A pescaria

SOTAQUE DE UM POVO NAS BARRANCAS DO VELHO CHICO.

Tão conhecedor das águas e ledor de todos os sestros e trejeitos do bicho peixe  que bastava olhar o limo nas águas para saber se os peixes iam ou não caminhar. Naquele dia, porém, Nozim não foi capaz de reconhecer a manha do bicho.

À tardinha, sol já se pondo, Nozim —- seguido por seu filho Nizaldo, então com 16 anos —- quebra o beco de Berenice rumo à ipueira levando uma trouxa de rede, remo, cuia e corda. Iam pescar de caceia.

Com sábia sutileza e igual perícia, o pescador foi soltando a rede nas águas. Armada a rede, era só esperar as águas correr e torcer que muitos peixes se enredassem, amalhassem  na armadilha invisível.

Com a rede atravessada no rio, Nozim, embora bem-humorado e brincalhão, não tirava o sentido da obrigação e, aqui e ali, dava uma curiada na rede para ver se tudo estava nos conformes. Não demorou o prazo de capar um gato, para o experiente pescador perceber que as coisas não iam bem e avisar, então, ao filho que teria que recolher a rede que havia se prendido.

Desnecessário dizer que o trabalho seria penoso exigindo muitos esforços de ambos.

Desanimado, descalqueado, Nozim começa a recolher apressadamente a rede. Nesse momento, já tinha percebido que a rede estava bem presa e que seria muito difícil recolhê-la, sem que fosse forçando, empregando o uso da força, o que causaria inevitavelmente grandes estragos, grandes rasgos na rede.

Pesca em Xique-xique
Pesca em Xique-xique

Essa certeza acometeu Nozim de inabitual mal-humor que passou a ditar ordens de difícil execução dada a simultaneidade. Ou seja, a rapidez com que as ordens saíam deixava parecer que deveriam ser executadas de uma única vez:

“Rema, chama, dá de leme, rema, chama, dá de leme, chama, dá de leme, chama, dá de leme.”

Perdia as esperanças dizendo “essa rede vai ficar aí, impossível desenganchar”. E nisso desatava a xingar o remador:

“Rema diabo, rema miséria… Um diabo dum menino que não sabe remar. Desgraça…”

As forças do menino se haviam exauridas, terminadas, ido embora. Gastara-as todas remando no sentido contrário ao do vento. Não tinha mais de onde tirar forças.

Nozim não tinha dúvida de que a rede estava presa numa dessas árvores que  – engolidas pela erosão que tantos sofrimentos impõem ao São Francisco, devido entre outras coisas ao descuido com a mata ciliar – caíam e subiam de cabeça arriba nas águas até se afundarem em definitivo em alguma parte do Rio para atrasar a vida do pescador.

Eis que de repente. Não mais que de repente, contrariando todas as expectativas, aparece parte do objeto, ou melhor, do animal em que a rede se prendera: uma enorme cabeça, depois o corpo de um surubim de quase sessenta quilos vem à tona, à veia d’água, emerge das águas para alegria do pai e do filho pescadores.

Naquele instante, as feições de Nozim se transformam e ele lança ao filho um olhar compassivo, compreensivo. Os olhares se encontram, e Nozim diz com grande alegria:

“Nizaldo, continue remando diritchim como v0cê vinha remando. É assim mesmo que se rema. Eu não imaginava que meu fie soubesse remar tão bem…”

Coisas de Xique-Xique na Bahia.

—*—

DICIONÁRIO BEIRADEIRO

“Chama, dá de leme” – São movimentos feito com o remo para controlar a direção dos barcos que navegam no Velho Chico.

Ipueira – Charco formado pelo trasbordamento dos rios em lugares baixos.

Caceia – Neologismo criado por pescadores do baixo médio São Francisco. Diz-se da pesca na qual o pescador solta a rede nas águas correntes e ela sai “caçando”, procurando, buscando o peixe.

Amealhar – Quando o peixe fica preso às malhas da rede.

Curiar – Olhar, observar, perceber, ver.

Descalqueada – Desanimada.

Arilson B. da Costa Contributor

Arilson Borges da Costa ,nasceu em 22 de fevereiro de 1970, em Xique-Xique – BA. Filho de sorveteiro e neto de pescador, é professor. Estudou contabilidade na escola pública de Xique-Xique, Bahia, porém em 2008 abandonou a área de exatas e passou a estudar letras vernáculas, na Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Ao longo de sua vida acompanhou pescadores às margens do rio São Francisco, no intuito de entender o sotaque do povo ribeirinho, por isso migrou seu trabalho para escrita de contos e causos do povo.

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