Capítulo 3 – final: Padre Manuel Lira Parente –
No dia 13 de setembro de 2015, a notícia da morte do sacerdote, por falência múltipla dos órgãos, em um hospital particular, em Teresina, no Piauí, se espalhou rapidamente como queimada na caatinga seca. Aos 96 anos, chegou ao fim a missão do sacerdote que semeou projetos sociais em uma das áreas mais pobres do estado. Ele também foi prefeito de duas cidades por quatro mandatos, suplente de senador e tentou fazer o filho seguir seus passos.
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A prefeitura de Dom Inocêncio decretou feriado e a de São Lourenço do Piauí suspendeu as aulas para que a população pudesse acompanhar o sepultamento na Igreja Matriz de São Raimundo Nonato, onde estão os restos mortais do co–fundador da Fundação Ruralista. A instituição implantou um método de ensino que praticamente zerou o analfabetismo e proporcionou melhoria da renda da população, a partir de meados da década de 1960.
Em São Raimundo e na antiga Curral Novo, povoado que originou o município administrado três vezes pelo religioso, foram decretados três e sete dias de luto, respectivamente. Os restos mortais do padre, que atuou na região mais árida do semiárido piauiense, está a cerca de 10 metros do túmulo do bispo espanhol Dom Inocêncio Lopez Santamaria, cujo título e nome serviram para batizar a cidade onde Lira reinou.
Inocêncio Lopez, mestre-geral da Ordem Mercedária [1], pretendia abrir uma missão na China quando recebeu do papa Bento XV a incumbência de encontrar missionários para a prelazia de Bom Jesus da Gurgueia, tarefa aceita em 1922. Posteriormente, Dom Inocêncio se tornou bispo e assumiu o prelado piauiense, mas a entrada dele no Brasil foi negada, oito anos depois, devido à Revolução de 1930 [2].
Graças à intercessão do arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme, Inocêncio apeou do cavalo no Piauí, em janeiro do ano seguinte, após viajar 12 dias, cruzando a Bahia. A precariedade de acessos não permitiu sua chegada em Bom Jesus, por isso, ele tomou posse em São Raimundo Nonato, a 340 quilômetros de distância. E de lá comandou a prelazia por 27 anos. São Raimundo, tempos depois [3] foi desmembrada de Bom Jesus e se transformou em bispado.
Túmulos
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Além de incentivar e ordenar padres locais – dentre eles Manuel Lira -, o religioso espanhol foi fundador da Congregação das Irmãs Mercedárias Missionárias no Brasil (1938), se destacou como educador. Ele apoiou a construção de 28 escolas rurais, 700 quilômetros de estradas, poços, açudes e capelas entre 1931 e 1958. Por acreditar na superação da pobreza através da educação, levava professores de latim, francês e música para ensinar crianças pobres no interior.
Inocêncio morreu de câncer no fígado, aos 83 anos, no Hospital Espanhol de Salvador (Bahia), em 9 de março de 1958. O velório durou cinco dias e o corpo dele passou por cidades da Bahia e de Pernambuco até chegar a São Raimundo Nonato, onde foi sepultado próximo ao altar da igreja matriz.
A dedicação em favor dos pobres levou a diocese a abrir o processo para o bispo ser beatificado e canonizado. Após a etapa regional, ele seguiu para o Vaticano dar prosseguimento à análise. Não há prazo para a conclusão.
Na nave da igreja estão ainda os túmulos do monsenhor Nestor Dias Lima [4], também conhecido por seu trabalho voltado à educação, e Dom Cândido Lourenzo Gonzales[5], bispo emérito de São Raimundo Nonato.
PADRE LIRA
Os moradores de Dom Inocêncio não esquecem o padre, político e idealizador da Fundação Ruralista, Manuel Lira Parente. Através da instituição, seu principal legado, o sacerdote encontrou formas de transformar ou mitigar os problemas enfrentados pelos sertanejos. Em texto publicado pouco após a morte do religioso, o jornalista Gustavo Almeida fez o seguinte relato:
“Aonde não existia nada, padre Lira fez brotar tudo. A ausência do poder público numa região até então considerada inóspita aos olhos do país foi suprida pela atuação magnífica e inigualável do sacerdote. O velho padre escolheu a caatinga e sua área mais difícil para fazer acontecer o que era praticamente impossível.
O sertão do distrito de Curral Novo (hoje Dom Inocêncio), a mais de 100 km de São Raimundo Nonato, viu, de fato e de direito, nascer uma flor de um galho seco. Aguadas, rede de escolas, maternidade, estradas, alimentos, geração de renda, ambulância e civilidade, tudo conseguido arduamente e repassado totalmente de graça ao povo sertanejo que tanto precisava de amparo”.
A ação evangelizadora de Lira também foi objeto de trabalhos acadêmicos. Em “O projeto bordados da caatinga da Fundação Ruralista de Padre Lira: um educador que deu vida ao povo”, os autores [6] ressaltam a importância da instituição, que desde 1965 transformou tecido, agulha e linha em arte. Mas voltemos no tempo para contar a história desde o início.
Segundo o escritor Marcos Damasceno, o menino que nasceu em Bom Jesus da Gurgueia cedo revelou o dom para a educação. Órfão aos sete anos, aos 13 já ensinava o ABC aos filhos dos vaqueiros da região. As aulas aconteciam na fazendo que o pai deixou como herança para ele.
São Raimundo Nonato tinha cerca de 3.000 habitantes, quando o jovem chegou na cidade e entrou para o seminário. Ainda de acordo com Damasceno, Manoel Lira dava aulas de catecismo e de música. A nova etapa foi cumprida em Fortaleza, onde cursou teologia, sem deixar de lecionar.
Na volta para São Raimundo, Manoel Lira foi professor da escola municipal, onde fez amizade com Nestor Lima, diretor do colégio. O Ginásio Dom Inocêncio, para o qual doou uma quantia significativa de herança que recebeu dos pais, foi o pouso seguinte.
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Em 1954, Lira concorreu à prefeitura de São Raimundo, pela União Democrática Nacional (UDN), partido de oposição ao presidente Getúlio Vargas. Ele derrotou Ariston Dias (Partido Social Democrático – PSD) por 232 votos.
Ao final do mandato, resolveu criar a Fundação Ruralista em 1959. Para isso, pediu licença à Igreja e foi para São Paulo, em busca de recursos. Lá, registrou o centro rural (1958) e conheceu a condessa Mariangela Matarazzo, matriarca de uma família ítalo-brasileira de empresários. A milionária doou objetos para a entidade do padre.
No livro “Um homem contra a seca”, da escritora inglesa Peggie Benton, Manoel Lira contou que passou fome em São Paulo:
“Os quatro anos vividos no (edifício) Martinelli [7] são uma feliz lembrança, embora houvesse momentos muito duros; porque passei fome, sei hoje o que a fome significa” – revela.
O UMBUZEIRO
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A ideia de estabelecer a fundação em Curral Novo partiu do tio do padre, Alcebíades. A busca pela propriedade terminou em uma localidade a 10 quilômetros do centro do povoado, que tinha 12 casas e 47 moradores. Foi sob a sombra de um umbuzeiro que a entidade ganhou forma.
Marcos Damasceno, autor de livros e textos sobre a região e religiosos, explicou que as primeiras escolas foram criadas na sede da Fundação Ruralista e no povoado de Cacimbas, em junho de 1965. Tinham 32 e 40 alunos, respectivamente. E estavam instaladas em latadas, sem mobiliário. Os alunos sentavam no chão ou em tocos de madeira.
As unidades, no entanto, eram abastecidas com carros-pipas e ofereciam três refeições diárias. Durante os meses de aula, famílias se mudavam para os barracos que rodeavam os muros da escola da sede, pois as distâncias não podiam ser percorridas diariamente
Duas décadas depois, a instituição contabilizava 23 escolas e 2.100 estudantes. Damasceno era um deles. Tudo era mantido com doações, parcerias e verbas oficiais. O objetivo era formar cidadãos e bons alunos, que se harmonizassem com a natureza e a sociedade.
O currículo introduziu aulas de bordado para meninas. A fama das bordadeiras da caatinga correu mundo. As peças foram vendidas para diversos estados e para pelo menos cinco países (Alemanha, Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália).
As meninas eram pagas pelos bordados vendidos pela fundação e ajudavam a compor a renda familiar. Várias delas relataram melhorias feitas nas residências e a compra de móveis e eletrodomésticos com o dinheiro que arrecadavam.
Com tanto serviço prestado, não foi difícil para o padre ser eleito prefeito três vezes. Todas elas pelo então Partido da Frente Liberal (PFL) Ele foi o primeiro administrador do município que ajudou a fundar (1989-1992). Eleito pela segunda vez (1997-2000), formou quadros que até hoje disputam o poder local.
Na terceira oportunidade, Lira declarou ter a profissão de professor. Ele renunciou ao cargo em junho de 2007 por causa do agravamento de seu estado de saúde. O substituto foi Inocêncio Leal, vice-prefeito e filho reconhecido pelo padre. Na eleição seguinte (2008-2012), o jovem político foi reeleito.
O FILHO
Inocêncio, advogado nascido em Pernambuco, não chegou a ser admirado como o pai. Ele se envolveu em negócios ilícitos que o levaram a ser detido por policiais federais, auditores e técnicos da Controladoria Geral da União (CGU), em junho de 2017. O político foi solto após 57 dias na cadeia.
A primeira condenação foi proferida pelo juiz Federal Pablo Enrique Carneiro Baldivieso, em 2018: nove anos de prisão em regime fechado por desviar R$ 1,1 milhão de recursos para abastecimento de água de Dom Inocêncio. A obra, sem licitação, não foi realizada. Segundo o juiz, o desvio contou com a participação do sócio administrador da Construtora Ruben & Ruben, Sólon de Oliveira Ruben.
O mesmo Pablo Baldivieso, da Vara Única de São Raimundo, voltou a condenar Inocêncio Leal a quatro anos e seis meses de prisão, em regime semiaberto, e o inabilitou a ter qualquer cargo público por cinco anos. Isto porque, ao contrário do pai que investiu na educação, Inocêncio cometeu irregularidades no tocante à utilização de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para a construção de uma creche.
De acordo com o Ministério Público Federal, parcela significativa da verba foi desviada para a construtora Ruben & Ruben, pertencente a Solón de Oliveira Ruben. O total desviado foi de R$ 472 mil. O empresário foi condenado a dois anos de reclusão, em regime aberto. A pena foi convertida em prestação de serviços à comunidade. O ex-prefeito e o empresário foram condenados também a devolver o dinheiro desviado.
O filho do padre voltou a ser detido, em Teresina, em 2022, por dirigir um carro clonado. Ele alegou ter comprado o veículo em uma feira em Petrolina (PE) e não saber das modificações. Após assinar o termo circunstanciado, ele foi liberado sob suspeita de receptação.
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Os planos da Fundação Ruralista não foram adiante. A promessa de construir um memorial para o fundador da instituição não saíram do papel. Reportagens sobre o abandono da entidade foram publicadas em veículos regionais. A retomada do projeto com as bordadeiras da região ficou na promessa.
O símbolo da Fundação, um galho seco com uma flor brotando, foi interpretado de diferentes formas pelo padre e por participantes dos projetos.
Consta nos arquivos da instituição que Dona Conceição, do povoado Olhos D’Água, certa vez perguntou ao padre se na terra dele era comum árvore seca florir. Lira respondeu que a flor simbolizava a fundação e daria muitas floradas. Para a sertaneja, porém, a parte mais bela do logotipo representava o padre. Parece que ela tinha razão, desde que ele partiu, a obra social está definhando.
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Notas de pé de página
[1] Ordem fundada em 10 de agosto de 1218, por Dom Pedro Nolasco para “visitar e libertar cativos cristãos que, por circunstâncias adversas à dignidade da pessoa, encontram-se em perigo de perder a fé” No Brasil, a Ordem da Virgem Maria das Mercês da Redenção dos Cativos esteve presente entre 1639-1865, na província do Grão Pará, e a partir do dia 28 de junho de 1922, do Piauí. Depois, expandiu sua atuação e se mantém até hoje no estado de origem e no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Goiás e o Distrito Federal.
[2] Movimento armado que culminou na deposição do presidente Washington Luís e na posse de Getúlio Vargas, que governaria 15 anos.
[3] A Prelazia de São Raimundo Nonato foi criada em 17 de dezembro de 1960, por meio da bula Cum Venerabilis, de João XXIII.
[4] Monsenhor Nestor Dias atuou nas cidades de Caracol e São Raimundo Nonato (PI), Remanso e Juazeiro (BA).
[5] Nascido em Ginzo de Lima, na Espanha, em 1925, foi religioso da Ordem de Nossa Senhora das Mercês. Atuou no Brasil por cerca de 60 anos, mais da metade deles como bispo de São Raimundo Nonato.
[6] Os autores são Cristovaldo de Oliveira Sousa, graduado matemática, filosofia e pedagogia e professor da rede de Dom Inocêncio; Cirleide Ribeiro dos Santos, professora de história e professora da rede de São Raimundo Nonato; Hellen Cristina de Oliveira Alves, psicóloga e pesquisadora; Kleber de Oliveira Macedo, biólogo e professor educação básica); Deborah Gonçalves Silva, professora da rede estadual do Piauí e mestre em História.
[7] O edifício Martinelli, no centro de São Paulo, foi o segundo mais alto do Brasil entre os anos de 1934-1947. Na década de 1950, entrou em degradação extrema. Ocupado por um número elevado de famílias de baixa renda, elevadores desativados por falta de pagamento de luz elétrica e lixo jogado nos fossos de ventilação. Lira foi morar ali porque não havia vagas no convento dos padres mercedários.
(Fim)
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Legenda principal: Portão de entrada da Fundação Ruralista. Reprodução TV Cidade Verde (2016)
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Em nome do padre, do filho e das bordadeiras O sonho de ter uma loja
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.