Claudiceia está sentada em um colchão no chão com um bebê quando, finalmente, localizo o imóvel em frente ao orelhão, onde “se encontra o responsável pelo museu”. Cheguei ali seguindo as instruções do bilhete que está preso à porta do memorial do povoado de Canudos Velho. É que, dependendo do ângulo, o telefone público do outro lado da calçada fica diante de duas casas e de um botequim, onde um vira-lata descansa.
A moça pula do colchão, entrega a criança a outra pessoa e me acompanha por 50 metros até o largo onde estão o Museu Histórico e a igreja de São Pedro, construídos pelo avô dela. A estátua de Antônio Conselheiro, outra atração local, é “uma oferta do pequeno artesão Weliton Luiz, de Uauá”, cidade cujo nome significa vaga-lumes na língua tupi-guarani e está a 35 km da vila de pescadores.
Embora dê a entender que seja antiga, Canudos Velho foi criado por trabalhadores do açude de Cocorobó, que inundou as terras de Antônio Conselheiro, e por pescadores, em 1969 . As águas ocuparam o lugar 82 anos após a destruição da Canudos original.
Enquanto abre a porta de ferro – uma falsa sensação de segurança, pois as paredes da construção são de adobe cru –, Claudiceia conta que, há seis ou sete anos, arrombaram o museu e furtaram a metade do acervo. Acrescenta que o memorial e a igreja de São Pedro foram construídas por seu avô, Manoel Travessa, mas ele não consegue sensibilizar autoridades federais e estaduais para obter verbas para ampliar e proteger o memorial.
Isto é tudo que a garota sabe. Ela não tem informações sobre as armas, munições e objetos dos seguidores do Bom Jesus. Dentre eles, um estribo que aparenta ser de prata, com os símbolos da República. Provavelmente, pertenceu a um dos oficiais que dizimaram Canudos.
Depois de receber um donativo, a jovem informa onde podemos encontrar o avô e volta para casa e para o bebê.
Alguns quilômetros adiante, encontro Manoel Travessa, em Bendegó, no rústico restaurante da família.
O FAZEDOR DE BARRAGENS
Manoel Alves nasceu em outubro de 1940. Ganhou o apelido que foi acrescentado ao nome no tempo em que tinha uma balsa e fazia a travessia do açude de Cocorobó de Canudos Velho para a Canudos nova e vice-versa. Mas não vamos saltar o tempo.
Com três anos, Manoel, os 12 irmãos – hoje só restam dois – e a mãe chegaram de Monte Santo e instalaram-se no povoado criado sobre as ruínas de Belo Monte. Com as obras da barragem, mudaram-se para o povoado de Cocorobó, que deu origem a recente Canudos.
A mãe era cozinheira do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs), onde ele e o irmão mais velho também se empregaram.
Assim como outros dois mil trabalhadores braçais, Manoel começou a operar na construção do açude de Pinhões, em Juazeiro, em 1956. No ano seguinte, foi transferido, com a família, para as obras do Açude Público de Adustina.
“A gente, de uma pobreza dada por Jesus, tinha que acompanhar o mandado de transferência dos engenheiros”.
A seguir, nova mudança. Dessa vez, para a construção da barragem Jacurici, entre Itiúba e Cansanção.
“Trabalhei no braço por 11 anos, tombando carrinho de mão para fazer aterros e construir pontes. Um dia, decidi deixar o emprego e virar pescador”.
A mudança de profissão não o afastou dos açudes. Era deles que Manoel tirava o sustento. “Viver de peixe” significava percorrer as barragens de Jacurici (ou Camandaroba, em Itiúba), Quicé (Senhor do Bonfim), Riacho do Peixe (Jacobina) e Monteiro (Queimadas). O serviço incluía fazer canoas para vender. No tempo livre, ele caçava.
Em 1969, quando Cocorobó “tomou água”, o ex-fazedor de barragens resolveu arriscar a sorte. Chegou a Canudos Velho com as linhas e um saco. Da boca da noite para o amanhecer do dia, fez uma canoa rústica. Passou nela seis dias.
“A pesca foi boa. Ganhei dinheiro para passar um mês e voltei para casa”.
Manoel só regressou ao pesqueiro dois anos depois, levando a mulher, a mãe, três filhos e três sobrinhos a tiracolo. Os outros irmãos “conviviam pelo mundo”. Na mudança, uma canoa, mais linhas, uma mesa e lonas de caminhão.
Canudos Velho só tinha quatro moradores, que não podiam ajudar a família do pescador. A embarcação, à noite, virou abrigo para a mãe, a irmã e as crianças. A mesa, coberta de lona, protegia ele e a mulher, Rita. O fogão eram as pedras do rio represado.
O pescador analfabeto ainda não imaginava que seria o dono de um museu. Muito menos que seria vereador de Canudos por cinco mandatos.
SUCESSO NA POLÍTICA
Os peixes fizeram milagres na vida de Manoel Travessa. Em três meses, eles viraram um quarto e sala próximo da Igreja Velha de Antônio Conselheiro, que ainda não havia sido engolida pelas águas do açude.
O tempo do pescador se dividia entre a construção de sua casa e as feiras livres do povoado de Cocorobó (a atual Canudos), Uauá e Euclides da Cunha. A vida ficou melhor quando ele passou a vender cachaça e cerveja. Em vez de pescar, passou a comprar o que os amigos tiravam das águas da barragem para revender em Itabaiana (SE). A casa ficou maior, ganhou outra sala.
A vida continuou em torno das barragens. Quando a Usina Hidrelétrica de Sobradinho ficou pronta, Manoel tinha comprado um caminhão velho. A quantidade de peixes no lago artificial o fez voltar a pescar. Ficou dois anos nessa lida. Voltava para casa, a 232 km de distância, de 15 em 15 dias. Como era um dos poucos que tinha veículo, passou a socorrer os vizinhos que precisavam de atendimento médico.
” Eu, sem leitura, sem saber ler nem escrever, e com minha pobreza, não deixava ninguém morrer. Levava as pessoas para Euclides da Cunha, para o Dr. Humberto atender”.
E foi assim, entre a caridade e o assistencialismo, que o ex-fazedor de barragens, pescador e feirante conseguiu os votos que o elegeram, por cinco vezes, vereador. Mas, em 1988, a lei proibiu a eleição de analfabetos.
“Nunca gostei de mentir. Declarei para a juíza a verdade. Coloquei, então, minha filha mais velha para concorrer a vereadora e a outra filha, de média idade, para tentar ser vice-prefeita”.
Maria de Lourdes, atualmente com 37 anos, natural de Euclides da Cunha, concorreu com o nome de Tonton de Travessa, em 2004. Estudou apenas as primeiras séries do ensino fundamental. Não foi eleita.
Perpétua, a primogênita, completou o ensino médio. Nascida em Itiúba, hoje tem 54 anos. Foi eleita duas vezes pelo PSDB. Na terceira vez, em 2012, virou suplente.
A explicação para a filha não ter obtido o terceiro mandato, Manoel tem na ponta da língua: “Foi por causa das sublegendas partidárias” (quociente partidário, quer dizer).
O ex-vereador, no entanto, irrita-se ao voltar a falar da lei que o impede de concorrer.
“Deviam aplaudir o analfabeto ser vereador. Por que a lei aceita o voto do analfabeto, mas ele não pode ser candidato? Vou lhe dizer uma coisa: serei candidato de novo este ano. Estou na luta. Se me denunciarem, boto minha filha Perpétua em cima da hora. Não vou deixar meu ser humano desamparado”.
Manoel tem seis filhos (um morreu), criou quatro sobrinhos, não se lembra da quantidade de netos e fecha a conta com 12 bisnetos.
Amor pelo museu
“Não vou deixar a história de Conselheiro morrer”.
Esta foi a resposta que Manoel Travessa deu ao recusar a proposta feita por um holandês que morou 90 dias na casa dele, em Canudos Velho. O gringo ofereceu 10 mil dólares, o equivalente a R$ 10.389, em 1996, e R$ 37.700, hoje, pelo acervo de peças da Guerra de Canudos que o ex-fazedor de barragens e ex-pescador “ajuntou”.
As peças recolhidas de Belo Monte foram colocadas em uma construção simples, em um pedaço de terra doado pelo amigo João de Dom. O pequeno museu fica ao lado da igreja de São Pedro, outra obra do ex-vereador.
“Vinha muita gente visitar o povoado de Canudos Velho. Vinha brasileiro, vinha o pessoal da Itália, da Holanda, dos Estados Unidos. Vinha visita de Portugal e do Japão. Eles queriam ver o arraial do Conselheiro, mas só viam água. Resolvi fazer o museu”.
Além de colecionar objetos diversos e as armas do Exército e de conselheiristas, o criador do museu também pediu ao povo do lugar para que doasse o que tinha. Às vezes, pagava por uma peça.
Como os recursos eram poucos, a primeira porta do museu foi de madeira.
“Na terceira vez em que se formou a romaria de Antônio Conselheiro, quebraram tudo e carregaram metade das coisas. Então, saí por aí, recuperando as peças que mais gostava. E as outras também”.
Primeiro, ele trouxe de volta uma barrica de pólvora para canhão, feita na Alemanha. Depois, uma espingarda “dono do mato”, caixas de balas de canhão, um bico de bala de canhão e munições de fuzil.
A proposta do holandês não foi a única recusada. Recentemente, a Universidade do Estado da Bahia, que administra o Memorial Antônio Conselheiro (MAC), na nova Canudos, tentou convencê-lo a doar seu acervo para a instituição.
“Respondi que não foi a Uneb que me deu aquilo, não. Falei que fiz a coleção por prazer de receber qualquer turista que visitasse Canudos Velho. Agora, vou deixar tudo para meus bisnetos e tataranetos”.
Travessa diz que pedem o material do memorial dele, mas ninguém se propõe a ajudar a mantê-lo. Ele afirma que já fez diversos pedidos aos órgãos municipais e estaduais, mas nunca obteve uma resposta positiva.
Em seus planos, está uma obra para reforçar a segurança da construção.
“As paredes são de adobe cru, nem assado é”.
Há previsão, ainda, de construção de um refeitório, um alojamento para dar dormida aos visitantes e um espaço para expor sua coleção de patacas, dobrões e vinténs, guardada em outro lugar.
Manoel fala, com orgulho, que levou o ex-presidente Lula “na tora” para visitar o museu. O político não passou da porta para o lado de dentro, no dizer do ex-pescador. Limitou-se a dar uma olhada e ir embora.
As visitas ao museu não são cobradas. No entanto, qualquer ajuda é bem-vinda.
A IGREJA
Um dia, o chefe das águas do açude de Cocorobó, João Gato, e do Dnocs, Manuel Bonfim, tocaram-se que o povoado de Canudos Velho não possuía um padroeiro. Como era uma vila de pescadores, nada mais justo que oferecê-lo a São Pedro. Decidiram, então, criar um evento que unia uma corrida de barcos a um concurso da embarcação mais enfeitada. O vencedor ficaria responsável pela imagem do santo.
Ganhei e resolvi construir a igreja para colocar o pleno de São Pedro. Não tive ajuda. O recurso era tirado da boca.
Hoje, sentando em uma cadeira do restaurante da família, em Bendegó, o construtor dos cartões-postais de Canudos Velho diz que não tem mais como investir em suas obras. Reclama do valor da aposentadoria de trabalhador braçal e acrescenta que o tempo de vereança não serviu para melhorar os rendimentos porque a Câmara não recolhia benefícios.
“Bem que podiam me indenizar ou dar uma aposentadoria pela minha inteligência, minha luta e minha idade. Escreve isso na reportagem”
Travessa diz isso e toma um gole de café.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
Uma resposta
Senhor Manoel travessa meu grande amigo e grande homem, admiro muito sua obra de manter sempre viva a triste história de Canudos, a obra de Antonio Conselheiro e o fim trágico da guerra de Canudos.