Paulo Oliveira –
Filho mais novo do compositor e cantor maranhense João do Vale revela histórias do pai
João Aurélio Rodrigues do Vale, 50 anos, pai de João Miguel, assumiu a administração do Parque João do Vale, em Pedreiras (MA), terra natal do compositor e cantor maranhense. O local foi inaugurado em setembro de 2021 e Aurélio substituiu a maratonista Cleudilene Ramos, primeira gestora, nove anos depois.
O convite feito pelo secretário de cultura do estado, Anderson Lindoso, foi imediatamente aceito pelo filho mais novo de João do Vale, que nutria o plano de construir um museu sobre o pai no Rio de Janeiro ou em Nova Iguaçu, cidade da Baixada Fluminense onde o compositor morou e a família até hoje tem uma casa.

O acervo amealhado foi levado para o memorial instalado no Parque, subdividido em diversas partes, que receberam nomes das músicas do Pedreirense. A biblioteca, por exemplo, se chama “Minha História” e a escola de música, “A voz do povo”.
Além disso, possui três playgrounds, quadra de areia, quadra poliesportiva, academia ao ar livre, pista para caminhadas e corridas, estátuas, monumentos. Em alguns horários, altos falantes instalados nos postes emitem músicas de João. Há ainda uma réplica da locomotiva que inspirou a música “De Teresina a São Luís”, parceria feita com Luiz Gonzaga.
“Quando me vi diante do parque tive a sensação que finalmente tinham reconhecido a história do meu pai. Uma vez um jornalista cearense foi me entrevistar no Rio e me perguntou: “Onde é que fica o museu sobre teu pai no Maranhão? Em Pernambuco tem o museu Luiz Gonzaga; na Paraíba, o de Jackson do Pandeiro. Dei conta que estava faltando isso e fiquei envergonhado” – revelou João Aurélio.
Na conversa de 50 minutos com a equipe de Meus Sertões, o administrador do Parque falou sobre seu trabalho e contou muitas histórias relacionadas ao pai, que foi velado no auditório do complexo que o homenageia.
Aurélio lembrou o lado mulherengo de João, do ciúme e da tristeza da mãe e de como ele próprio se chateia quando dão mais importância ao alcoolismo do que ao talento do compositor maranhense.
Leia a entrevista abaixo:
O que você trouxe para o memorial João do Vale?
Os jornais que minha mãe guardava e fotos de família
Quando você assumiu o Parque você criou alguma atividade? Como é ser gestor de uma área dessa?
É bem trabalhoso trabalhar com o público, né? Uma das coisas que a gente bate muito aqui é conscientizar a população para não quebrar os equipamentos e para a importância de João do Vale. São raros os parques existentes no Maranhão. E esse aqui é bem visitado. São cerca de 600 por dia. O parque abre às cinco da manhã para quem quer fazer caminhadas e fecha às dez horas da noite. Funciona de domingo a domingo.
Quantos funcionários tem no Parque?
Seis vigilantes, pessoal da limpeza. O total chega a 25.
E quais são os principais eventos que são realizados aqui?
Tem um palco que foi inaugurado há menos de um ano. Nossa ideia é realizar muitos shows e eventos. Há um mês teve um de uma igreja.
Tem atividades esportivas aqui?
Vai ter um campeonato de atletismo em breve.
O teu cargo é vitalício?
Não
O Parque tem verba para manutenção?
A administração não tem verba nenhuma. Funciona assim por demanda. Quando quebra uma coisa, a gente faz o requerimento e o Estado providencia o conserto.
Tem algum projeto de criar algo no parque? Ou ele já está completo?
Tem um projeto de criar uma outra pista de skate aqui. A primeira fica perto do obelisco.

O que as pessoas que visitam o complexo dizem sobre teu pai?
Eu escuto muito algo que me irrita muito: “Ah, eu bebi muito cachaça com o teu pai. Histórias que. não acrescentam. Teve um visitante que veio com esse papo. Eu perguntei qual era a idade dele: “45” – respondeu. Meu pai morreu há 29 anos. O primeiro derrame que o deixou com problemas de comunicação e em cadeira de rodas foi em 1987Como ele pode ter bebido com meu pai? O sujeito tinha sete anos na época. Esse é o tipo de história que não quero ouvir. Tem também quem invente coisas para tentar se aproximar. “Teu pai tocava violão muito bem”. Ele não sabia tocar.
Teu pai teve quantos filhos?
Teve quatro com a minha mãe. Mas quando eles se casaram minha mãe, dona Domingas, era viúva e já tinha três filhos. E sempre dizia: “Eu tenho sete filhos, mas três fizeram por mim”. Eram cinco homens e duas mulheres, mas a mais velha morreu.
Depois de inaugurar o Parque, o então governador Flávio Dino voltou aqui?
Não, a inauguração foi no final do mandato dele.
Vocês pensam em trazer pessoas para fazer shows aqui?
Pensamos, mas é superdifícil porque não temos verba.
Nem os amigos dele?
Muitos amigos do meu pai ainda estão em evidência. Tem o Zé Ramalho, o Alceu Valença o Geraldinho Azevedo. Meu pai é padrinho da filha do Zé Ramalho.
E como foi a vida de João do Vale no hoje quilombo Lago da Onça?
A distância varia entre seis e oito quilômetros. Ele vinha de lá para Pedreiras, onde vendia bolos, doces e pirulitos. Acho que vinha a cavalo. Na época em que ele era menino não tinha quase nada lá. Para ter uma ideia, a energia elétrica só chegou no povoado por volta de 2010.

Seu pai sofreu muito preconceito?
Acho que a vida dele foi muito difícil. Uma pessoa negra, semianalfabeta, nordestina. Ele chegou no Rio de Janeiro sem conhecer ninguém, dormia no canteiro de obra.
Ele falava sobre isso com os filhos?
Não. Lembro que ele só cobrava que a gente estudasse. Também lembro dele contando que o primeiro dinheiro que ganhou com direito autoral, ele mandou para a minha avó. Ela enviou uma carta para ele perguntando o que ele estava fazendo para mandar tanta grana. Hoje as pessoas nem querem saber de onde vem o dinheiro. Eu sou da época que quando chegava em casa com uma caneta meus pais queriam saber como eu consegui. E a minha avó fazia o mesmo com o meu pai. Mesmo sendo pobrezinha, ela queria saber a origem do dinheiro.
E vocês, os filhos, estudaram até que série?
Quase todos se formaram. A gente era muito cobrado sobre isso. Eu fiz administração e engenharia também.
Nenhum de vocês quis ser compositor, cantor?
Meu irmão mais velho, Nonato, é funcionário da Petrobras. Ele tem um ouvido ótimo e queria se aventurar na música. Mas nunca teve apoio. Queria largar a Petrobras, mas meu pai sabia o que tinha passado e não deixou.
E como era o relacionamento de João com dona Domingas?
Ontem eu estava falando com minha namorada que filho homem é muito pelo lado da mãe, né? Eu sou muito a favor dela. Meu pai se envolveu com muitas mulheres. Uma vez foi com uma professora belga. Se não me engano ela se chamava Viviane. Ela veio para o Brasil pesquisar as canções de meu pai.
Tempos depois ele mandou uma carta para José Sarney, ex-governador do Maranhão, que era muito amigo de meu pai. A carta dizia mais ou menos assim: “Camarada, uma professora veio da Bélgica me estudar, agora estou precisando que você mande uma passagem para ela porque estou estudando ela (sic)” [1].
O Sarney mandou a passagem ou não?
Mandou. Ela morava em Bruxelas.
Dona Domingas reclamava das aventuras amorosas de João?
Minha mãe era aquela maranhense de Turiaçu que ia lá, quebrava o pau, batia, né? Nunca vi meu pai levantar a mão para ela. Tem também uma história de que ele teria se envolvido com a Miúcha, irmã do Chico Buarque. O caso foi publicado em uma revista. Isso deu uma briga danada com minha mãe. Durante a discussão, meu pai, na maior cara de pau disse: “Domingas, isso foi coisa do meu empresário para levantar a minha carreira e a dela.
A tua mãe ficou com ele até o fim da vida, não foi?
Ela viveu com ele mais de 30 anos juntos. Quando ele saía para os shows ou para viajar, ela cuidava da filharada. Ela morreu três meses depois dele.
E além dessa história, surgiram outras iguais?
Tem um cantor, o Rogério do Maranhão, diz que meu pai teria tido um lance com a Clara Nunes, mas eu não sei…Agora a história com a Miúcha foi bem divulgada.

Com teu pai viajando com frequência para o Nordeste, a fim de fazer shows, o que você pensava? Sentia falta dele?
Eu sentia falta porque a gente perdia vários momentos. Mas era muito bacana quando ele voltava. Teve uma formatura minha que ele não foi porque estava trabalhando. Mas assim que ele chegou, uma ou duas semanas depois, mandou minha mãe me arrumar com a minha farda para tirar muitas fotografias comigo. É uma pena que eu perdi essas fotos.
Qual o filho que ele era mais chegado?
Era eu. Quando eu nasci, meu pai tinha 42 anos de idade e seis filhos. Então, eu era o xodó. A diferença minha pra minha irmã é de quase oito anos. Na época, a maioria dos meus irmãos estava casado. Eu era a raspa do tacho e ele tinha um imenso carinho por mim.
Ele cantava para vocês?
Cantava. Teve uma festa de final de ano na escola onde eu estudava. Aí, ele foi lá cantar. Cara, ali eu vi a força dele. Botaram uma caixa de cerveja assim pra ele subir, né? Pra ficar um pouquinho mais alto. Só o microfone e ele. Pegar atenção de várias pessoas não é fácil. Todo mundo estava atento, escutando o que ele falava e cantava. Eu tinha 11, 12 anos e fiquei impressionado.
Você lembra de outros shows dele?
Eu ia muito no Projeto Seis e Meia [2]. Meu irmão, oficial da Marinha baseado em Natal, conta que um colega dele foi ao teatro só para tirar uma foto com meu pai. Ele ficou esperando um tempão na entrada. João tirou a foto e perguntou se o rapaz e o grupo que o acompanhava iam assistir ao show. Eles responderão que não tinham dinheiro para pagar o ingresso. Ele então botou uns 20 universitários para dentro. A contratante não gostou muito, mas ele era assim. Hoje em dia tem artistas que não querem nem tirar foto com os fãs.
Você lembra de outro episódio de como teu pai te tratava?
Ele me fazia dormir cedo. No domingo, depois de “Os Trapalhões”, antes de começar o “Fantástico”, eu tinha que ir para cama porque estudava de manhã. Atualmente, as crianças dormem a hora que querem.
E você, tem quantos filhos?
Três
Eles tiveram contato com o avô?
Não, mas têm orgulho de serem netos dele. Minha filha estuda psicologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Quando souberam que ela era neta de João do Vale, quiseram fazer um documentário sobre ele. Já meu filho mais novo, que tem 10 anos, participou de uma homenagem ao avô na escola dele
O que você sente quando entra no memorial feito para ele no Parque João do Vale?
Eu lembro que o Estado que tirou o direito de ele estudar, agora só estão fazendo o que lá atrás tiraram dele. O reconhecimento demorou, mas chegou. Eu acho que só faltava um lugar como esse para poder contar a história de meu pai.
Você lembra quando João sofreu o primeiro acidente vascular cerebral?
Ele estava com uma amante em um hotel. Essa mulher botou ele (sic) em um táxi e mandou para o Hospital da Posse, em Nova Iguaçu. Lá, jogaram ele em uma maca. Ele caiu e bateu com a cabeça no chão e sofreu uma fratura. Aí, apareceu uma estagiária que o reconheceu e avisou para a direção, que ligou para o Chico Buarque. O Chico providenciou a transferência para o Hospital Casa Bambina, em Botafogo, onde ele teve um excelente atendimento. Isso aconteceu em 1987. Meu pai ficou com sequelas, dentre elas dificuldade de se comunicar, e passou três anos em cadeira de rodas. Onze anos depois, no terceiro AVC, ele morreu.
E a mulher que estava com ele sumiu?
Acho que ela só queria explorar. Antes do AVC, ele comprou material de construção para ela fazer uma obra e deixou a nota fiscal no bolso da calça. A minha mãe viu e foi lá com a minha irmã. São várias histórias assim.
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Depois de mostrar o parque e conceder a entrevista, João Aurélio nos leva para mostrar os locais de Pedreiras mais frequentados pelo pai e as homenagens feitas a ele.
(Termina na próxima semana)
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Legenda da foto principal: João Aurélio administra o parque que homenageia o pai. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões
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Pé de página
[1] O ex-governador e ex-presidente da República José Sarney confirma a história no prefácio do livro “Pisa na fulô, mas não maltrata o carcará”, de Marcio Pachoal. Na versão de Sarney não foi uma carta, foi um telefonema, no qual o compositor maranhense dizia: “Zé, tem uma professora belga, loira bonita de danar, que veio ao Brasil me estudar. Eu estou estudando ela (sic). Agora quer voltar. Você manda uma passagem para ela passar uns dias nas Europas. Ida e volta, pois o estudo não acabou”. No final do texto, sem dizer se mandou ou não a passagem, Sarney diz que foi amigo de João do Vale e o acompanhou “desde quando começou até quando acabou” E define o conterrâneo como “força da natureza e indelével figura humana”. Quando era presidente, José Sarney concedeu o título de comendador da Ordem de Rio Branco para João, em meados dos anos 1980.
[2] O Projeto Seis e Meia foi uma série de shows de música popular brasileira realizada no Teatro João Caetano no centro do Rio, que ficou conhecida por apresentar artistas renomados e novos talentos a preços acessíveis. A iniciativa, iniciada em 1976, se expandiu para capitais do Nordeste, consolidando-se como um marco cultural e divulgador da MPB no país. Ele foi encerrado em 2015, mas em 2021 retornou em outro formato para uma temporada comemorativa pelos 25 anos de existência.
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Teste seu conhecimento sobre João do Vale A cidade de Pedreiras e as pedradas de João Prima Tereza, a companhia perfeita Abandono após a morte A maldição do carcará A onça mora no pé do lajeiro Uma bodega chamada João
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.








