– Paulo Oliveira (Meus Sertões) e Thomas Bauer (CPT-BA e H-3000) –
Agronegócio estimula a grilagem de terras, o desmatamento e a violência contra comunidades rurais no Oeste da Bahia
Relatório produzido pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos [1], Amigos da Terra [2] e ActionAid [3] revela como empresas financeiras e do agronegócio especulam com terras agrícolas e estimulam destruição ambiental no Cerrado. A publicação “Especulação financeira e impactos socioambientais do agronegócio no Cerrado da Bahia” detalha casos de violação de direitos territoriais de comunidades rurais e impactos ambientais.
O estado da Bahia registra a maior taxa de desmatamento, principalmente, pela expansão de monocultivos de soja. O Cerrado abriga 5% da biodiversidade de espécies vegetais e animais do mundo e representa uma fonte crucial de água para todo o continente. A preservação do bioma é fundamental para evitar os efeitos da crise climática.

Os responsáveis pelo trabalho investigaram grilagem de terras, especulação financeira e destruição ambiental.
“O relatório mostra como as corporações financeiras ligadas ao agronegócio estão destruindo o Cerrado” – declarou Fabio Pitta, coordenador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
O levantamento se baseia na análise da atuação da Radar, empresa constituída a partir de um acordo firmado entre a Cosan S.A e o fundo de pensão norte-americano TIAA (Teachers Insurance Annuity Association), investidor, sócio e parceiro estratégico do conglomerado brasileiro.
A Radar foi uma das primeiras a atuar com especulação de terras no meio rural no Brasil. Outra empresa pesquisada foi a SLC, parceira da Radar Propriedades Agrícolas S.A. Ela é apresentada no site da Cosan como “referência em gestão de propriedades agrícolas (…) com alto potencial de valorização, compreendendo cerca de 306 mil hectares estrategicamente posicionados em oito estados brasileiros”.
Na Bahia, o levantamento ocorreu nas cidades de Formosa do Rio Preto e Correntina. O trabalho abrangeu a Radar, SLC Agrícola [4], SLC LandCo, a SLC-MIT, Bunge, Cargill, ADM, Mitsui & Co e AZL Grãos (uma joint venture entre Amaggi, Louis Dreyfus Company/LDC e a subsidiária brasileira do grupo japonês Zen-Noh Grain).
Para se ter uma ideia do avanço do agronegócio em terras do oeste baiano, segundo o IBGE, entre 2004 e 2022, a área de produção de soja pulou de 98.325 para 193.100 hectares, em Correntina; e de 95.266 para 427.500, em Formosa do Rio Preto. Um crescimento de 195% e 448%, respectivamente.
No relatório da Rede, Amigos da Terra e Action Aid constam recomendações para que as empresas abandonem as práticas destrutivas. Elas incluem a suspensão das operações especulativas em terras agrícolas, a paralisação definitiva do desmatamento no Cerrado, o respeito ao direito à terra das comunidades rurais e o pagamento de indenizações por grilagem e destruição ambiental.
“O agro é a principal causa da destruição de florestas no Sul Global. Empresas financeiras internacionais estimulam esta destruição. Isso significa grilagem e ecocídio” – disse Jeff Conant, da ONG Amigos da Terra.
GRILAGEM E DANOS
O Cerrado baiano é habitado tradicionalmente por comunidades rurais. Esse território virou alvo de grileiros a partir da década de 1960. Nos últimos anos, empresas do agronegócio se instalaram na região conhecida como Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), ampliando as consequências desastrosas.
A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos publica uma série de relatórios sobre os negócios de empresas nacionais e transnacionais, financeiras e imobiliárias agrícolas, localizadas na região de expansão da soja, desde 2011. Três das maiores comercializadoras de commodities estão instaladas na região: Bunge, Cargill e ADM.

A Cosan é um conglomerado que atua como uma holding de investimentos em empresas nos setores de energia, óleo e gás natural, lubrificantes, gestão de terras agrícolas, mineração e logística. Entre 2009 e 2010, ela foi incluída na lista de empresas que exploravam o trabalho análogo à escravidão em usinas de açúcar e álcool.
Fiscais do Ministério do Trabalho encontraram 42 trabalhadores em condições precárias, em Igarapava, São Paulo. O episódio causou a queda nas ações da empresa e suspensão de financiamentos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES).
A empresa conseguiu sair da “lista suja do trabalho escravo” ao obter uma liminar na justiça. Depois, fechou um acordo com o governo federal para aprimorar o sistema de fiscalização interna e se submeter a controles externos.
Em 2017, a Rumo Logística, do grupo Cosan, foi condenada por trabalho análogo à escravidão. Na primeira vez, pagou 15 milhões por danos morais coletivos, em função de obrigar motoristas de caminhão a trabalharem 34 horas seguidas, de acordo com o Ministério do Trabalho, em Campinas (SP).
A TIAA (Associação de Seguros para Professores da América) é uma organização de serviços financeiros, que oferece aposentadoria para funcionários da área acadêmica, científica, médica, cultural e governamental. Ela atende mais de 5 milhões de funcionários de 15 mil instituições. Tem investimentos de um trilhão de dólares em 50 países e é a 98ª maior empresa do EUA por receita.
O fundo de pensão, segundo dados de 2017, é a maior investidora global em agricultura, a segunda maior produtora de viníferas nos Estados Unidos e a terceira maior administradora de imóveis comerciais do mundo.
Em 19 de outubro de 2022, clientes da organização apresentaram queixa, baseados nos Princípios para o Investimento Responsável (PRI), apoiado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Eles solicitaram a retirada da TIAA da lista de investidores sustentáveis porque ela é uma das maiores investidoras em combustíveis fósseis e a quinta maior detentora de títulos de carvão do mundo. A PRI rejeitou a queixa.
IMPACTOS NO OESTE
A expansão do agronegócio no Cerrado, de acordo com o relatório, está associada à especulação com terras agrícolas, fomentadas pelas empresas financeiras transnacionais e firmas de comercialização articuladas com grileiros da região. Comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, geraizeiras e brejeiras têm sido as mais atingidas.
Relatos e boletins de ocorrência dão conta que os moradores são expulsos das áreas comuns e denunciaram casos de violência de fazendeiros que buscam tomar suas terras. A apropriação de terras pelo agronegócio está relacionada ao desmatamento, à contaminação por agrotóxicos, a ameaças e ataques contra a comunidades, usando pistoleiros e milicianos armados. O relatório chega a citar a matéria “Pistoleiros abrem fogo contra fecheiros e ferem três”, publicada em Meus Sertões, no dia 11 de abril de 2023.
Apesar de as informações terem sido confirmadas por várias fontes, o governo da Bahia concedeu outorgas de milhares de metros cúbicos de água para os fazendeiros do agronegócio através do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema). O órgão foi recentemente citado na operação Ceres do Ministério Público, que tornou réus oito pessoas que integravam um esquema de fraude em licenças ambientais no oeste baiano,
Além disso, a morosidade do estado em proteger o território das comunidades tradicionais contribui para a violação de direitos humanos e para a destruição ambiental.

O relatório cita o depoimento de Elisete (nome fictício por questões de segurança), da localidade de Brejão, em Formosa do Rio Preto. Segundo ela, fazendeiros se apropriam de terras e fontes de água para utilizar em pivôs de água e perfuração de poços. A ação diminui a vazão do rio Sapão, que abastece a comunidade. Além disso, rios menores secaram e o agrotóxico contamina as águas, plantas e alimentos cultivados pelos fecheiros.
Elisete e a mãe dela são artesãs e trabalham com buriti e capim dourado. Como consequência das ações predatórias secou boa parte do brejo, inutilizou árvores e as plantas utilizadas no trabalho delas. A trabalhadora rural conta ainda que em 2022 houve um grande desmatamento na região. E, no ano seguinte, a irrigação de soja, na Serra de Coaceral, em Formosa do Rio Preto, deixou o rio Sapão e Sassafrás turvo.
A família da agricultora sempre viveu ali. Há alguns anos, ela sofre ameaças de grileiros e empresas de agronegócio, que tentam usar o local como reserva legal. A legislação ambiental prevê que os imóveis rurais devem manter mata nativa equivalente a 35% da área das propriedades. O texto da lei, por pressão da bancada do agronegócio permite que a área preservada possa estar em qualquer outra propriedade, sem a necessidade de ser nas fazendas de soja, algodão e milho, onde a vegetação é totalmente desmatada. Daí o ataque aos fecheiros que mantém as áreas intactas há dois séculos .
Embora Elisete e os parentes tenham colocado um grupo de grileiros para correr, ela admite viver com medo constante porque mais de uma vez apareceram pessoas estranhas. Os pistoleiros disseram para ela ir embora porque a terra pertencia a eles. A trabalhadora rural, porém, permanece no local.
O relatório revela ainda que duas comunidades em Formosa do Rio Preto, Mato Grosso e São Marcelo, moradores também denunciam contaminação das águas, diminuição da vazão dos rios e ameaças (clique aqui para ver reportagem publicada em 2021, em Meus Sertões – “Posseiros pedem punição para fazendeiros após atentado em Formosa do Rio Preto) . Os dois locais foram atingidos pela grilagem feita pela Canabrava Agropecuária, cuja fazenda Santa Maria consta no Livro Branco da Grilagem do Incra (1999), com 139 mil hectares de terras devolutas tomadas de forma ilegal.
Fecheiros de Mato Grosso contam que a chapada, usada como área comum de pastoreio, foi invadida pela soja do agronegócio. Embora isso tenha causado a redução das áreas para as criações, as veredas também se transformaram em alvo de grilagem para várias fazendas interessadas em torná-las reservas legais.
A Canabrava tem sido acusada de contratar pistoleiros para expulsar as famílias das comunidades tradicionais. A ação impede o acesso aos chapadões, o que leva famílias de fecheiros a passar necessidade, de acordo com o documento divulgado.
Um dos moradores de Correntina explica com mais detalhes como se dá o impacto no modo de vida das comunidades tradicionais:
“Os Gerais são chapadões centrais. Nós chamamos o Cerrado de Gerais, que sempre foram espaço de liberdade e de economia comunitária. Correntina tinha mais de 150 mil cabeças de gado. Esse número caiu para 30 mil porque as comunidades perderam territórios para os grileiros e para o agronegócio”. Outra perda foi a produção de pequi, de buriti e de caju. Os animais nativos (tatu, cutia, paca, anta, veado, ema, porco do mato, capivara, onça) sumiram” – revelou.
Em Correntina, parcerias entre a SLC e Radar; e SLC e Mitsui (Xingu S.A) possuem reservas legais averbadas, de acordo com o relatório, sobre os Fechos Vereda da Felicidade e Capão do Modesto. Esse processo de ocupação de áreas preservadas pelos povos tradicionais é chamado de “grilagem verde”.
Enquanto isso, o desmatamento do Cerrado avança. A derrubada da vegetação na bacia do rio Corrente, entre 2001 e 2020 foi maior do que todo o estrago feito até o ano 2000, em função da expansão do monocultivo de commodities,
DESTRUIÇÃO
Em 2003, a destruição da vegetação nativa, divulgada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), chegou a 11.011 quilômetros quadrados, um aumento de 3% em relação ao ano anterior. Entre os 11 estados por onde o Cerrado se distribui, a região do Matopiba registrou 75% do total.
O INPE divulgou ainda que entre 2001 e 2020, foram derrubados 26.956,23 quilômetros quadrados de vegetação na Bahia. Em Correntina, a destruição atingiu 3.178,25 km² (12% do total); e em Formosa do Rio Preto, 5.565,14 km² (12% do total).
O relatório das ONGs ressalta que o desmatamento ocorreu graças a conivência do governo do estado. O fomento das derrubadas se deu através da concessão de licenças, sem se preocupar com os impactos socioambientais.
No oeste da Bahia, as grilagens de terra também estão associadas à apropriação de água. As chapadas, onde os territórios são tomados, são as principais áreas de recarga do aquífero Urucuia, um dos maiores do Brasil. Bilhões de litros d’água são captados diariamente pelo agronegócio em detrimento das comunidades ribeirinhas e camponesas. As licenças, mesmo que a água não seja captada, servem para valorizar as fazendas
Uma das outorgas investigadas pela Agência Pública de jornalismo investigativo foi concedida a Paulo Almeida Schmidt, que obteve autorização para captar 33,4 milhões de litros de água para a Fazenda Rio de Janeiro, em Barreiras. Paulo é o primeiro vice-presidente da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa). Ele arrendou dez mil hectares da propriedade a uma subsidiária da Radar.
Levando em conta que no Brasil uma pessoa utiliza 150 litros de água para atender as necessidades básicas de consumo e higiene, O volume previsto na outorga daria para abastecer uma cidade com cerca de 220 mil habitantes.
Outro beneficiado pelo licenciamento do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) foi o presidente da Abapa e conselheiro da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), Luiz Carlos Bergamaschi. A autorização concedida a ele permite a retirada de 44,7 milhões de litros de água para quatro fazendas em Correntina, uma delas, segundo os autores do relatório, sobreposta sobre o fecho de pasto Capão do Modesto.
MILÍCIAS RURAIS
Quanto à violência registrada contra as comunidades tradicionais, estão documentadas no relatório intimidações, tentativas de homicídio, destruição de cercas e ranchos, ameaças e fechamento de acessos. Os crimes são cometidos por “empresas de segurança, que atuam como milícias armadas”.

A pesquisa feita pelas ONGs cita a Estrela Guia, que atua em diversas cidades da região e tem como clientes a Cargill, o Condomínio Cachoeira do Estrondo (envolvida em casos de pistolagem em Formosa do Rio Preto), e a Bergamaschi Agro, suspeita de intimidar moradores do Capão do Modesto.
A denúncia engloba ainda graves impactos causados pelo uso indiscriminado de agrotóxicos. O veneno contamina rios, lençóis freáticos e mata animais diversos. Além disso, impregna nos alimentos e aumenta a incidência de graves doenças, inclusive o câncer.
O relatório conclui que as autoridades precisam garantir o direito à terra para os povos tradicionais e promover políticas de incentivo à agroecologia e à soberania alimentar.
Clique aqui para acessar o relatório na íntegra
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Notas de pé de página
[1] A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos foi criada em 1999 com o objetivo de articular organizações e movimentos sociais no Brasil para defender o direito à terra, alimentação, agroecologia, biodiversidade, justiça social e ambiental. Ela engloba cerca de 250 organizações, movimentos sociais e universidades.
[2] ONG que atua na área socioambiental, visando o desmatamento zero nos habitats naturais do Brasil.
[3] Fundada em 1972 no Reino Unido, a ActionAid é uma ONG internacional sediada atualmente na África do Sul. A organização trabalha por justiça social, equidade de gênero e étnico-racial e pelo fim da pobreza. Ela está presente em 75 países e alcança mais de 32 milhões de pessoas no mundo. A ONG se estabeleceu no Brasil em 1999. Ela atua em 2.400 comunidades de 13 estados em parceria com 18 iniciativas de educação antirracista, agroecologia e clima, direitos de mulheres e meninas, resposta humanitária e participação democrática.
[4] Fundada em 1977, a SLC Agrícola é uma das maiores produtoras de commodities agrícolas do país. Possui cerca de 733 mil hectares de área plantada em 23 unidades de produção localizadas em sete estados brasileiros, na região do Cerrado, e matriz em Porto Alegre (RS). Produz algodão, milho e soja e se dedica à criação de gado no modelo integração lavoura-pecuária (ILP). Também produz e comercializa sementes de soja e algodão sob a marca SLC Sementes. Fonte: https://www.slcagricola.com.br/quem-somos/ . Visto em 13/11/2025
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Legenda da foto principal: Fazenda desmatada para plantação de soja e algodão. Crédito: Thomas Bauer
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Jornalista, editor, professor e consultor, 63 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.








