Um dos mais longevos clássicos do futebol do interior nordestino é disputado há quase 70 anos em Rodelas, na região norte da Bahia, a 550 km de Salvador. No dia 7 de setembro, e apenas naquele dia, os times do Verde e do Amarelo entram em campo para alimentar uma rivalidade iniciada em meados dos anos 50. E a cidade se divide entre torcedores das duas cores. Ou torce pelo Verde ou pelo Amarelo. Não existe meio-termo – a não ser que se tenha chegado muito recentemente e ainda não tenha tido tempo para posicionar-se.
Rodelas respira a fundo esta disputa. A partida de futebol entre os dois partidos – são partidos mesmo, atravessou e apaixonadamente envolveu gerações. Um ou outro é o primeiro time do coração dos rodelenses, homens e mulheres, mesmo aqueles e aquelas que não gostam de futebol, não sabem como se cobra um lateral ou nunca ouviram falar em pênalti. O gostar de um e o detestar o outro começa na mais tenra idade. Alguns mais apaixonados afirmam que o rodelense nasce torcendo por uma das cores.
Lá, o coração é vermelho durante 364 dias do ano. Mas no 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, é pintado de Verde ou Amarelo. Ninguém fica indiferente ao jogo. Verdeeee, grita um. Amareloooo, responde imediatamente o oponente.
O clássico foi iniciado quando Manoel Otávio de Souza, guarda da malária à época e procedente de Floresta (PE), levou a primeira bola de couro para Rodelas, então uma pequenina vila que pertencia administrativamente ao município de Glória. Virou o Charles Müller do local. O estádio onde estas disputas são realizadas lhe homenageou. Manoel torcia pelo Verde.
A competição, porém, foi criada e incentivada pela primeira professora do lugar, Dulcina Cruz Lima, em meados dos anos 30, com várias modalidades – menos o futebol. Os seus alunos foram divididos: um lado com a cor verde e o outro com a amarela – as cores da bandeira. De lá para cá, o dia 7 de setembro nunca mais foi o mesmo em Rodelas. Dona Dulcina era amarelo roxa.
E assim nasceu a rivalidade que atravessou as décadas.
PROVA DE CIDADANIA
É um clássico que apenas o entende e o curte em toda intensidade quem nasceu ou mora na cidade há muito tempo. Nesta disputa, forasteiros não são benvindos. É festa para quem está nas arquibancadas e emoção para quem está dentro de campo. Não raro um jogador treme.
Um curioso pode perguntar aos rodelenses, mesmo aqueles que há muito foram embora, qual a cor do coração que eles responderão de bate-pronto, como um gol à Bebeto.
Careca Nery saiu de Rodelas em 1975, mas nunca esqueceu o Verde, que defendeu várias vezes, mesmo depois de ter ido morar em Feira de Santana. Acredito que até Wagner Moura, que nasceu em Salvador, mas foi criado em Rodelas, já empunhou uma bandeira ou vestiu uma camisa Verde ou Amarela. Quem não tem seu time, bom rodelense não é. Aliás, esta é uma das provas exigidas de cidadania, dizem os mais tradicionais.
É, sem dúvidas, uma das maiores rivalidades do esporte, mesmo que as vezes o bom futebol passe bem longe do campo. É muito mais emoção. Neste dia, a cidade salutarmente se divide. É comum casais de namorados chegarem ao estádio com camisas ou outro sinal do time que torce. Dentro, não são poucos os que se separam. Depois – às vezes bem depois, voltam à normalidade do relacionamento. Desde muito cedo as crianças são instigadas a gostar de uma cor e a detestar a outra.
É uma festa alegre, mesmo que de vez em quando os torcedores se desentendam – mas nada que uma semana depois, passado o período da natural gozação, as amizades não sejam retomadas.
Dona Milinha, a pessoa mais idosa da cidade, já passou dos cem anos e torce pelo Amarelo. Segundo as netas, este ano perguntou quem tinha vencido e vibrou com o triunfo da sua cor do coração.
Carmelita Cruz, está chegando aos 90, e sempre foi fiel ao Amarelo. É uma competição de uma longa história, mas de muitas histórias paralelas e personagens. Uma vez, Zefinha de Peixinho envelopou o seu conhecido jipe de amarelo. E quase agride Damião de Seu Mané que rasgou o papel.
Contam que já passando dos 80, dona Maria José Soares observava a movimentação das pessoas da sua janela. Sobre os cotovelos apoiava o corpo. E viu um bloco de animados foliões se aproximar. Foi quando percebeu do que se tratava. Era a torcida do Verde comemorando a vitória naquele ano. “Que povo mais besta”, resmungou alto. E bateu a janela. Também torcia pelo Amarelo.
Os dois coronéis que disputavam os votos dos seus conterrâneos também rivalizavam quando o assunto eram as cores da bandeira. Domingos Almeida torcia pelo Verde, mas Manoel dos Santos – irmão de dona Maria José, Amarelo. Eles financiavam atividades dos seus partidos locais. Carmelita Cruz lembra que outra disputa entre eles era travada na arrecadação de dinheiro, em Rodelas e nas cidades próximas, que era destinado à Igreja.
VERDE É FREGUÊS
Depois de uma relaxada, a tradição, como um furacão, ganhou força nos últimos anos. Rainhas das equipes voltaram a ser escolhidas e os times se cotizam para ver quem faz a mais animada das festas pós-jogo. Quem vence festeja de alegria e quem perde, de tristeza.
Para decepção da torcida do Verde, que é maior e mais animada do que a do adversário, o Amarelo venceu as três últimas edições, sequência nunca registrada. Num desabafo, há alguns anos, depois de amargar mais uma derrota do Verde, Aluísio Dentista disparou: “o Verde só vai ganhar quando fulana morrer, porque ela é feiticeira do Amarelo”. Bem, ambos já faleceram e a sina do Verde em ser derrotado continua. Mas, quem sabe no próximo ano a história não muda?
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Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.