Dora, a doceira

Geralmente Dora começava uma conversa com um HUMMMM! A doceira mais famosa do município de Rodelas não costumava ter papa na língua. Em algumas situações emitia suas opiniões, sem cerimônias e não se importava se desagradasse o cliente. Nesse aspecto, passava do ponto. Geralmente todos riam do rela que quase sempre caía no anedotário da cidade. Foi uma das personagens amadas do “Rudela”, e seus doces ficaram para sempre na memória afetiva de quem os degustou. As docerias caseiras na cidade morreram com ela.

Ninguém ficava com raiva de Dora. Geralmente, no outro dia estava lá, comendo sentado no banco grande colocado próximo da cozinha ou numa das cadeiras da sala de entrada, perto das panelas de barro cobertas com tampas de madeira sobre um banco adaptado, numa salinha. O doce de leite, por ser mais caro, ficava numa panela de estanho e pendurada numa portada.

Dora também fazia comonia, com mel de rapadura, farinha de mandioca, gergelim e uma pitada de pimenta do reino. Era um doces preferidos da criançada, tanto pelo sabor como pelo baixo preço. Na casa da doceira, os jovens se encontravam para conversar. Naquela época, o sinal da televisão não tinha chegado ao “Rudela” e a cidade não oferecia muita opção de diversão com a chegada da noite. Era iluminada a candeeiros. Muitos namoros foram iniciados e finalizados lá.

Dora era uma comerciante que não se importava em desagradar os clientes. Não raro queimava algum mais afoito e quase sempre quando estava sentada à sombra do fícus (que a gente chamava flics), à frente da casa de dona Rosa Marçalino, não se levantava para atender a um pedido por mais insistente que fosse. Todos a admiravam. Adoravam ainda mais os seus rompantes. Quem não ouviu falar do enquadramento dado a seu João de Emídia, que geralmente comia mais de duas porções: “Deixe para os outros, cavalo”. Ele ria e ganhava mais uma quantidade generosa.

Quando estava de bom humor, Dora vendia fiado para quem quisesse. Depois da pendura, parte da clientela sumia. Mas ela não esquecia a conta. Uma das suas especialidades era fazer cobranças públicas para constranger o devedor. Geralmente o velhaco era surpreendido com a indefectível frase: “Sumiu, hem? Por que nunca mais apareceu em casa para comer um docinho?”, dizia sempre em voz alta. Todos sabiam que o “convite” era a maneira de fazer a cobrança.

Crianças eram convocadas para comer melancia até deixar a casca em ponto de ser ralada e transformada em doce.  Outras raspavam as panelas onde os doces eram feitos. Por motivos óbvios, era uma atividade das mais disputadas pela meninada. Também pregavam muitas peças em Dora. Como na casa dela não tinha energia elétrica e ela não sabia ler, os meninos pagavam a conta com cédulas que não mais tinham valor.

Em um dos seus vários momentos de franqueza, disse à sobrinha Ni de Lió que Quinho de Manoel Guarda, de quem estava noiva, apenas tinha deixado de beber para conquistar a confiança dela e se casar.

“Depois volta”, avisou sem rodeios.

Acertou. Quinho voltou com sede e logo no dia do casamento. E Dora estava lá, dançando um forró. Mas não perdeu a oportunidade de lembrar a Ni o que dissera meses antes.

“Não lhe disse. Agora aguente”.

A resposta da sobrinha foi uma sonora gargalhada.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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