A contradição de ter pertencido a uma célula do Partido Comunista e atuar ativamente em pastorais da Igreja Católica é explicada por falta de conhecimento sobre o que era comunismo e por não ter muitas opções para se ocupar em Paulo Afonso, no norte da Bahia, nos anos 1970.
Ivone Lisboa da Silva, 58 anos, responsável ao lado do padre Antônio Miglio por criar, implantar e tocar as associações de piscicultores ligadas à Diocese de Floresta, em Pernambuco, é uma espécie de mãezona para os trabalhadores. Uma mãe franca, transparente e impulsiva, que se permite fazer críticas, visando ajudar os outros. Mas nem sempre é compreendida.
Primeira filha de 13, Ivone nasceu em Paulo Afonso, no norte da Bahia, em uma família sem nenhuma influência política. O pai, José Celestino da Silva, “batia tijolo” antes de se empregar como peão na Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). Trabalhava na área de concreto e armação, construindo túneis para a instalação do maquinário de geração de energia. Nessa época, Paulo Afonso era área de segurança nacional e os salários eram baixos.
Apegada com o pai, que não fumava, não bebia, não jogava, mas era namorador – ou raparigueiro, no dizer de uma de suas irmãs -, Ivone conta que só havia paz quando a mãe paria. Quando ela engravidava, voltavam os namoros e as brigas. A quantidade de filhos ampliava as dificuldades. A família passou fome.
Em 1979, José Celestino deixou a Chesf e foi trabalhar em uma empresa que participava da construção de hidrelétricas. Como reconhecimento pela experiência, passou a ganhar mais e a morar na vila de funcionários. Na mesma época, Ivone começou a frequentar a igreja.
“Eu participava do grupo jovem. Tinha uma senhora do Sul que achava que a gente era incapaz de tudo e não aceitava nossas sugestões. Era uma briga danada. Um dia os jovens se rebelaram com isso e decidiram não entrar na igreja. Foi aí que conheci padre Antônio. Ele estava chegando no Brasil e nos conciliou com a coordenadora” – conta a especialista em associativismo.
Na vila, foram quatro anos de uma “vida de sonho”. José tinha um bom salário, havia transporte para levar e buscar os filhos na escola, boa alimentação e um clube com festa todos os sábados. O que Ivone não contava era com o fim das obras e as mudanças de planos do pai, que não quis seguir com a companhia para outra cidade.
Com o dinheiro da indenização, José Celestino comprou um caminhão e uma casa no bairro Tancredo Neves (BTN), antigo Mulungu, que estava em expansão, prestes a se tornar o maior da cidade.
“Nós chegamos e não havia água encanada. Tinha que pegar no chafariz. Não era longe, mas como a gente estava acostumado com a mordomia da vila, imagine o impacto!” – ressalta.
No novo bairro, Ivone procurou a igreja local e pediu para participar de algum grupo. Virou catequista e se engajou na campanha da fraternidade “Água para todos”. Paralelamente, foi criada a associação de moradores, uma das primeiras do país, incrementando as reivindicações pela construção de postos de saúde, redução de mortalidade infantil, mais transportes e passagens de ônibus mais baratas, dentre outras. A essa altura ela passou a fazer parte da associação e se integrou a uma célula do clandestino Partido Comunista Brasileiro, abrigada no antigo MDB.
“Eu era tão sem noção do que o partido queria que sugeri fazer uma festa no Natal. Só depois soube que o PC não comemorava a data. Os colegas percebiam meu desconhecimento, mas mudavam de assunto quando eu cometia essas gafes. Um dia fui conversar com eles e disse: ‘Mas o que vocês falam é tão parecido com o que Jesus Cristo fez e o que os evangelistas dizem’ – recorda.
decepção com a política
Com o fim da ditadura militar, o PCB conseguiu eleger o prefeito de Paulo Afonso. José Ivaldo de Brito Ferreira, ainda abrigado no MDB de Ulysses Guimarães, convidou Ivone Lisboa para ser uma espécie de subprefeita do BTN. Ela não só recusou, como se afastou do partido por não concordar com as nomeações feitas para cargos importantes a partir de alianças políticas, a seu ver, espúrias.
“Nosso sonho era mudar Paulo Afonso. Três meses depois da eleição veio a decepção. A maioria do secretariado foi formada por pessoas que nunca estiveram ao lado dos pobres nem dos trabalhadores. Quando fui chamada pelo prefeito, disse o que pensava e passei a ser vista como uma pessoa que atrapalhava” – conta.
Em uma época em que as indicações de trabalho no município eram feitas por políticos, a líder comunitária passou a ser evitada, mesmo tendo concluído o curso técnico de contabilidade. Quem lhe valeu foi padre italiano Mario Zanetta, que viria a ser bispo da diocese de Paulo Afonso. Conhecedor da eficiência da catequista e da dificuldade que ela enfrentava, o religioso ofereceu a vaga de arrecadadora de contribuições para a igreja
O trabalho, com carteira assinada, consistia em passar nos diferentes departamentos da Chesf para receber o dinheiro. Nessa missão sempre encontrava colegas que se formaram com ela e ouvia: “Êta Ivone, tu só conseguiste isso?”. A resposta era sempre a mesma: “Sim. E estou agradecendo a Deus”.
De arrecadadora, Ivone passou a ser tesoureira do grupo de artesanato das “viúvas de maridos vivos”, como ela chama as mulheres abandonadas pelos maridos que deixaram a cidade após a conclusão do complexo de hidrelétricas. Era um trabalho associativo informal, coordenado por padre Antônio Miglio.
A experiência, na qual acumulou o trabalho de organização e motivação, durou até 1994, quando Ivone Lisboa decidiu abrir um escritório de contabilidade. Cerca de 70% de seus clientes iniciais eram associações. Em seguida, foi chamada para ser contadora da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional da Bahia (CAR), órgão de fomento de projetos de inclusão e combate à pobreza, acumulando as duas atividades.
Por discordar da prestação de contas feitas por um engenheiro da Bahiapesca sobre a compra de uma geladeira que nunca foi entregue para uma associação, Ivone foi dispensada da CAR. Mal teve tempo de respirar, pois em 2002, padre Antônio a convidou para participar da implantação das aquiculturas de Jatobá. Apaixonada por associativismo e pensando que sua participação ficaria restrita a palestras, a ex-catequista topou na hora.
A responsabilidade e o envolvimento com o projeto foram aumentando. Ivone trabalhava no escritório até às 13 horas. Depois, pegava uma van, descia na estrada e caminhava quatro quilômetros até as primeiras associações. Passou a ficar de sexta-feira a domingo. Com o passar do tempo, começou a ir todos os dias à tarde e retornar ao próprio escritório na manhã seguinte. Quatro anos depois, quando o número de pisciculturas chegou a cinco, entregou a firma para uma amiga e abraçou de vez o projeto. A família achou que ela tinha enlouquecido.
Separada após um casamento que durou seis anos e decidida a mudar para Jatobá, resistiu à desaprovação de pais e irmãos. Eles não entendiam como ela abriria mão de um negócio que proporcionou a construção de um imóvel, no centro de Paulo Afonso, para se enfurnar no mato. O discurso era o mesmo dos jatobaenses que se opunham ao projeto bancado pela Diocese de Floresta.
“Diziam que eu e padre Antônio estávamos perdendo tempo e a diocese estava jogando dinheiro fora ao investir em pessoas que só sabiam correr atrás de bode na caatinga e criar galinha de capoeira” – conta Ivone.
Demorou, mas a família acabou entendendo que era aquilo que lhe deixava feliz.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.