticultor. Lá topei só treta. Golpe. Tomei duas pauladas na fazenda dos outros. Aí surgiu a Reforma Agrária. Então saiu terra e peguei terra.
Mais como é que ficou sabendo que tinha terra no Sarampo?
Foi um amigo meu chamado Raimundão, filho de Zé Homem. Ele me contou que teve a morte de Raimundinho. Assim que mataram ele, meus vizinhos me chamaram. Nessa época, eu ia para o Pará. Atrás de terra lá. A Reforma Agrária já estava indo para o Pará.
Aí me disseram: “Rapaz, se você tem coragem nós tem terra por aqui mesmo. Lá é um por todos, todos por um”. Respondi que não sabia se tinha coragem, mas que não corria de nada.
Eu tava na fase difícil. Família, filho, desempregado, sem condição de exercer a minha profissão. Aí, resultado: eu fui com os meninos testar lá dentro. Cheguei lá, com oito dias teve uma festa. Aí ficamos lá dois anos. Depois disso, veio o fogo do Sarampo.
Mais nesses primeiros dois anos o senhor ficou aonde?
Lá dentro do Sarampo. Quer dizer, a família morando na rua (na cidade) e eu lá dentro no Sarampo com os meninos.
E na rua aonde?
Na rua do Curral, Santa Luzia, a 63 quilômetros de Canavieiras.
O senhor tinha vindo de Itamaraju?
Não, de lá eu vim criança. No tempo de menino eu morava em Santa Luzia. Eu morei um tempo em Pau Brasil. Depois voltei para Santa Luzia. E fui para o Sarampo através de Raimundão, Zequinha, Batista, Lia, que se chamava Isabel, era a mulher de Raimundão. Esse pessoal.
Isso foi em que ano?
Ah, agora tô perdido.
Aí, quando o senhor chegou como é que era o Sarampo?
Era mata pura. Era lama, atoleiro, crise. Não era nada que prestasse. Parecia coisa do diabo. Só se pensava no que era ruim. Ali tinha madeira, estaca. Puxando, dava para cortar piaçava no pinote (rápido e com movimentos repetitivos). No mais, um ajudava o outro. A vida era essa. Tava difícil.
Já tinha gente lá naquela época?
O pessoal que estava lá era tudo posseiro. Tinha o pessoal de Delecina, do Zé Butinga.
Zé Butinga disse que chegou em 1972?
É isso mesmo. Eu não recordo o período. Fui depois disso. Já tinham matado Raimundinho.
Maria me disse que a morte de Raimundinho foi em 27 de setembro de 1974.
Eu não me lembro não. Já estava em Santa Luzia, né. Cheguei bem próximo ao dia da chacina. Com menos de dois anos o pau comeu. Vieram matar a gente, vai fazer o quê? Se defender né? E nós perdemos por facilidade. Nós não era pra ter perdido nenhum dos nossos companheiros.
No dia que aconteceu o fato, a chacina o senhor estava aonde?
Lá dentro. Lá no barracão.
Tinha quantas pessoas lá?
Rapaz, tinha nove pessoas. Correu um e oito brigou. Morreu quatro. E cinco escapou. Eu tava lá dentro. Eu saí com a roupa toda rasgada. Quando eu saí ali pelo fundo, saiu eu, Marquinho, Negão. Um velho, me esqueci o nome dele agora. Ele estava no barraco lá em baixo. Nós saímos por lá.
E como é que vocês conseguiram fugir?
Banga (casebre) rolou. Um por um foi escapulindo. Quem morreu, morreu. Quem ficou vivo, ficou vivo e caiu fora.
Foi no meio do tiroteio?
Nós saímos no meio do tiroteio sim. Zequinha caiu logo, Raimundão caiu. Aí salvou Marquinho e Negão.
O senhor poderia contar um pouco na noite anterior. Vocês estavam sentindo que podia acontecer algo?
Nós tava com três semanas de espera. Nós só perdemos lá por causa disso aí. Quer dizer, perdemos quatro companheiro porque nós tava muito cansado. Aí no dia anterior diziam que os homem iam entrar. Quem foi levar um aviso a nós foi o pessoal de Poxim. Esse cara até já morreu.
Ah, só ficaram os que tava lá dentro. Ninguém foi lá ajudar não. Só foi Zequinha – pistoleiro que passou para o lado dos posseiros. Eu não tinha posse no Sarampo. A minha posse era num lugar chamado Jacu. Aí, já viu, eu sendo aquele cara que não abria do pau para cantinho nenhum, um dos meninos falou: vamos dividir as nossas terras com João Caçuá. Que João Caçuá é um cara que não sai do meio de nós.
Depois da morte de Mineiro, Zequinha, Batista e Raimundão, ocorreu a medição da fazenda. A mulher de Raimundo, Isabel, que me tratava como compadre prometeu dividir a terra dela comigo.
Como vocês se prepararam para enfrentar os pistoleiros?
Nós estávamos todos armados. Esperando o fogo a qualquer instante.
Vocês deixaram alguém na vigia?
Se tem alguém de vigia não tinha acontecido, não tinha morrido ninguém. Nós chegamos em um por um. Tinha homem que não corria de pau e não corre até hoje. Tinha o Zequinha que era bom de serviço, que era danado. Tinha o Batista, Raimundão, nós.
No último dia, o pessoal falharam, cansaram. Aí um dos cabra disse: “Esses caras vêm cá nada”. Aí a questão de não confiar. Com essa brincadeira, todo mundo foi dormir. Todo mundo já estava quebrado. Quando foi quatro horas da manhã, os caras riscaram.
E pegaram vocês todos dormindo?
Só estava acordado Zequinha, Batista e Jorge, o que correu.
Jorge foi o primeiro que correu?
Se Jorge fosse um cara de coragem… Ele estava armado. Os outros não. Zequinha e Batista estavam desarmados do lado de fora. Os outros tudo dormindo. E ele não soltava a doze (escopeta) hora nenhuma porque o covarde é o inferno. Aí ele em vez de atirar no bandido, sobe do outro lado e fugiu. Se ele reage, os outros podiam ter se organizado.
E como é que era o barracão?
O lugar tinha janela e porta. Era um barraco simples de tábua. Não tinha mais nada. O Zequinha pegou uma arma e deu três tiros da janela ainda.
E aí vocês achavam que eles não vinham mais, que era boato?
Eu confiava que os caras vinham. Eles já tinham vindo embaixo, no lado do Balizeiro (nome de um morador), rodado. Nesse dia mesmo que eles vieram oito dias, quinze dias atrás, nós não ganhamos esses caras lá porque não tinha acostumado ainda a luta.
Eu fui lá ontem (nos Balizeiro).
Foi, né? Muitos amigos ali. Coragem que nem um capeta ali também. Tem uma carinha de besta, mas é gente ruim também. Agora é bom, tem nada de ruim ali (risos).
Mas e as armas? Como vocês se organizaram?
Ah, nós compramos.
Onde vocês conseguiram o armamento?
A gente comprava. Naquele tempo não era difícil de comprar não. Hoje tá difícil. Antigamente, não.
Quantas armas vocês tinham?
Agora não me recordo.
Quais eram os tipos de armas?
Era mais armas de soca, Rifle 38 tinha pouco. Era pouca arma de peso. Era só relepa (material surrado) mesmo. Coisa de soca, dois canos, clavinote (pequena carabina). As armas eram essas aí. O resto era no grito e na raça, macho.
Vocês chegaram a fabricar armas?
Não. Não tinha ninguém a fazer arma, não. Tudo era comprado. Mas aquilo era fácil. Tinha um velho chamado Zeca Ferreira, arriava a relepa ligeiro. Aí batia lá e tudo já tava pronto.
Aí então, começou o tiroteio e senhor viu o Zequinha…
Vi ele tombar, sim, bem encostadinho de mim assim. Eu ainda falei pra ele tomar cuidado. Ele botou a cara para fora. Ele era um sujeito macho. Miudinho, mas era homem. Ele deu dois tiros pro lado de fora. Quando foi dar o terceiro, tinha um cara que botou os olhos nele e TUF! Ele disse: aquele homem me acertou e aí foi virando até cair. Eu olhei, vi um monte de sangue. O homem morreu. Aí, a gente teve que cuidar do lado da gente. Salvar vida. Zé Armando saiu, Mamede também. Tinha que sair atirando, não importa onde acertava, o que valia era salvar vida.
Dos nove que estavam no barraco, quantos estão vivos hoje?
Acho que além de mim, só o Negão e o Marquinho.
Como o senhor ficou depois do tiroteio?
O meu instinto era vingar a morte dos meus companheiros. Eu cheguei a caçar o chefe da pistolagem de apelido Bigode. Cacei muito ele, mas não achei. Eu tinha um ódio dele da moléstia porque ele matou o Zequinha, que era muito meu amigo.
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Legenda da foto principal: O horticultor João Araújo, o João Caçuá, sobreviveu à tocaia feita por pistoleiros. Foto: Thomas Bauer/CPT-BA-H3000
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- Author Details
Thomas Bauer nasceu em Vorarlberg, Áustria. Formado em construção de barcos, mudou a área de atuação ao participar da Academia Social Católica em Viena. Participou ainda do serviço civil na Paróquia de Frastanz e cursou filosofia no Rio de Janeiro. Desde 1996 no Brasil, atua na Comissão Pastoral da Terra (CPT-Bahia) como fotógrafo, filmmaker e contador de histórias.








