Paulo Oliveira e Thomas Bauer (CPT-BA/H3000)
No dia 17 de setembro de 2022, na véspera da romaria Missão da Terra, o padre Luís Tonetto recebeu a equipe da parceria Meus Sertões/CPT-BA, no salão da casa do bispo de Senhor do Bonfim (BA). Inicialmente, a proposta era fazer uma entrevista que servisse de documentação sobre a trajetória do religioso, aproveitando a tranquilidade da tarde de sábado.
A conversa durou duas horas. O padre falou desde como foi parar no seminário, em Veneza, Itália, até sua atuação em paróquias da diocese de Bonfim, no Brasil, onde chegou com 26 anos.
Aqui Luigi Tonetto virou, simplesmente, padre Luís e se dedicou à luta em favor dos mais pobres. O lema de sua ação pastoral foi retirado da Bíblia, do livro do Êxodo: “Eu vi a miséria do meu povo” e identificava seu espírito missionário.
Por 13 anos, segundo nota de pesar e solidariedade divulgada pela CPT, o religioso trabalhou em Jaguarari. Além de 10 anos, em Igara, e 15, em Caém, onde foi o primeiro pároco. Sua última passagem foi por Nordestina, entre dezembro de 2016 e janeiro de 2021, quando se afastou por problemas de saúde.
O sacerdote costumava dizer que aprendeu a ser padre com o povo. No início de sua missão, se destacou por construir igrejas, centros comunitários, casas de farinha, cisternas, escolas e obras sociais nas comunidades. No entanto, os primeiros conflitos de terra, que resultavam na tomada da área ocupada por trabalhadores rurais, o fizeram aderir à luta do campesinato.
Em 1979, ele se engajou na Comissão Pastoral da Terra e ajudou a organizar a Missão da Terra, romaria que fazia o povo refletir sobre seus direitos e reivindicá-los. Foi também um dos responsáveis pela formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), associações e sindicatos.
Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, a equipe da CPT Senhor do Bonfim fez uma reunião virtual para comemorar os 55 anos de vida sacerdotal de padre Luís. Humildemente, ele disse que não era digno de receber tantos elogios e destacou que seu trabalho foi realizado em comunhão com muitas outras pessoas, que compartilharam o sonho de libertação dos trabalhadores e trabalhadoras, de vida digna e conquistas.
Gostaria que o senhor dissesse como foi a sua infância na Itália? De onde veio a inspiração para ser padre?
Bom, eu posso dizer que a minha vocação para ser padre era mais de meu pai e de minha mãe. Foram eles que me perguntaram se eu queria ir para o seminário. E eu perguntei se era coisa boa para mim. Aí então entraram em contato com o pároco, que também era um dos que estava torcendo para eu ir para o seminário. Três meses depois eu estava lá. Outros três meses se passaram e me mandaram embora porque era bastante cru. Eu uso esta expressão porque era muito rude. Mas com o reitor do seminário e outro padre me defendendo, eu voltei para o seminário e fiz o percurso normal: a escola média, o liceu, depois os cursos de teologia e filosofia. Durante o curso de filosofia, nós sempre éramos visitados pelos missionários. Ouvindo-os, passei a me perguntar se poderia ir para as missões. Então falei com o reitor do seminário, usei até esta expressão: “Tem um passarinho que me sugere ir para as missões. O que o senhor acha?”.
Como o senhor conseguiu atingir seu objetivo?
Falamos em um primeiro momento, depois em um segundo momento, de novo, insistimos. Eu sabia que tinha outro colega, da mesma sala, que também tinha o mesmo desejo. Foi passando o ano, terminei filosofia, entrei na teologia. No segundo ano, durante as férias, fomos nos encontrar com o bispo patriarca de Veneza. A conversa foi curta. “O senhor já deve saber que a gente está querendo ir para a América Latina, terminar o curso de Teologia, se ordenar e ficar lá?”. Eu não vou dizer o que ele disse (ri). Voltamos para o nosso seminário, terminamos o curso e nos ordenamos. Eu fiquei mais um ano na diocese de Veneza. Nessa época (outubro de 1962), estava sendo realizado o Concílio Vaticano II. E parece que os bispos aproveitaram para solicitar padres. É interessante que o bispo de Veneza (Angelo Giuseppe Roncalli) foi eleito papa e adotou o nome de João XXIII (23). Foi ele quem convocou essa assembleia de bispos e deu um clamor para toda a Igreja da Europa poder atender as necessidades da América Latina e África.
Quando o senhor veio para o Brasil?
Quando me ordenei em 1965, fui designado para uma paróquia lá da Itália. O vigário de lá era meu amigo e de minha família. Após um ano de trabalho eu e mais 20 colegas viemos de navio para o Brasil. Éramos todos do mesmo seminário, mais ou menos com o mesmo tempo de ordenação, mas de dioceses diferentes. Eu cheguei em Senhor do Bonfim, em 1966. Fui me apresentar ao bispo com outros dois padres, Carlos Gabanelli, que seria pároco em Queimadas, e Sandro Vespasiani, de Itiúba. O padre não estava. Quem nos recebeu foi o vigário geral. Ele telefonou para o seminário aonde nós iríamos nos hospedar. Eu me lembro bem a expressão que ele usou: “Olha Tavares, chegaram aqui Cosme e Damião”. Era justamente o dia desses santos. Eu nunca esqueço esse particular, acho que é bem significativo. Foi assim que comecei a trabalhar na diocese de Dom Antônio Mendonça Monteiro.
O senhor chegou e já era ditadura militar aqui no Brasil…
Sim. Tem razão. Mas eu não sei se eu sabia disso (rir). Mas eu acho que a gente acompanhava as notícias daqui. Era sempre muito informado. Nós tínhamos um professor de geografia, mas ele falava de política. Dava até notícia do mundo em que a gente vivia, falava do povo. O interessante é que quando a gente começou a andar por esse Brasil, vimos que o nosso professor não foi honesto. A situação era bem pior daquilo que ele desenhava.
MISSÃO DA TERRA
O seu lema de sua ação pastoral é “Eu vi a miséria do meu povo”. O senhor viu o sofrimento do povo logo que chegou?
Quando você chega assim, é como uma constatação. Talvez não lhe toque tanto quanto o que vai acontecendo depois e devido às opções que a gente faz na vida. E eu estive aqui em Senhor do Bonfim um pouco menos de três anos, entre 1966 e 1968. No último ano, eu ajudava na paróquia e tinha me tornado muito amigo do vigário, o monsenhor José Lourenço. Existiam capelas onde eram celebradas missas e estava começando a catequese.
Uma curiosidade: quando eu ainda estava na Itália e soube que viria para Senhor do Bonfim, escrevi uma cartinha para o bispo perguntando que tipo de trabalho é que a gente poderia fazer na diocese dele. A resposta, em duas linhas, foi: “Catequese, catequese, catequese, catequese, catequese e catequese e catequese”. Esse era o elemento mais importante e necessário para desenvolver e realizar, segundo ele.
De Senhor do Bonfim, eu fui para Jaguarari porque o bispo de lá tinha pedido a transferência do padre para Paulo Afonso e a paróquia ficou vaga. Foi quando, no início da quaresma de 1968, fiz o juramento e peguei o trem para ir para a nova cidade, a 25 quilômetros de distância. Quando cheguei, disse para o povo que não ia ter posse de padre porque o bispo não foi. “Ele me mandou aqui para servir esta paróquia, se vocês me aceitarem”, acrescentei. E foi assim que entrei na paróquia de Jaguarari. No começo, eu me dividia entre a paróquia e Senhor do Bonfim, porque nós tínhamos o seminário com uns 40 seminaristas novos. Eu ajudava a ensiná-los, mas um dia decidi que não dava para ficar andando para cima e para baixo. Eu mal fazia o serviço do seminário e pior ainda na paróquia. Então me mudei para Jaguarari. Arranjaram uma casa paroquial, onde me instalei e fiquei servindo.
O senhor é conhecido por todo lugar que o senhor passou por colocar mãos à obra e construir colégios, casas paroquiais. Como o senhor começou a empreender?
A parte mais empreendedora, ligada sobretudo às comunidades, era justamente o trabalho de base. Eu tinha o costume de ir para uma comunidade ou para uma igreja para conversar sobre a vida do povo. Eu sou filho de agricultor. Jaguarari é um município totalmente agrícola. Então era o meu campo. Nesse tempo começam as histórias. A primeira construção que entrei foi uma escola que tinha sido iniciada por meu colega. E eu concluí a obra, na comunidade Gameleira. Um pouco depois foi a vez de um colégio.
Como isso aconteceu?
O prefeito de Jaguarari entrou em contato com um casal de professores de Senhor do Bonfim, que assumiu o trabalho de ensinar as crianças. As aulas eram dadas nas escolas primárias da prefeitura. Foi então que pensamos em construir um colégio maior na cidade. Embora eu sempre tenha trabalhado em instituições de ensino, como, por exemplo, o Elisabete Queiroz, em Senhor do Bonfim, o de Jaguarari foi o único que construí. No seminário também construí uma porção de coisas.
Aí, as comunidades começaram a exigir mais presença. Então chamamos mais irmãos para que viessem ajudar. Dessa vez, não construí nada, comprei a escola. Na verdade, comprei a Casa das Irmãs. Como não tinha espaço suficiente, fizemos um centro social, um auditório e, durante um tempo muito longo, a gente fez funcionar um cinema.
Deixa aproveitar o gancho, quando você fala das comunidades daquela época já eram comunidades eclesiais de base? Que tipo de comunidade que o senhor encontrava quando chegava para conversar com as pessoas?
Bom. É, eu acho que o interesse das comunidades sobre o social, vieram à medida que a gente tomou conhecimento das problemáticas. Uma das primeiras em que trabalhei o problema era energia elétrica. A rede de Paulo Afonso estava sendo ampliada para Senhor do Bonfim, passando pelas roças do povo, que começaram a ser destruídas. Começamos a fazer protestos. A gente juntava o povo. Conversava. Que tipo de comportamento que devemos ter? Teve um momento que foi necessário parar as máquinas. E nesse sentido, foi um senhor que parou as máquinas sozinho. Então, esse foi o primeiro problema que enfrentamos. Depois foi a vez de enfrentarmos a questão dos geradores de energia que mal serviam à população. Eles só eram ligados à noite para a realização da missa, por exemplo.
E as questões de terras?
Depois que implantamos a catequese, o culto dominical, a fazer textos reflexivos nas celebrações, a comunidade começou a ter noção de seus direitos. Quando a escola de Jaguarari ficou pronta, o povo começou a reivindicar transporte escolar até conseguir a vitória. Começamos então a falar da invasão de terras que estavam sendo feitas para a instalação das linhas de energia. Elas tinham 40, 80 metros de largura. Quer dizer, ocupavam uma roça inteira. Nas reuniões que fazíamos, acreditava-se que não podíamos impedir que isso acontecesse, mas que os trabalhadores rurais não fossem os únicos a pagarem por todo mundo. Analisando a questão, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Senhor do Bonfim, por meio de um senhor chamado Tito, sugeriu que lutássemos por indenizações. Ao mesmo tempo, eu conversava com as comunidades de Jaguarari sobre essa luta.
Como surgiu a Missão da Terra?
A Missão da Terra veio após pequenas vitórias. Construímos parte da quadra de esportes do Colégio de Jaguarari com a ajuda dos alunos, com quem fui catar pedras nos seixos dos rios. Ações como esta marcam e tornam o colégio amado pelos estudantes e professores. Eu fui diretor dele durante anos. Tive até que fazer faculdade para ganhar o diploma de filosofia da Universidade Católica do Recife. Em seguida, pedi para me darem o direito de ensinar história humana. Eu passei 13 anos em Jaguarari. Além de atuar na área de educação, dei consistência para que as comunidades funcionassem, para que tivessem catequese até chegar à primeira eucaristia
E nesse tempo, como era o seu deslocamento com todas essas atividades?
Eu andava de trem no início. Logo em seguida, comprei um carro, um fusca. E aí foi a minha salvação. Eu chegava até em lugares que o pessoal não queria ir. Fiquei atolado muitas vezes. Em uma delas a mãe do prefeito estava comigo. Quando cheguei na Gameleira era dia da feira. Estava cheio de gente e eu todo enlameado (ri). O prefeito estava lá e eu contei a história. No dia seguinte, a patrol foi acabar com o atoleiro. Assim que é bom. A gente fica contente de servir ao povo porque a gente gosta dele.
E quais foram as cenas mais marcantes que fizeram florescer ainda mais este amor pelo povo?
Foi quando começaram os problemas da terra. Eles começaram em um local chamado Flamengo. Um cabra daqui disse que a terra, um determinado trecho era dele, e começou a construir fornos para fazer carvão. Ele queria fazer cerca e não sei o que lá. Eu era pároco de Senhor do Bonfim, mas ainda continuava servindo em Jaguarari. Um dia, voltando para uma das missas lá na Caraíba Metais, parei no Flamengo, onde algumas pessoas me disseram que o homem construiu e andava dizendo que tinha uma escritura de terra. Eu me perguntei mais como ele podia ter uma estrutura da terra? Eles não me disseram de onde era o documento
No dia seguinte, chamei todo mundo para uma reunião à noite na escola. Não tinha energia elétrica lá. Foi no escuro mesmo que a gente fez a reunião. Expliquei para eles que esta escritura que ele tem, com certeza é uma escritura inválida. Que não poderia ser feita aqui. Este foi o raciocínio que fiz, porque a terra que ele estava querendo ocupar, cercar, pertencia em parte à família dos Gonçalves, que eram donos do escritório daqui de Bonfim. Jaguarari dependia daqui. Então, perguntei com devíamos proceder. Um velhinho disse que só tinha uma coisa a ser feita: derrubar os fornos. Quando ele falou isso, ninguém controlou mais ninguém. Todo mundo saiu às carreiras. Eles percorreram dois e meio, três quilômetros até o local. Eu segui de carro, com um rapaz que trabalhava comigo. Cheguei e vi que eles estavam batendo em cima dos fornos e não conseguiam derrubar.
O rapaz que estava comigo disse que não era daquele jeito que se derrubava forno, que era preciso bater com a marreta embaixo. Em dois minutos estava tudo no chão. Depois disso, nos reunimos na praça do Flamengo. Eu disse para o povo que no ia ter a polícia lá e que todos deviam dizer que não sabiam quem fez aquilo. Dito e feito. Dias depois os policiais começaram a andar nas casas do povo de manhã, quando só ficam as mulheres em casa porque os homens iam trabalhar e as crianças iam para escola. Eles tentaram obter informações das mulheres, fazendo muitas ameaças. No domingo seguinte, Dom Jairo Rui Matos da Silva (1929-2007) denunciou a ação da polícia, dizendo que isso de meter medo não era correto por parte dos policiais. Nesse ínterim, eu e um dos donos da terra, que era vereador, fomos intimados para irmos à delegacia.
O que aconteceu depois?
Fizemos uma manifestação aqui em Senhor do Bonfim. Veio o povo todo daquela região. Encheu a catedral. Eu expliquei como as coisas estavam indo. Do lado de fora da igreja tinha um pelotão de policiais militares com armas pesadas na mão. Eles circundavam a igreja. Eu chamei o coronel, que conhecia. Quando ele soube que o povo queria ir comigo à delegacia, ele foi na igreja, ameaçando. Dizendo que não se responsabilizaria pelo que pudesse acontecer neste percurso de cerca de 300 metros. Nós fomos e o delegado não tinha elementos para recolher alguma culpa. Só que um irmão do tal vereador foi intimado para ir à Polícia Federal, em Salvador. Então a gente chamou o advogado. Nós tínhamos um advogado para as emergências, o Paulo Torres. Ele orientou o vereador a dizer que ele não conhecia ninguém. A Polícia Federal também não encontrou nenhum elemento para abrir um procedimento. Eu sei que essa história morreu assim.
E no decorrer de toda sua trajetória ao lado do povo o senhor foi chamado outras vezes para depor?
Não, não. Esta foi a única vez que fui chamado. Agora correr perigo, sim.
O senhor já foi ameaçado alguma vez?
Sim. Um homem disse: “Sabe que posso te matar?” Era outra questão, sucessiva a essa. Quase no mesmo tempo. Havia um grupo de famílias que, há mais ou menos 200 anos, praticamente, trabalhavam em determinado terreno. Essa área era chamada “Terra da Jabuticaba”, entre Jaguarari e Andorinha. E um fulano de Pernambuco disse que comprou ou sei lá como. Aí, ameaçou tomar a terra dos trabalhadores várias vezes. Insistiu anos e anos. Nesse tempo, o juiz daqui conseguiu ir à fonte dessa escritura e constatou que ela foi feita abusivamente, foi montada. Ele anulou a escritura e foi embora. A doutora que veio substituí-lo deu ganho de causa a esse homem que tinha a escritura. Certo dia, ele conseguiu um grupo de pistoleiros pernambucanos, 11 deles parece. Mas o povo era esperto. Um belo dia, durante o almoço, os trabalhadores rurais se juntaram e pegaram os pistoleiros e amarraram todos eles nos troncos das árvores. Ali eles ficaram. Passado um tempo, decidiram desamarrá-los e eles foram embora.
50 ANOS DE SACERDÓCIO
O caso acabou aí?
Não. No dia da festa de Santa Rosa, uma festa de mulheres e crianças, um dos pistoleiros atirou e matou um rapaz de 19, 20 anos. As mulheres pegaram o homem e o levaram para a polícia. Teve uma audiência preparada para soltar o pistoleiro, pelo menos é o que os servidores do fórum diziam. No dia do julgamento, veio um advogado defender o assassino. Ele e o promotor ficaram debatendo de manhã até à noite. O advogado dele batia na tecla que foi legítima defesa. O juiz deu a sentença, soltando o matador. Como o povo tinha comprado fogos para comemorar a prisão dele, teve que engolir tudo. Então são estas coisas que ajudam a gente se envolver, a acompanhar as histórias e ter sensibilidade. É claro, em um caso desses, que você não está defendendo uma coisa errada. Eu contei esse fato porque começou assim a história da luta pela terra aqui na região.
O que fez as disputas por terra aumentarem?
Quase toda a região é o que a gente chama de fundo de pasto. Uma terra que a gente pode dizer que não tem dono oficialmente. Mas os donos são sempre aqueles moradores que trabalham e lutam por ela. Conhece a terminologia do fundo de pasto? É uma área coletiva onde os pequenos criadores soltam os animais para que eles se alimentem. Por causa disso, começaram a surgir problemas. Havia uma política aqui, orientada por grandes fazendeiros de outras regiões, de Mairi, de Rui Barbosa, de Riachão do Jacuípe, de Feira de Santana, principalmente. Então começou a invasão. Eles procuravam o cartório do município e conseguiam uma escritura com toda a facilidade.
Perto do caso da Jabuticaba, o povo não fez ocupação. A terra era deles desde sempre, só que eles não tiveram necessidade de oficializar a propriedade. Mas a terra era deles porque sempre foi trabalhada e o fundo de pasto, usado para criatório bovino e caprino, principalmente. O povo vive disso. Semanalmente muitas vezes, ou de tanto em tanto, sei lá, matavam as reses ou uma cabra, uma ovelha, e vendiam. A lavoura era pouca. No entanto, a maioria das casas tinha uma relativamente perto.
O senhor encontrou problemas semelhantes em todas as dioceses, em todas as paróquias que o senhor passou?
Em Monte Santo nós fizemos uma primeira intervenção. Foi no Desterro. Lá teve tiro também. Uma vez eu fui lá para dar um apoio ao povo e celebrar missa. Não era a minha paróquia, mas pedi ao pároco de lá licença para celebrar. Eu me lembro que entrei em uma casa com um muro com buracos. Inocente, perguntei o que era aquilo e não queriam dizer. Insisti e me disseram que ali houve um tiroteio provocado por pistoleiros contratados para intimidar. Por causa disso, mais tarde veio a história da Missão da Terra, que surgiu como um grupo de defesa da terra.
Naquela época tinha a romaria de Monte Santo. Tem o santuário de Santa Cruz em cima da serra. E lá começamos a Missão da Terra para encorajar, animar o povo a defender a terra. A gente ia para lá entre os dias 31 de outubro e 1º de novembro, nos dias da festa para pedir a Deus para justamente se fazer esta caminhada. Na época, se andava muito em caminhões. Não me lembro direito em qual ano (em 2022 foi realizada a 43ª Missão da Terra, em Senhor do Bonfim). A primeira e a segunda foram em Monte Santo. Acontece que percebemos que ali não era lugar para se fazer isso porque era explorada pelos políticos. Era um ano de eleição e os políticos fizeram comício durante a celebração do nosso encontro. Decidimos fazer a Missão da Terra em um local mais seguro, que chamasse mais atenção. E fomos para este local, o Desterro. Depois começamos a andar nas cidades para envolver mais as pessoas. A primeira foi em Jacobina.
Quais as principais características da Missão da Terra?
Na Missão da Terra é praticamente o povo que fala, que faz denúncias, que coloca seus problemas e que conclama para a gente se unir cada vez mais.
Em que outras áreas o senhor atuou?
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais, naquela época, era controlado pelos médicos ou por um político. Então era preciso capacitar os trabalhadores para que eles assumissem os sindicatos e defendessem seus direitos. Eu me lembro que Dom Jairo fez um trabalho excepcional para tirar os médicos da presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.
Os médicos eram presidentes porque muitos deles eram donos de terras e controlavam tudo.
Com certeza, assim, os sindicatos não pertenciam aos trabalhadores. Ainda sobre Dom Jairo, ele, no caso da Jaboticaba, foi intimado pela juíza que deu ganho de causa ao fazendeiro. Eu e um padre de Jaguarari o acompanhamos, mas não nos deixaram entrar na sala da audiência. Dom Jairo falou o tempo todo e ela chorou muito. Parece que o caso morreu aí. Ele estava sempre presente nas dificuldades, sobretudo nas dos trabalhadores rurais.
Mais uma coisa sobre o bispo: ele foi para a Conferência Geral dos Bispos em Puebla, no México, da qual participou João Paulo II. Foi lá que o papa disse a frase [1]: “Vocês estão num continente dominada por rico cada vez mais ricos e os pobres são cada vez mais pobres. Essa frase é histórica. Dom Jairo nunca me disse, mas é uma dedução minha: aqui na diocese os mais pobres são os agricultores, os lavradores. É deles que temos que cuidar. Eu creio que a CPT tem a ver com isso. Então eu entrei nessa história justamente com esses trabalhadores.
Até que ponto o fato de o senhor ser de uma família de lavradores influenciou nisso?
Eu tinha uma tendência porque sou filho de agricultor. A minha vocação surgiu em um dia no mês de agosto quando eu estava trabalhando na limpeza nos caminhos das videiras com meu pai. Eu tinha 11 anos e estava com a enxada na mão, nós dois estávamos. E aí ele parou e faz esta pergunta, sem delonga, sem preparação: “Você quer ir para o seminário? Eu sabia o que era seminário porque o meu irmão que já tinha ido para lá 10 anos antes de mim. O mesmo padre que me mandou embora uma vez, a um certo ponto que eu estava com a vocação missionária, me chamou e disse: “Você e o Zé Massato, vocês são da raiz, vocês têm a vocação da raiz”. Assim mesmo.
O senhor se recorda de outro episódio que resultou na primeira Missão da Terra?
Em Monte Santo, na época do (padre) Enoque, deu problema sério. Virou caso de polícia porque nós tínhamos feito, não uma brincadeira (ri), mas a luta por um direito. O prefeito tinha se apoderado da creche da paróquia. Tomou conta impediu que a creche, que também era lugar de hospedagem para os romeiros que iam para Monte Santo. Em uma noite, a gente se preparou para retirar as mesinhas que ele colocou na creche. Fizemos uma procissão, por volta das 19 horas. A procissão começava na creche. Entramos e cada um pegou uma mesinha, botou na cabeça e saiu pela rua cantando “Bendita, louvada seja, no Céu a divina luz [2] (ri)…” E assim colocaram as mesas no hotel onde o prefeito estava hospedado. A polícia interveio. Algumas pessoas furaram os pneus de quase todas as patrulhas. O padre Enoque, que era assim, como se pode dizer, meio agitado no sentido de se expor. Ele subiu em um carro e começou a discursar. Pegamos o padre e tivemos que ajeitar como a gente ia pernoitar. Foi uma noite triste.
O que mudou da primeira para a 43ª Missão da Terra?
A Missão da Terra é para ficar para eternidade no sentido que o povo fica esperando esse momento. Agora nós temos dificuldade com alguns padres que não aceitam isso daí. Isso tem em todo o mundo. Mas o povo vai para a Missão da Terra. A gente elabora um material, com base nos cultos que a gente faz nos três domingos que antecedem a Missão da Terra. A da Missão da Terra tem um lema tirado da Bíblia. Acho que se cria toda uma expectativa porque a CPT tem acesso praticamente a meio mundo da diocese. Em quase todo município tem trabalho acompanhado ao nível de encontro, reuniões, organizações. Por exemplo, desse povo que a gente trabalha nas comunidades, a gente constituiu uma escola (na verdade, o curso) Liderar. Hoje mesmo está tendo um encontro de jovens que participaram dessa escola. São rapazes de seus 18/20 anos por aí. Essas pessoas estão espalhadas. Esse Liderar existe há 20 anos e queremos que continue. Só que precisa sempre fazer funcionar porque ele é dispendioso. O pessoal da CPT é quem encaminha a romaria. Fazemos reuniões sobre isso para que os agricultores ajudem a conduzir a Missão da Terra.
Como foi a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT)?
Nós criamos a CPT. Ela foi formada por pessoas que trabalhavam sem salários, voluntários. Não sei nem como a gente pagava o advogado que por vezes prestava serviço. De todo modo nasce a CPT e com ela nasce também a Missão da Terra. Mais ou menos no mesmo tempo. Eu não me lembro qual foi o percurso inicial. Sei apenas que tinham padres que estavam torcendo, querendo isso. Começamos assim trabalhando nos casos de luta pela terra. E olha que foram muitos porque os fundos de pasto, com áreas abertas, sem recinto, sem nada, nos fizeram a defender os territórios dos trabalhadores a defenderem. Acredito que o caso de Flamengo que foi o primeiro, mas tinha problemas sérios em Jacobina. Nessa época, existia uma organização de fazendeiros que tinha o nome…
…UDR (União Democrática dos Ruralistas)
Justamente. Lembro que o lugar de encontro que eles tinham era lá em Itiúba. Em Itiúba, nós tínhamos uma freira que era também da CPT. A UDR fez miséria aqui na nossa região. Jacobina, no começo, talvez tenha sido o lugar mais prejudicado. Porque lá o padre teve problemas sérios: não somente ameaças. Uma vez pegaram um rapaz e quase deixaram ele morto. Depois ele se desterrou, foi embora. Não tem região que não tenha isso, porque o fundo de pasto é espalhado no território de toda a diocese. Em Jacobina o mesmo, áreas imensas, tomadas dos lavradores e agregada às propriedades dos latifundiários.
Quando o senhor compara o Brasil de quando chegou aqui e o de hoje, o que o senhor vê?
Eu não tenho entendimento de muito Brasil, a não ser esse aqui onde eu vivo e me relaciono. A CPT não é lugar único. Tem em Juazeiro, tem mais nove ou dez representações da CPT aqui na Bahia. Tem a organização regional e tem também a organização nacional. Eu tenho relacionamento com todas essas instâncias. Eu penso assim que pelo menos os lavradores acordaram no sentido de que isso aqui é coisa nossa, isso aqui se trata de nós, da nossa vida. Eles estão por dentro de acompanhar, defender a terra. Você sabe que aqui na diocese tem 20 ou 21 pessoas mortas devido à luta por terra. A partir do advogado que foi assassinado por pessoas daqui. Em lugares como Monte Santo já não sei quantos foram. Três só de uma vez. Nós vamos lembrar isso na caminhada da Missão da Terra, amanhã. A gente vai falar sobre os que morreram. Vai cantar uma ladainha com os nomes deles e todo mundo vai dizer presente. Bom, eu penso que não é o Brasil de quando eu cheguei. E que não é que a gente tivesse toda essa disposição de falar. À medida que os problemas foram surgindo, a gente começou a defender o povo, os trabalhadores rurais. E a gente cresceu com isso.
Qual a avaliação que o senhor faz de sua trajetória? O senhor considera sua missão cumprida?
O importante é o comportamento que a gente tem. E eu acredito que também por causa do povo eu me sinto em casa.Vou continuar até o final fazendo a missão da terra ou qualquer outra coisa que for preciso para poder fazer com que o Reino de Deus possa avançar.
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Notas de pé de página
[1] Na abertura da conferência, o papa João Paulo II disse no discurso de abertura, em Puebla de Los Angeles, em 28 de janeiro de 1979: “Quando Paulo VI declarava que o desenvolvimento é o novo nome da paz, tinha presentes todos os laços de interdependência que existem não só dentro das nações, mas também fora delas, em nível mundial. Levava em consideração os mecanismos que, por encontrar-se impregnados não de autêntico humanismo, mas de materialismo, produzem em nível internacional ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres.”
[2] Música cantada nas missas.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.