Para moldar uma pinha esmaltada grande, uma das peças decorativas mais vendidas no Centro de Artesanato Arquiteto Wilson Campos Júnior, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, o artesão Severino Antônio de Lima, 57 anos, leva duas horas. A produção diária é de até quatro unidades por dia. No entanto, a pinha só ficará pronta para a venda após 15 dias de secagem, 12 horas no “forno de biscoito”, onde é aquecida a 1000 graus centígrados para adquirir durabilidade e impermeabilidade ao ser, e três dias no forno de esmalte para fixar a cor.
Severino, conhecido como Nena, apelido de infância, ganhou o reconhecimento do governo pernambucano em 2015. Em todo o estado, existem 64 mestres de ofício, mas no Cabo, centro de referência para trabalhos de cerâmica, só ele possui o título. Para chegar esse ponto precisou trabalhar muito e vencer uma série de dificuldades.
Mestre Nena nasceu no dia 15 de junho de 1964, no distrito de Vila das Mercês. Quando tinha cinco anos, o pai, caldeireiro da Usina de Cana de Açúcar Mercês, morreu. Com o falecimento de seu Manoel Serafim, o menino foi morar com os avós no bairro Mauriti, zona central do Cabo de Santo Agostinho e local de concentração de olarias.
A produção de cerâmica no Cabo remonta ao período colonial. Com o fim do período da cana de açúcar, as olarias deixaram de produzir apenas telhas e tijolos para as usinas e ganharam autonomia que se mantém até os dias atuais. Quando mudou para o Mauriti, Nena passou a ser vizinho de célebres artesãos, como os irmãos Celestino, o Celé, e Clebe José Mota. O movimento dos trabalhadores artesanais fascinou o garoto, que logo passou a fazer mandados para os donos de oficinas. Bastou crescer um pouco para se tornar ajudante. A ele cabia comprar tinta, rapar tijolos e colocar peças no forno.
No meio da adolescência produzia pequenas peças. Depois veio a fase mais cansativa: a produção de filtros de água. Eram cerca de 300 por dia. Trabalho árduo e pouco lucrativo. Somente aos 39 anos, ao se aproximar da equipe do laboratório de design O Imaginário, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) apostou na criatividade.
Os designers, pesquisadores de materiais, especialistas em marketing e facilitadores de acesso ao mercado atuavam na região, criando técnicas e recursos para dar sustentabilidade ao artesanato local. Nena foi um dos primeiros a abandonar a fabricação de filtros para se dedicar às peças figurativas, decorativas, gourmet (linha de louças para restaurantes) e grandes vasos para jardins. Além disso, aprendeu a agregar valor ao seu trabalho e ganhou projeção. Suas criações passaram a ser exportadas para Portugal e Estados Unidos.
Em 2018, o mestre foi tema de reportagem no programa “Mais Você”, na Rede Globo. A exposição da pinha esmaltada feita pela apresentadora Ana Maria Braga fez os pedidos dispararem e agregou valor ao objeto, até hoje um dos mais vendidos pelo centro de artesanato, onde atuam outros 15 ceramistas.
Atualmente, o segmento mais lucrativo é o gourmet, sendo que restaurantes do nordeste e do sudeste do país adquirem suas louças no centro de artesanato. Detalhe, Mestre Nena preserva a produção da famosa petisqueira criada por seu Celé.
Nesta entrevista para Meus Sertões, Mestre Nena fala sobre como se inspira para produzir uma nova peça, explica como precifica os produtos, revela estratégia para enfrentar a concorrência, lamenta a perda de companheiros e fala dos planos para formação de jovens artesãos.
Como o senhor iniciou no artesanato?
Minha família morava na Usina Mercês, na zona rural de Cabo de Santo Agostinho. Quando meu pai morreu, viemos para a casa de meus avós no Mauriti, bairro que concentrava a produção de cerâmica. Eu tinha cinco ou seis anos quando comecei a fazer mandado. Comprava tinta, rapava tijolo, carregava peça pro forno. De lá pra cá não saí mais da cerâmica.
Como o senhor aprendeu a fazer as peças de barro?
Eu comecei a fabricar mesmo foi com uns 15, 16 anos. Na época, a gente só fazia peça utilitária: filtro, pote, essas coisas. Em 2003, quando o pessoal de O Imaginário, laboratório de design da Universidade Federal de Pernambuco veio trabalhar conosco, comecei a diversificar, produzindo castiçais, luminárias e pinhas decorativas.
De que forma O Imaginário foi importante para o senhor?
Foi 100% importante. Quando a gente fabricava filtro, os artesãos vendiam o que produziam para os atravessadores. Eles pagavam pouco, não permitiam contato direto com os consumidores e eram as pessoas que mais lucravam. Foi o pessoal de O Imaginário que nos mostrou ser possível agregar valor ao nosso trabalho com novos designs e uma série de outras ações, como participar de feiras e negociar diretamente com o cliente final. Os intermediários foram afastados.
Eles nos ensinaram também que com a quantidade de barro usada na produção de um filtro de água dava para fazer cinco peças decorativas. O filtro era vendido por R$ 30 e os novos modelos rendiam R$ 250 por unidade. Assim, nosso faturamento passou a ser cerca de 40 vezes maior. Nosso trabalho foi valorizado e virou referência de arte popular no Brasil e no exterior. O Imaginário é nosso anjo da guarda
Como é a relação dos artesãos com decoradores, arquitetos e lojistas?
É muito boa. Tenho muito amigo cliente que é arquiteto, é designer. O decorador da Fenearte quando tem um problema me liga e pede para fazer algo. Às vezes, nem manda o desenho, ele me dá liberdade para criar
Com os lojistas também temos excelente relacionamento. Muitos nem vêm mais aqui, manda a foto das peças que já venderam e repetem o pedido. Dependendo da quantidade, nós damos descontos de até 20%.
O senhor atualmente também faz louças para restaurantes, a chamada linha gourmet?
Pronto, hoje o foco da gente é esse. Fornecemos peças para diversos restaurantes de São Paulo, Rio de Janeiro e de diversos estados do Nordeste. Aqui em Pernambuco, 90% dos restaurantes compravam as peças no sudeste do país e passaram a adquirir conosco. Uma peça que custa R$ 100 em São Paulo, sai por R$ 60 no Cabo. Além disso, o frete de lá para cá é muito caro.
Os designers da UFPE disseram que o senhor também recebe pedidos para produzir grandes vasos e peças para jardins?
É verdade. Para fazer uma peça de 1,60 metros de largura é preciso ter muito cuidado. Em uma queima são consumidos cerca de R$ 200 em energia. No forno só cabe uma. Se ela quebrar, você perde a tinta, a argila e desperdiça o custo energético. Fazer vasos muito grandes não dá muito futuro porque os riscos são enormes. Ainda assim, eu faço alguns bem complicados com um metro de altura e babadinhos do lado. Produzo duas peças por dia. Cada unidade custa R$ 1.200.
Existe algum catálogo dos seus produtos na internet?
Somos 16 artesãos no centro de artesanato. As peças de todos podem ser vistas nas páginas Cerâmica do Cabo e Mãos de Pernambuco, no Instagram e no Facebook.
O senhor disse que está concentrado na produção de artesanato gourmet. Isto quer dizer que não está produzindo para as linhas figurativa, decorativa e de peças para jardins?
Não. Eu sempre faço as outras também. É preciso manter a diversificação da produção. Nesse período de epidemia, por exemplo, os restaurantes ficaram fechados. Eles estão abrindo aos poucos. Nas últimas semanas, é que passaram a procurar os artesãos para se abastecer de pratos, travessas, copos, cumbucas e molheiras
Aqui em Pernambuco tem uma feira, a Fenearte, considerada a maior da América Latina. Então, é necessário apresentar produtos de todas as linhas. Nos 12 dias do evento fechamos negócios acima de R$ 100 mil para entrega durante o ano. Ela não foi realizada em 2020 por causa da pandemia, mas agora está prevista para ocorrer entre os dias 15 e 26 de setembro.
Quando o senhor ganhou o título de mestre?
Foi em 2015. O reconhecimento foi feito pelo governo de Pernambuco. Com ele aumenta a responsabilidade de ensinar a arte em argila para os jovens.
Existem muitos mestres no município de Cabo de Santo Agostinho?
Atualmente só tem eu. Participo desde 2016 da Alameda dos Mestres da Fenearte, com outros 63 artesãos de todo o estado. Muitos dos ceramistas do Cabo ficaram velhos e se aposentaram. Além disso, a cidade é bem próxima do complexo industrial de Suape, que oferece empregos em diversos setores. Com isso os jovens preferem buscar um emprego, com direito a salário fixo e plano de saúde, em vez de se dedicar ao artesanato, onde não há garantias e é preciso ser criativo para sobreviver.
Apesar de haver dificuldades para se manter como artesão, o senhor é uma prova de que isso é possível. Sua vida melhorou depois da opção por fazer arte diversa em vez de continuar fabricando apenas filtros?
Sai de água suja para vinho do melhor. Quando vendia meus produtos para atravessador, ele muitas vezes pagava com cheques para 30, 60 e 90 dias. Às vezes, não tinham fundos, o que me obrigava a trocar com agiotas e perder 20% do valor para poder pagar as minhas contas. Quando a atuação de O Imaginário fez com que eles se afastassem e passamos a gerir os negócios reformei minha casa, comprei um carro e passei a guardar dinheiro para uma emergência.
Com tamanha procura pelo trabalho do senhor e dos demais artesãos do centro, os prazos de entrega são sempre cumpridos?
Faz dois meses que entraram no galpão, destruíram o forno e arrancaram 40 metros de cabo de cobre. As entregas previstas atrasaram. A demanda aqui é grande e a gente não dá vencimento dos clientes quando ocorrem problemas.
O senhor trabalha sozinho ou tem outras pessoas que lhe ajudam?
Minha filha é responsável pela área de vendas e um dos meus irmãos trabalha comigo na argila. Além disso, a artesã Cristina, aqui do Centro de Artesanato, me ajuda a produzir algumas peças da pinha esmaltada.
Como vocês enfrentam a concorrência?
Para enfrentar os concorrentes a gente tem que ser muito capacitado. Quando uma de nossas peças faz sucesso e o povo copia, a gente já sai com outra novidade. É preciso ser criativo. O que não pode é concorrer no preço porque os outros fazem igual e cobram mais barato para ganhar a disputa. Se entrar nesse jogo, você quebra. Então a gente faz outros modelos e agrega valor.
Aqui tem uma cidade chamada Tracunhaém, conhecida como a cidade do barro. Enquanto a gente faz uma peça de R$ 250, eles fazem por R$ 80 reais. Só que aqui a gente não vende peça com tinta fria. Só com esmalte. E o que acontece? Criamos muito valor agregado. Você compra uma peça esmaltada e coloca na sala. Vai passar 100 anos e não sai a cor. Já a tinta a frio, o sol queima com o tempo e ela fica feia. Usamos tinta esmalte, mas a maioria não faz isso porque tudo é mais caro neste processo, incluindo o forno, a matéria-prima e o consumo de energia.
Já teve alguma vez que o senhor deixou de fazer uma peça porque a concorrência ficou desleal?
A gente fazia uns vasos de plantas para pendurar. Cada um custava R$ 40 e os concorrentes começaram a fazer por R$ 15. Paramos a fabricação porque a gente não tem condições de baixar o preço para concorrer com eles. Passamos a fazer outras coisas.
Como vocês definem o preço de uma peça?
O Imaginário assinou um contrato de patrocínio com a Petrobras em 2013 para passar dois anos aqui e criar soluções para tornar o nosso trabalho sustentável. Eles perceberam a necessidade de criar, com a parceria dos artesãos, o que nós chamamos de balança (*), que calcula o preço mínimo de venda a partir de todos os custos para produzir uma peça.
(*) Nota da redação – Segundo o engenheiro e especialista em mercados Tibério Tabosa, do laboratório de design na UFPE, os custos visíveis e ocultos da produção à entrega para o cliente final são levados em consideração pela calculadora de preços de produtos da cerâmica artesanal, na verdade um aplicativo programado com fórmulas matemáticas com a finalidade de sugerir o preço de venda. A esse valor pode ser acrescido uma margem de lucro em função do renome do ceramista.
Em relatório produzido, entre maio de 2017 e abril de 2018, Tabosa tomou como exemplo a pinha decorativa esmaltada produzida por Mestre Nena. Os custos de produção de cada peça foram detalhados da seguinte forma: extração do barro (R$ 0,66), beneficiamento (R$ 1,64), modelagem (R$ 28,70), queima de gás (R$ 18,23), esmaltação (R$ 7,98), queima elétrica (R$ 7,50), reserva de quebras (R$ 9,61), custos fixos gerenciais e administrativos (R$ 7,77).
Já as despesas de preparação para o mercado contabilizaram os valores despendidos com embalagem (R$ 4,00), distribuição (R$ 1,92), divulgação (R$ 0,39), operadora de cartão de crédito (R$ 3,92) e comissão de venda (R$ 4,90). Ou seja, a partir de quatro quilos de barro extraídos da jazida local até o consumidor final, a pinha teve o custo de R$ 97,22. Aliada à reputação e o reconhecimento do mestre, ela foi vendida por R$ 280 reais à época.
Os produtos que vêm de fora, da China, por exemplo, atrapalha vocês?
Não porque os produtos chineses são industriais e a gente trabalha com peças artesanais, que são sempre diferenciadas.
Qual a peça que o senhor mais gosta de fabricar?
Eu gosto de fazer sempre peças complicadas. A maioria dos artesãos quer fazer coisa simples, fácil e rápido. Eu gosto de complicada porque você agrega valor em cima dela.
Qual a origem do barro que vocês utilizam?
Nós tiramos o barro da jazida existente aqui com enxada. A gente gasta por ano cinco carradas por ano. Cada uma tem seis toneladas. A gente gasta 30 toneladas por ano.
De onde vem a inspiração para fazer uma peça?
A gente sempre tem inspiração. O litoral tem muitas praias que a gente frequenta. Nessas idas eu fico observando a natureza. Quando encontro algo diferenciado, eu crio um produto.
Pode dar exemplo de uma peça que o senhor criou assim?
Na praia, há mais de dez anos, ao ver os ouriços pretos, tive a inspiração para fazer a peça que chamei de estrela. Hoje chamam ela de coronavírus por causa dos diversos espinhos que existem saindo de uma esfera (risos). Eu posso dizer que depois da epidemia estão comprando muitos porque eles são decorativos e bonitos. A gente coloca uma lâmpada dentro e como as pontinhas são abertas, a luz sai por ali e embeleza o ambiente.
A titulação de mestre influenciou no seu trabalho?
Sim, mudou muita coisa. Recebi mais elogios e as minhas peças se valorizaram mais. Eu me sinto orgulhoso porque o Cabo (**) é uma cidade de 208 mil habitantes e eu sou o único mestre.
(**) Nota da redação – Cabo de Santo Agostinho fica na região metropolitana a 33 km de Recife. A localidade foi elevada à condição de cidade há 209 anos.
Existem dois fatos interessantes relacionados à região. O primeiro é que ela é conhecida como marco geológico mundial por ser o ponto exato da ruptura do imenso continente chamado de Gondwana, formado pelo o que é hoje a América do Sul e a África. Com a divisão, o Oceano Atlântico ficou entre eles.
Outro aspecto curioso é que o acidente geográfico homônimo ao município é considerado o local do descobrimento do Brasil. Ele teria sido avistado pelo navegador espanhol Vicente Pinzón, o primeiro a desembarcar no novo mundo três meses antes de Pedro Álvares Cabral. Nesta versão, foi Pernambuco e não a Bahia o local da chegada dos primeiros descobridores.
O senhor atua como formador de novos artesãos?
Aqui tem uns sete ou oito que aprenderam comigo e com o pessoal do centro de artesanato. Nós vamos procurar a prefeitura para apresentar um projeto de formação de artesãos nas escolas. Nosso objetivo é que eles se interessem pela profissão e mantenham essa atividade no futuro.
Eu soube que a prefeitura quer alterar algumas coisas no mercado. Que mudanças são essas?
O Centro de Artesanato foi construído para acabar com a poluição que existia no Mauriti, bairro que concentrava as oficinas dos antigos artesãos. Agora a prefeitura está querendo aumentar o nosso espaço, o que é bom, mas precisa ser discutido. Ampliar a área para o pessoal do barro pode criar um problema porque muita gente se aposentou e corre o risco de não ter ninguém para trabalhar, se não formarmos os jovens. Colocar outros segmentos na proximidade também não é ruim, mas é preciso ter condições.
Qual o segmento que querem implantar aí?
Todos. Esse terreno que a gente trabalha foi feito para o barro. Tem outros artesãos que estão reclamando porque a gente foi privilegiado. Eles querem aumentar a área daqui, mas não dão detalhes do projeto. A prefeitura não se comunica conosco. Colocar o pessoal da palha, pano, pedra e ferro juntos não chega a prejudicar. Agora botar comida em um centro de artesanato não combina.
O senhor acredita que há condições de unir segmentos diferentes?
É um caso que precisa ser muito debatido. É preciso levar em conta que estamos em um centro de artesanato de referência. O que acontecerá se for colocado a venda um filtro de duas velas por R$ 30 ao lado de uma peça menor que custa R$ 250? Haverá questionamentos? Elas vão desvalorizar nossas peças?
Como o centro de artesanato está funcionando atualmente?
Recentemente, com a reabertura gradual do comércio, passamos a funcionar de oito horas da manhã às nove horas da noite nos dias de semana e de oito horas às cinco da tarde nos finais de semana. O funcionamento está atrelado a taxa de ocupada das UTIs dos hospitais. Quando chega a 90% fecha tudo. Eu perdi três amigos de Tracunhaém e um bocado deles no Cabo para a covid-19. Eu já tomei a primeira dose da vacina. Vou esperar a segunda em agosto.
Como proceder para encomendar uma peça feita pelo senhor?
Basta entrar em contato com minha filha Dayse pelo zap (81) 8558-6386
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.