Próximo do fim

Zé Vítor é tranquilo, simples, gosta de contar histórias vividas por ele e por seus companheiros. Mas para Rodelas ele tem uma importância ímpar: é o último dos antigos penitentes – restam poucos mais jovens, mas que estão afastados das atividades religiosas. A história deste grupo secular e de fé católica, que cumpre sua jornada religiosa com maior vigor durante a Quaresma, pode chegar ao fim.

Em algumas oportunidades, o grupo chegava com facilidade a 60 homens. Hoje restam quatro, cinco. Zé Vítor é um decurião, espécie de vigilante que agia para que os curiosos não se aproximassem.  Esse personagem é uma representação dos integrantes da tropa da milícia romana, cujas subdivisões eram em grupos de dez homens.

Os penitentes são formados por homens muito religiosos que durante a Quaresma se reuniam duas vezes por semana – às quartas e sextas-feiras para rezar pelas almas. Os rodelenses conhecem esta manifestação há mais de um século. Zé se preocupa com o futuro.

Outro grupo do qual Zé Vítor faz parte há décadas é o dos zabumbeiros, que se apresenta durante os festejos juninos. Esta manifestação também está condenada à extinção por falta de renovação. Dois importantes traços da cultura e da religião local estão relacionados à presença física de Zé Vítor.

Até junho ele teve a companhia do irmão Antônio, por décadas uma das mais belas vozes entre os penitentes e profundo conhecedor de orações. Tonho Vítor, como era conhecido, morreu durante os festejos juninos na cidade. Também era decurião.

“Sou o que restou dos mais velhos” – lamenta Zé.

Os decuriões fizeram história no grupo. Zé Ribeiro por muitos anos comandou os companheiros. Seu Alexandre ameaçava a todos com a sua “disciplina”  – correia que tinha pedaços de metais na ponta e era usada durante nos momentos de purificação espiritual, na Capelinha, que tinha pontos escuros nas suas paredes. Diziam ser sangue dos penitentes.

Regras rígidas

Não era fácil se tornar um penitente. Para ser aceito precisava determinação, ter conhecimento de um rosário e meio de orações e durante toda a vida respeitar o regime imposto pela ordem. As regras eram poucas, mas rígidas: durante a Quaresma o penitente não podia manter relações sexuais, raspar a barba ou comer carne vermelha ou de frango, às quartas e sextas-feiras. Tinha ainda que participar dos encontros, que ocorria duas vezes por semana.

“Acredito que nem todos seguiam as regras” – diz Zé, rindo.

Além do regime, considerado espartano, os penitentes eram obrigados a preservar suas identidades a ferro e fogo. Exceto os decuriões, os outros tinham suas identidades declaradas apenas quando morriam porque eram sepultados com suas fardas: capas pretas com grandes cruzes brancas, que remetiam aos trajes medievais dos Cruzados.

Com a mudança para a nova cidade de Rodelas, há quase 30 anos, o grupo começou a rápida caminhada para a sua extinção. Foram poucas as adesões e muitas mortes ou afastamentos voluntários.

O CHAMADO

Há muitos anos não se ouve o som o buzu, curto berrante de som agudo feito com chifre de uma rês sertaneja RND (Raça Não Definida). Por muitos anos essa trompa rudimentar foi soprada com força por Nascimento. O toque era a senha de que naquela noite haveria orações em uma das residências previamente escolhidas.

Na velha cidade, se reuniam na capelinha, construída distante da pequena Rodelas, quase à entrada da caatinga. E de lá saiam cantando hinos religiosos em direção ao local de orações.

“Já caminhamos cinco léguas (30 quilômetros) para chegar numa casa. E depois da reza a gente voltava para chegar no Rudela antes do dia amanhecer para que as pessoas não vissem a gente” – lembra Zé Vitor.

A maioria dos componentes ia diretamente para suas roças. A fé era o alimento para que o corpo suportasse a demanda de energia naquele dia.

Zé Vítor diz que os remanescentes se reúnem esporadicamente na capelinha construída logo depois da aldeia dos índios Tuxás, hoje cercada de casas. Não se preocupam mais em preservar as suas identidades. É nesta capela que fica o secular cruzeiro considerado um “madeiro sagrado”, como afirma um dos mais belos cânticos dos penitentes.

As anuais obrigações religiosas começavam na Quarta-feira de Cinzas, na casa do penitente Pedro Grosso. E continuavam nas sete semanas seguintes em residências previamente acordadas. Geralmente pagadores de promessas.

Na nova cidade – a antiga foi coberta pelas águas da barragem de Itaparica há quase 30 anos – os encontros foram perdendo força a cada Quaresma. Nunca aconteceram na mesma quantidade. Hoje não há mais reuniões.

“De vez em quando a gente vai à capelinha e nada mais” – diz Zé.

REQUEIJÃO E BUCHADA DE BODE

O velho penitente recorda que nos antigos encontros as pessoas não eram obrigadas a oferecer nenhum tipo de alimento e nem se cobrava para que rezassem naquela casa. No entanto, segundo ele, algumas pessoas colocavam à mesa um café reforçado ou ofereciam jantar, principalmente quando o evento era realizado em uma fazenda. Jejum só durante a Quaresma.

Nascimento, o tocador de buzu, protagonizou histórias pitorescas em Rodelas. Reprodução

Zé Vítor ri quando é perguntado sobre uma história que há décadas é contada na cidade. Em uma noite, depois das orações na Salina, fazenda distante da cidade, os penitentes ganharam um grande requeijão para que comessem durante a caminhada de volta.

Nascimento, negro forte com quase 1,90m, carregava a pesada cruz à frente do grupo, que não o chamou para comer. Quando foi pedir o seu pedaço, soube que já tinha sido consumido. Bravo, teria perdido o respeito pela cruz e a atirado ao chão.

“Quem quiser que leve”, teria gritado entre muitos xingamentos.

Zé também lembra que uma noite o grupo recusou o jantar oferecido por Maria Biana: buchada de bode. Só Nascimento não quis fazer desfeita.

“Nunca vi ninguém comer buchada de noite, um prato forte como aquele”, espanta-se o velho penitente.

Nascimento comeu muito e não demorou para que a buchada fizesse efeito.

“O guloso obrou muito naquela noite” – conta o velho penitente.

AS SEGUIDORAS

Mulheres não eram admitidas no grupo. Mas algumas podiam acompanhá-lo nas peregrinações. Até circulavam entre eles. Para elas não escondiam suas identidades.

Dos Anjos, por exemplo, era presença em praticamente todas as noites de orações, parecia uma pagadora de promessas, tal a disposição para rezar horas seguidas ao pé da porta da casa onde a promessa era paga naquela noite. Bons tempos na memória de Zé Vítor, que hoje professa sozinho a sua fé.

Até quando? Ele entrega nas mãos de Deus.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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