Paulo Oliveira –
Rasgando o céu da imensidão/
Contra a opressão/
Um carcará que voou/
Para desarmar as mordaças/
Desse país mundo cão
Trecho do samba da Villa Rica para 2026
O enredista [1] da escola de samba Villa Rica, Andy Rocha, 27 anos, desconhecia a existência de João do Vale até o início de 2024, quando a sambista Teresa Cristina citou o nome do cantor e compositor maranhense. Logo em seguida, ele ouviu a música “Carcará” e ficou intrigado.
A música causou um impacto tão grande que o fuzileiro naval, atual morador de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, começou a pesquisar a vida de João. Com o início da participação na Liga Independente das Escolas de Samba Virtuais (LIESV), em 2022, Andy começou a frequentar quadras de escolas de samba para se inspirar.

A LIESV foi criada em 2003 por um grupo de apaixonados pelo Carnaval, que resolveu criar a folia virtual. Nela, carnavalescos, enredistas, compositores e intérpretes reproduzem um desfile, desenhando carros alegóricos, alegorias, fantasias e alas em uma plataforma Word Press.
As agremiações de vários estados são divididas em dois grupos: acesso (11 participantes) e especial (18). Os desfiles acontecem em agosto no site da Liga e o resultado é divulgado em setembro.
Da experiência virtual até a real se passaram três anos para o jovem criado nas comunidades da Mangueira, zona norte do Rio de Janeiro, e dos Tabajaras, na divisa entre os bairros de Copacabana e Botafogo (zona sul), apresentar a proposta para o primeiro enredo.
Pois bem, antes de ser convidado pela escola de samba, Andy só via os desfiles das grandes escolas pela televisão e frequentava a quadra da azul e amarelo para jogar futebol, praticar alguma luta e festejar aniversários.
A Villa Rica foi fundada em 1966 como bloco. Vinte e quatro anos depois se transformou em escola de samba, apadrinhada pela Unidos de Vila Isabel. Com as cores amarelo ouro e azul pavão, ela desfila atualmente na Série Bronze, na Estrada Intendente Magalhães, em Campinho. Se fosse um campeonato de futebol, a agremiação da zona sul estaria na quarta divisão.
A escola possui quatro títulos e cinco vice-campeonatos em grupos de acesso diferentes. O de maior destaque foi em 1994, quando subiu pela única vez para o Grupo Especial (primeira divisão), com o enredo “Copacabana”. No ano seguinte, caiu e não se apresentou para o desfile. Despencou para a terceira divisão. Em seguida, foi ladeira abaixo até chegar ao quinto e último grupo, em 2008. A última conquista ocorreu em 2018, no mesmo grupo que se apresenta hoje em dia.
A convocação

No início de 2025, o enredista que cogita um dia se transformar em carnavalesco, entrou em contato com o carnavalesco Marcos Faleiro, pois soube que ele estava à procura de um enredo. Sem titubear, Andy propôs João do Vale.
“Quando comecei a pesquisar, vi quem era o autor de ‘Carcará’ e comecei a pesquisar a historiografia dele. E comecei a me ver dentro da história dele, uma pessoa que conseguiu vencer mesmo diante de situação de vida difíceis. Eu vi que João do Vale era gente como eu” – refletiu.
Andy, nascido e criado em favelas no Rio, avalia que a vida nos morros e a de um imigrante nordestino negro que sai do sertão para ser protagonista é muito difícil. O enredista cita que o maranhense vendeu bolos e pirulitos, foi cantador de bumba meu boi viveu como nômade até chegar ao Rio, onde artistas renomados gravaram suas músicas.
“O que mais me chamou a atenção não foi a luta para conseguir se projetar, mas o apagamento histórico que ele sofreu. Muitas pessoas não sabem que João é o autor de canções como ‘Estrela Miúda’, ‘Na Asa do Vento’ e ‘Vida de Caboclo’. A realidade dele é muito próxima da de muita gente das comunidades. Foi por isso que pensei nesse enredo, que servirá de motivação para muita gente” – explicou.
Andy nunca foi ao Nordeste, portanto não chegou a conhecer Pedreiras, terra natal do compositor maranhense. No entanto, supriu a falta de grande estrutura da escola com as pesquisas. Ele adianta que a Villa Rica virá muito colorida como influência de Pedreiras, terra vermelha cortada pelo Rio Mearim, e, principalmente, dos festejos de São Luís.
Em seguida, o desfile mostrará o Zicartola, restaurante e local de shows criado pelo casal Zica, exímia cozinheira, e Agenor de Oliveira, o Cartola, considerado por diversos músicos e críticos como o maior sambista da história da música brasileira. A Villa passará também pelo famoso show Opinião, que lançou Maria Bethânia e teve como participantes João, Nara Leão e Zé Ketti.
O espetáculo se destacou por se tornar um marco de resistência à ditadura militar, promovendo conscientização em uma experiência que uniu a elite cultural e o povo, através do samba.
A oferta foi aceita por Faleiro. O enredista recebeu carta branca para desenvolver o enredo e quatro grupo de compositores apresentaram sambas. O que a escola levará para a avenida foi escolhido no dia 18 de outubro. Já falaremos dele.
Por enquanto, deixemos Andy falar das fantasias:
“Normalmente a gente faz uma reciclagem. Consegue contato com as escolas de samba de maior porte para pegar as que elas usaram em carnavais anteriores e reciclar. É claro que não vamos usar a mesma fantasia, mas vamos dar uma nova roupagem na hora de transportar os desenhos feitos no papel para a parte física” – revelou.
A esperança do enredistas e estar entre as quatro das 20 escolas, cujos desfiles ocorrem nos dias 20 e 21 de fevereiro de 2026, respectivamente sexta-feira e sábado, a partir das 18 horas. As duas vencedoras de cada desfile sobem para a série Prata. A Villa Rica terá cerca de 200 componentes na avenida, incluindo João Gabriel, neto do cantor e compositor maranhense.
Gabriel tem frequentado a quadra e colaborado na parte criativa do desfile, contando histórias e detalhes da vida do avô. O enredista acredita que outros parentes de João do Vale participarão da apresentação, a segunda de sábado.
Três versos para cada um
Com o apoio da São Clemente e da Acadêmicos da Rocinha, agremiações da zona sul do Rio de Janeiro, que disputam a série Prata, a Villa Rica escolheu o samba enredo entre quatro competidores. O campeão foi o time de oito compositores, liderados por Pato Roco. A letra que representara “O Poeta do Sertão: João do Vale” tem 28 linhas, uma média de 3,5 para cada participante.
No videoclipe feito pelos ganhadores aparecem fotos de diferentes etapas da vida do compositor maranhense. Veja e escute o samba abaixo:
(Termina na próxima semana)
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Nota de pé de página
[1] Enredista é um profissional do Carnaval que cria e desenvolve o enredo (o tema e a história) para o desfile de uma escola de samba, funcionando como um roteirista que fornece a base narrativa para o carnavalesco. Sua função é idealizar e estruturar a narrativa com começo, meio e fim, garantindo que a história seja clara e envolvente para o público e jurados. Resumindo, o enredista apresenta o tema que a escola irá desfilar. O carnavalesco traduz o tema em fantasias e alegorias. Nem toda escola tem enredista. Em algumas, o carnavalesco tem as duas funções.
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Legenda da foto principal: Desfile da Villa Rica este ano. Reprodução do Facebook
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Leia a série completa
Teste seu conhecimento sobre João do Vale A cidade de Pedreiras e as pedradas de João Prima Tereza, a companhia perfeita Abandono após a morte A maldição do carcará A onça mora no pé do lajeiro Uma bodega chamada João Lembranças carinhosas e aventuras
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.








